Alice escrita por BrenoHenrique


Capítulo 1
Alice


Notas iniciais do capítulo

Sonhei com isso. Tinha uma ou outra diferença que tornava tudo surreal demais, então eu mudei pra algo mais provável de acontecer.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/146645/chapter/1

                A cadeira de balanço ia e vinha em um ritmo lento. A sala era sombria. As paredes em madeira com a tinta descascada estavam podres. A única porta em pé tinha um enorme buraco e dava para a sacada. O vento frio e a luz fraca do sol poente entravam.

                Além da prateleira com dois pratos rachados, o único móvel da sala era a cadeira de balanço onde uma garotinha e seu pai sentavam.

                Alice seria uma garotinha loira e feliz, teria olhos verdes encantadores. Mas seus olhos eram cinzentos e os cabelos esbranquiçados, mesmo que tivesse apenas nove anos. A fome mostrava seus ossos sob a pele.

                Seu pai, Pablo, a abraçava tremendo. O único cobertor da casa estava com Alice e o inverno nuclear* que veio depois da Terceira Grande Guerra soprava um vento gelado e fétido pelo buraco da porta.

                — “Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!” dizia aos berros a Rainha Vermelha.

                Pablo contava a filha a história preferida da garota: Alice no País das Maravilhas. Já havia lido o livro tantas vezes para Alice que mesmo depois de queimá-lo para se aquecerem, podia ditá-lo sem erro algum. A voz era fraca, mas aconchegante para a pequena Alice, que mesmo com fome e frio, sorria.

                — Papai, quando a mamãe vai voltar?

                Pablo não tinha forças nem mesmo para chorar. Sofrera durante a manhã, não sabia de onde tirara forças para arrastar o corpo quase congelado da esposa o mais longe que pôde sem acordar Alice: Dois metros atrás da cadeira. Mas a garota não deveria se virar.

                — Ela volta logo... Vamos continuar?

                Carinhoso, Pablo continuou sua narrativa. Não achava que passariam daquela noite, queria terminar a história para a filha uma última vez.

                Alice ouvia com atenção, mas não se importou quando o pai se calou antes do final da história e parou de tremer.

                Esperou alguns minutos, então fez força para se desvencilhar do abraço morto do pai, quebrando o dedo mínimo de Pablo, esquelético e necrosado pelo frio, não diferente dos de Alice; A garota ignorou o dedo no chão e caminhou com dificuldade até a sacada.

                O vento que fedia a carne podre era frio e alcançava os ossos da garota. Ela se sentou no chão para ver o sol se pôr. Uma grossa nuvem radioativa e de cinzas vulcânicas fazia o sol parecer a lua no horizonte.

                — Bonito, não?

                Um homem alto, de botas extravagantes, paletó marrom, gravata borboleta roxa, cabelos que variavam entre branco e ruivo e que usava uma cartola verde-musgo sorria com seus dentes retos, porém muito separados, para Alice. Os olhos grandes e verdes eram agradáveis. Alice devolveu o sorriso para seu delírio.

                — Chapeleiro! Trouxe chá?

                Uma voz divertida respondeu a cansada e doce pergunta de Alice, do seu outro lado.

                — Não pudemos trazer o bule.

                A cabeça do Gato de Chesire flutuava sorridente. O corpo aos poucos apareceu, revelando que até mesmo o gato passava fome. O pelo cinzento era roxo em certos pontos.

                Alice sorriu para ele. Voltou os olhos para o sol que estava quase posto. As pálpebras pesaram. Antes de o sol sumir no horizonte os olhos da garota se fecharam.

                Ela sentiu no rosto o beijo inexistente do Chapeleiro.

                — Boa noite Alice.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

* Inverno Nuclear seria o que acontenceria no caso de uma guerra nuclear. As explosões levantariam nuvens radioativas por todo o mundo, sem contar as possíveis erupções vulcânicas que causariam. As nuvens, tanto de cinzas quanto as radioativas, cobririam o planeta e bloqueariam boa parte da luz solar. A temperatura cairia drásticamente. Teriamos um Inverno Nuclear. 2° Graus Celsius seria um dia quente.O sonho foi bastante triste, foi algo diferente de qualquer sonho que eu já tive. Normalmente meus sonhos, além de bizarros e irreais, são perceptívelmente sonhos. Mas este pareceu real. Não havia inverno nuclear, mas a imagem do pai com sua filha esqueléticos, passando fome e frio foi bem real.