Alice escrita por BrenoHenrique
Notas iniciais do capítulo
Sonhei com isso. Tinha uma ou outra diferença que tornava tudo surreal demais, então eu mudei pra algo mais provável de acontecer.
A cadeira de balanço ia e vinha em um ritmo lento. A sala era sombria. As paredes em madeira com a tinta descascada estavam podres. A única porta em pé tinha um enorme buraco e dava para a sacada. O vento frio e a luz fraca do sol poente entravam.
Além da prateleira com dois pratos rachados, o único móvel da sala era a cadeira de balanço onde uma garotinha e seu pai sentavam.
Alice seria uma garotinha loira e feliz, teria olhos verdes encantadores. Mas seus olhos eram cinzentos e os cabelos esbranquiçados, mesmo que tivesse apenas nove anos. A fome mostrava seus ossos sob a pele.
Seu pai, Pablo, a abraçava tremendo. O único cobertor da casa estava com Alice e o inverno nuclear* que veio depois da Terceira Grande Guerra soprava um vento gelado e fétido pelo buraco da porta.
— “Cortem-lhe a cabeça! Cortem-lhe a cabeça!” dizia aos berros a Rainha Vermelha.
Pablo contava a filha a história preferida da garota: Alice no País das Maravilhas. Já havia lido o livro tantas vezes para Alice que mesmo depois de queimá-lo para se aquecerem, podia ditá-lo sem erro algum. A voz era fraca, mas aconchegante para a pequena Alice, que mesmo com fome e frio, sorria.
— Papai, quando a mamãe vai voltar?
Pablo não tinha forças nem mesmo para chorar. Sofrera durante a manhã, não sabia de onde tirara forças para arrastar o corpo quase congelado da esposa o mais longe que pôde sem acordar Alice: Dois metros atrás da cadeira. Mas a garota não deveria se virar.
— Ela volta logo... Vamos continuar?
Carinhoso, Pablo continuou sua narrativa. Não achava que passariam daquela noite, queria terminar a história para a filha uma última vez.
Alice ouvia com atenção, mas não se importou quando o pai se calou antes do final da história e parou de tremer.
Esperou alguns minutos, então fez força para se desvencilhar do abraço morto do pai, quebrando o dedo mínimo de Pablo, esquelético e necrosado pelo frio, não diferente dos de Alice; A garota ignorou o dedo no chão e caminhou com dificuldade até a sacada.
O vento que fedia a carne podre era frio e alcançava os ossos da garota. Ela se sentou no chão para ver o sol se pôr. Uma grossa nuvem radioativa e de cinzas vulcânicas fazia o sol parecer a lua no horizonte.
— Bonito, não?
Um homem alto, de botas extravagantes, paletó marrom, gravata borboleta roxa, cabelos que variavam entre branco e ruivo e que usava uma cartola verde-musgo sorria com seus dentes retos, porém muito separados, para Alice. Os olhos grandes e verdes eram agradáveis. Alice devolveu o sorriso para seu delírio.
— Chapeleiro! Trouxe chá?
Uma voz divertida respondeu a cansada e doce pergunta de Alice, do seu outro lado.
— Não pudemos trazer o bule.
A cabeça do Gato de Chesire flutuava sorridente. O corpo aos poucos apareceu, revelando que até mesmo o gato passava fome. O pelo cinzento era roxo em certos pontos.
Alice sorriu para ele. Voltou os olhos para o sol que estava quase posto. As pálpebras pesaram. Antes de o sol sumir no horizonte os olhos da garota se fecharam.
Ela sentiu no rosto o beijo inexistente do Chapeleiro.
— Boa noite Alice.
Não quer ver anúncios?
Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!
Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!Notas finais do capítulo
* Inverno Nuclear seria o que acontenceria no caso de uma guerra nuclear. As explosões levantariam nuvens radioativas por todo o mundo, sem contar as possíveis erupções vulcânicas que causariam. As nuvens, tanto de cinzas quanto as radioativas, cobririam o planeta e bloqueariam boa parte da luz solar. A temperatura cairia drásticamente. Teriamos um Inverno Nuclear. 2° Graus Celsius seria um dia quente.O sonho foi bastante triste, foi algo diferente de qualquer sonho que eu já tive. Normalmente meus sonhos, além de bizarros e irreais, são perceptívelmente sonhos. Mas este pareceu real. Não havia inverno nuclear, mas a imagem do pai com sua filha esqueléticos, passando fome e frio foi bem real.