Saga Sillentya: Reuniões da Meia-noite escrita por Sunshine girl


Capítulo 3
III - Marionete


Notas iniciais do capítulo

Trazendo mais um capítulo...

Boa leitura!!!



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Capítulo III – Marionete

“E eu quero muito te derrubar,

Mas a sua alma não pode ser encontrada

Não importa muito que você veja isso,

Porque sua doença está me matando

E você sabe que apenas isso é certo,

Porque isso é como um paraíso para mim

E eu sei, nada é de graça,

Porque sua doença está me matando”.

(Saliva – Your Disease)

Jamais me perdoarei pelas atrocidades que cometi no passado...

Jamais me esquecerei dos rostos das pessoas cuja vida retirei sem piedade alguma.

Eu era um assassino.

Havia sido criado para me tornar em um. Ducian havia se certificado de que nunca algo de bom afloraria em mim. Ele me ensinou a ser um monstro. Eu fui seu pupilo. O seu maior orgulho.

Compartilhávamos o mesmo coração negro, a mesma sede por poder, a mesma alma pecaminosa.

Antes, tinha orgulho do monstro que habitava dentro de mim. Do modo como usava e descartava as pessoas, hoje, tenho vergonha do que fui. Vergonha e desprezo por mim mesmo, por ter permitido que as trevas me dominassem a tal ponto, por ter caído tão fundo na escuridão.

Posso afirmar com toda a certeza de que só deixei esse abismo de maldades intermináveis e atos inescrupulosos, quando enxerguei a luz que havia em Agatha.

Só então percebi o quanto havia errado, o quão horrível e monstruoso eu havia sido. Uma marionete nas mãos dele, um boneco regido e manipulado desde o princípio pelo homem que um dia eu chamei de pai...

De alguma forma, ele alimentou o monstro dentro de mim. Fez-me superar todos os meus medos, todas as minhas inseguranças de menino, e então, transformou-as em ódio, ódio por tudo e todos.

Achava-me auto-suficiente, julguei-me dono de meu próprio destino, mestre de todo o meu ser, mas nunca tive controle sobre algo verdadeiramente, porque eu era o manipulado ali, aquele que estava sendo comandado por um coração ainda mais tenebroso e frio que o meu.

Ele me manipulou desde o inicio, fez de mim uma peça em seu jogo, uma de suas mais poderosas e essenciais peças. Ele sempre me prometeu que faria de mim um destruidor, um flagelador, um deus nesse mundo de mortais.

E eu sempre acreditei em cada palavra que saía de sua boca. Sempre me exaltei por ter sido o escolhido, por ter sido aquele que foi selecionado para desempenhar esse papel.

Até alguns anos atrás, eu aceitaria esse destino, suceder meu mentor, continuar disseminando suas lições de ódio e discórdia, espalhando seu legado de escuridão e perseguição.

Hoje, já não o quero mais, antes o repudio com todas as minhas forças.

Jamais voltarei a ser dominado por ele.

Jamais permitirei que ele volte a me controlar.

Jamais permitirei que as trevas que habitam o coração dele, tornem a habitar o meu também...

- Depressa, apaguem o fogo! – berrou alguém ao longe, mal podia reconhecer a voz naquela balbúrdia.

Tudo era consumido e devorado pelas chamas do fogo, lambido com tal deleite e tal prazer, que elas apenas se contentavam quando só restavam as cinzas.

Os criados da fazenda moviam-se apressadamente, buscando baldes e mais baldes de água, tentando dominar o fogo, mas era em vão, porque tudo o que eu amava perdia-se ali...

Minhas lembranças com meu pai perdiam-se ali. Do dia em que ele pegou-me em seus braços, levou-me para cavalgar em seu cavalo e disse que tudo aquilo, algum dia, seria meu.

Mesmo sendo um menino, uma criança, eu já era capaz de compreender.

A guerra. Ela havia batido à nossa porta, ela havia nos alcançado. E agora, ela nos roubava absolutamente tudo.

Algumas semanas atrás, meu pai saíra de casa, convocado para liderar um batalhão. E mesmo que eu o tenha abraçado, mesmo que ele tenha me dito que voltaria para cuidar de mim, de Christian e de mamãe, eu sempre soube que aquela seria a última vez em que o veria.

Mamãe nos arrastava através da mata silenciosa, puxando minha mão, não deixando que eu voltasse até nossa casa, por que ela não deixava?

Em seu braço, encolhido de frio e chorando pela movimentação intensa, Christian estava.

Havia lágrimas em meus olhos. Eu não queria ir embora...

Mas o fogo ainda ardia em minha pele, o calor das chamas parecia ter impregnado em minhas roupas, e o cheiro da fumaça ardia em minhas narinas.

Corremos até o celeiro, Edward nos aguardava com uma velha carroça repleta de feno. Acenando para nós, ele nos instigava a subir nela e lutar por nossas vidas.

Ainda fui capaz de testemunhar aqueles estranhos cruéis, aqueles seres desprovidos de amor e compaixão, incendiar a senzala, libertando os escravos de papai antes que o fizessem.

Ele levantou a aba de seu chapéu, olhando para meu semblante assustado. A noite nunca esteve tão fria, tão negra para mim. Eu nunca havia sentido tanto medo assim antes.

Mamãe apertou Christian contra seu seio, tentando fazê-lo parar de chorar, ela estava tão compenetrada, tão distraída em niná-lo, que nem mesmo notou minhas lágrimas. Apenas Edward que já conduzia a carroça, açoitando a pobre égua, é que tornou seu olhar compadecido para mim:

- Limpe essas lágrimas, menino, vosmecê precisa ser forte agora, homens não podem se dar ao luxo de demonstrar fraqueza nesse momento.

Obedecendo-o, passei os punhos cerrados nos olhos, esperando que agora que estávamos a salvo, todo aquele medo passasse, todo o meu interior se aquietasse.

Mas... bastava que eu olhasse para trás, para ver o clarão alaranjado contra o céu negro. As labaredas eram tão intensas, tão altas, que pareciam roçá-lo, rasgá-lo ao meio. Era assustador...

Fiquei a observar o que restara de nosso lar rapidamente se acabar em cinzas e escombros, e senti meu medo tornar-se raiva. Por quê? Por que haviam feito aquilo conosco? Não era justo!

E papai...

Papai estava...

Tive raiva. Muita raiva. Minha fúria era tão intensa que poderia até mesmo intimidar as chamas daquele fogaréu, daquele inferno.

Enquanto atravessávamos a imensa e interminável plantação de cana-de-açúcar, fiquei a remoer aquelas perguntas sem respostas em minha mente. Estava tão revoltado, tão furioso. Sentia raiva de tudo e de todos a minha volta. Sentia raiva de mim mesmo.

Não devia ter permitido que papai corresse para aquele campo de batalha. Não deveria ter deixado que aqueles calhordas destruíssem nossa fazenda. Porque agora não tínhamos mais nada. Perdemos tudo em apenas um piscar de olhos. E o solo que antes nos parecia tão sólido e seguro, revelou-se areia movediça, um pântano fétido e lamacento.

Naquela noite, não consegui pregar os olhos. Naquela noite não consegui deixar de pensar no quanto eu os odiava, os homens que haviam feito isso a mim. Eu queria tanto pagá-los na mesma moeda. Queria arrancar tudo o que eles amavam, assim como fizeram comigo.

- Aidan? – minha mãe me chamou, apreensiva.

Tornei meus olhos para ela, para seus lindos e profundos olhos azul-escuros, assim como os olhos de Christian. Meus olhos eram iguais aos de papai, mamãe sempre dizia, tão distantes e frios quanto os dele. Eu tinha muito de meu pai.

Minha mãe estendeu um de seus braços até mim, chamando-me para seu calor, seu aconchego. Mesmo despenteada, suja, ela era linda. Um anjo. E eu não podia recusar seu afeto, estava abalado demais.

Então deixei que ela me envolvesse com seu braço livre, sentindo seus lábios macios roçarem meus cabelos. Aproximei-me do pequeno embrulho que ela ninava tão carinhosamente, Christian dormia profundamente.

Ela sorriu para mim, afagando meus cabelos e sussurrou em meu ouvido:

- Teremos que ser fortes agora, meu bem, e vosmecê terá que ser forte por mim e pelo seu irmão. Promete?

Assenti, a garganta quente e apertada de repente. E voltei a me recostar nela.

Ainda guiando a carroça, Edward tornou seu semblante para trás, no olhar a incerteza, a insegurança. Afinal, a guerra ainda não havia terminado. Muito pelo contrário, estava longe de acabar.

- Minha senhora, para onde devo seguir? – indagou ele, estreitando o olhar com curiosidade e apreensão, mas minha mãe foi segura quanto ao que lhe dizia:

- Leve-nos até o porto, não pretendo ficar um dia a mais em meio a esse caos.

...

- Sinto muito, senhora, mas não posso aceitá-lo como pagamento! – exclamou um homem carrancudo de bigode, ele cheirava mal. Não que estivéssemos cheirosos exatamente.

Havíamos chegado à costa da Virgínia depois de dois longos e fatigantes dias de viagem na carroça de Edward. Não paramos por um minuto sequer, e estávamos famintos.

Ele devolveu o crucifixo de ouro que pertencia a minha mãe, recusando-o como pagamento. Mamãe adorava aquela joia, fora presente de meu pai, mas estávamos tão desesperados para deixar o país – que se encontrava no meio de uma violenta guerra civil – que não nos importaríamos em deixá-lo a nado.

- Por favor, meu senhor, é tudo o que tenho! Nossa fazenda foi incendiada, meu marido está na guerra, não temos mais nada!

O homem coçou o bigode, e seus olhos castanho-claros recaíram sobre o meu semblante, no modo raivoso e hostil como eu o fitava. Desde aquela noite, eu me sentia um pouco diferente.

Ele fitou-me por longos segundos, uma gota de suor deslizou por sua têmpora, e ele estremeceu, tornando a fitar minha mãe, tão lívido como se tivesse acabado de ver um fantasma.

- Sinto muito, senhora, mas é como disse, não posso permitir que embarquem.

E deu-nos as costas, deixando-nos desolados, sem nenhuma outra saída. Apertei os dedos de mamãe nos meus e então, fitei um casal que caminhava pelo porto àquela hora da manhã. Uma fina neblina nos envolvia, eu estava com tanta fome que meu estômago doía.

Minha mãe também. Eu sabia disso ao ver a tristeza e a decepção em seus olhos. Sua esperança de nos tirar dali, de nos dar uma vida melhor, havia sido destroçada por aquele homem de bigode.

Ela abaixou-se até mim, tendo em seus braços a figura sonolenta e faminta de meu irmão, deslizou seus dedos delicados através de meu rosto, e com palavras silenciosas, pediu-me perdão.

- Querido, quero que me faça um favor – ela pegou em minhas mãos e depositou sua corrente dourada em minha palma, fechando meus dedos sobre ela –, quero que vá até a loja de penhores, ela fica bem ali – indicou-me ela com o dedo –, preciso que venda essa joia, precisamos ao menos nos alimentar.

Afagando minha bochecha, ela sorriu, os cílios úmidos, os olhos chorosos:

- Não se preocupe, nós daremos a volta por cima. – prometeu-me ela – Agora vá, esse colar deve valer alguma coisa.

Segui suas instruções, correndo pelas vielas desertas de pedra. A neblina do oceano ainda me envolvia quando alcancei a porta da loja de penhor.

Erguendo-me na ponta dos pés, abri-a, adentrando sorrateiramente, observando as inúmeras quinquilharias e bugigangas que havia ali. Apertei a joia de minha mão entre meus dedos, quando uma voz masculina soou atrás de mim:

- Posso ajudá-lo, menino?

Girei o tronco, encontrando um senhor de mais ou menos sessenta anos, óculos redondos equilibrados em seu nariz fino, um sorriso simpático nos lábios.

Mostrei a joia a ele, e imediatamente, ele curvou-se até mim, tentando observá-la melhor.

- Minha mãe pediu que eu a penhorasse...

Tomando-a delicadamente de minhas mãos e analisando-a com seus estranhos óculos redondos, o homem sorriu-me.

- É uma peça realmente delicada, onde está sua mãe, menino?

- Ela foi avisar nosso cocheiro de que não conseguimos embarcar... Nossa fazenda foi queimada e papai está na guerra.

Olhando-me com compaixão, o homem soltou um longo suspiro:

- A guerra nos alcançou, não é mesmo, meu jovem? É tão triste que estejamos em uma situação tão decadente quanto essa, lutando contra nossos próprios irmãos, afinal, onde está o bom senso?

- Eu... odeio essa guerra. – exclamei, sentindo minha garganta queimar e apertar novamente.

O homem passou a mão em meus cabelos, indo até um alto balcão, analisando cada detalhe da joia de minha mãe, então, de repente, a porta da loja abriu-se, e entrando por ela, um estranho senhor.

Seus cabelos eram grisalhos, sua pele morena, seus olhos eram de um azul tão claro quanto o do céu. Vestia uma elegante capa negra e chapéu. Portava nas mãos uma elegante bengala.

O penhor reconheceu-o imediatamente, saindo de trás do balcão e indo cumprimentá-lo amigavelmente. Fiquei a contemplar aquele estranho...

- Lorde Ducian Satoya, há quanto tempo não o vejo!

Sem nem ao menos notar minha presença, o homem sustentou seu queixo, estreitando seus olhos azuis.

- Não faz tanto tempo assim. – discordou, sacudindo sua capa, e ajeitando suas luvas.

- Ora, tem razão, o tempo parece jamais avançar para vosmecê! Olhe só, não parece ter envelhecido um único dia!

Sorrindo de forma estranha, o senhor de cabelos grisalhos fitou o penhor com desdém:

- Muito perspicaz de sua parte...

- Mas esqueçamos as formalidades, o que o traz de volta à América, principalmente em épocas tão sombrias para nossa nação?

- Tenho um interesse bastante específico. – explicou-se ele, calmamente, e então olhou em derredor pela primeira vez – E vosmecê o que tem feito?

- No momento, estou cuidando de negócios.

Pela primeira vez, a atenção foi toda centrada em minha figura silenciosa. Um garotinho, parado, sujo, faminto e exausto. O oposto daquele nobre cavalheiro diante de mim.

O estranho senhor deixou que seus olhos recaíssem sobre minha face, analisando-me cuidadosamente. Estranhamente, os olhos dele me pareciam familiares.

Centrando-me neles, eu podia identificar algo nostálgico, uma coisa que me lembrava de algo que eu vira há poucos dias.

- Quem é ele? – perguntou o senhor, mas o penhor apenas deu de ombros.

- Mais uma vítima da guerra, soldados da União atacaram a fazenda do pai dele e a incendiaram. Ao que parece, a mãe está desesperada para embarcar e deixar o país, sábia decisão, levando-se em consideração os rumos que a guerra está tomando.

O estranho senhor não pareceu ter ouvido uma palavra que o penhor dissera, seus olhos continuavam centrados nos meus, era quase se nos comunicássemos em uma linguagem silenciosa, como se ele entendesse minha fúria, minha raiva.

Era isso!

Os olhos dele eram... iguais ao meus. Continham o mesmo ódio, a mesma fúria, o mesmo desejo de vingança.

Aproximando-se cautelosamente de mim, e abaixando-se até na minha altura, o estranho de cabelos grisalhos dirigiu a palavra a mim pela primeira vez:

- Diga-me seu nome, menino.

Estranhamente, eu não hesitei em fazê-lo:

- Aidan August McGonagall.

Ele sorriu um pouco, depois estendeu sua mão para que eu a cumprimentasse.

- Sou Ducian Satoya, diga-me, Aidan, vosmecê poderia me levar a sua mãe, eu gostaria de conversar com ela.

Assenti com um gesto, e o penhor ergueu as sobrancelhas como se não entendesse o que estava acontecendo ali. Mas eu, eu sabia. Aquele estranho ancião compreendia minha fúria, o meu âmago, o quanto eu odiava aquela guerra. Estava claro como água, como os olhos azuis dele.

- O que pretende, meu amigo? – indagou o penhor, repousando sua mão no ombro do estranho.

- Farei o meu ato de caridade, ajudarei esses pobres coitados a embarcar para longe desse caos.

- É muita generosidade de sua parte! – exclamou ele, mas no fundo, duvidava de tanta bondade.

Ducian tornou sua atenção para mim, no mesmo momento em que se levantava, pegava a joia sobre o balcão e a mostrava para mim.

- Sua mãe pretendia penhorá-la, não é mesmo?

Assenti novamente, e no instante seguinte, ele devolvia-me a joia, alegando que não seria mais necessário. Conduzi-o até minha mãe, enquanto ele repousava sua mão enluvada em meu ombro, prometendo cuidar de nós a partir de agora, prometendo nos afastar daquela guerra, e o principal ele sussurrou em meu ouvido:

- Eu prometo, jovem Aidan, lhe darei poder suficiente para que na próxima vez que alguém entrar em seu caminho, vosmecê possa liquidá-lo. Esmagá-lo como um inseto bem debaixo dos seus pés!

Sorri com essa possibilidade. Sim, nunca mais seria prejudicado. Se ele cumprisse sua promessa, se ele me desse poder suficiente, se ele me tornasse invencível, eu o seguiria até o inferno, como um filho devotado, um cão fiel, um escravo obediente...

- Do que diabos você está falando, velho decrépito? – vociferei, com os dentes trincados, os punhos cerrados, os braços prontos para tentar arrebentar aquela corrente mais uma vez.

Ducian nada esboçou, nada expressou. Sua calmaria me dava nos nervos.

- Já lhe disse, Aidan, estou aqui para lhe explicar o modo como estive no controle desde o princípio.

Engolindo minhas próprias palavras, e odiando-me por isso, destrinquei os dentes, relaxando meus músculos rígidos, loucos para quebrar cada osso que houvesse naquela casca enrugada e velha.

- Estou ouvindo.

- Muito sensato de sua parte. – murmurou, calmamente, caminhando de um lado para o outro no minúsculo cubículo no qual me encontrava – Certamente que a menina já lhe deve ter contado a respeito de meu pequeno espião.

- O desgraçado do Blake... – recordei-me, lembrando-me das exatas palavras de Agatha naquela noite, da forma como ela se abriu comigo e me revelou que, por minha culpa, Stevan quase a matara.

“Aidan, Stevan Blake estava em seu encalço, desde que você chegou a South Hooksett, e acredito que há muito mais tempo ele vinha te espionando e contando tudo a Ducian”.

“Stevan mandou cartas a Ducian, contando sobre nós dois, mas não sei por que seu mentor ainda não fez nada a respeito disso”.

- Então, talvez eu deva mencionar que mandei Stevan segui-lo onde quer que fosse, desde aquela noite em que você retornou da missão que lhe incubi: matar seu próprio irmão.

- Sim, eu me lembro daquela noite. – concordei a contragosto, percebendo o quão tolo havia sido em todos esses anos, acreditando que ele confiava inteiramente em mim.

Claro que ele não o fazia. Ducian não confiava em ninguém além de si mesmo. Ele me ensinou essa política.

- Quando você retornou daquela missão – prosseguiu ele –, notei que havia algo de errado com você, algo estranho, você já não era mais o mesmo. Então, chamei Stevan e ordenei que ele lhe seguisse em cada missão, a cada vez que você deixava essa sociedade, fosse por ordens minhas ou por vontade própria, ele reportava cada passo seu para mim, deixando-me a par de tudo o que você fazia.

Franzi o cenho quando caí em mim e percebi meu erro. Meus punhos cerraram-se novamente, quase moendo meus ossos pela força bruta, o ódio percorria meu corpo, endurecendo meus músculos.

- Você sempre soube... – sussurrei, cada vez mais convicto, cada vez mais certo – Você sempre esteve a par de tudo.

- Exatamente. – ele concordou, entrelaçando seus dedos calmamente – Eu sempre soube da criança que você havia negligentemente deixado escapar, de seu acordo com Stefano. Stevan me contou cada detalhe do que houve naquela noite, e devo dizer que sua relutância em tirar a vida da criança despertou minha curiosidade. Estava óbvio para mim que você não seria capaz de cumprir seu dever como caçador.

Ele respirou profundamente, fazendo uma pequena pausa. Mas não era preciso, eu mesmo já era capaz de assimilar tudo, cada fato, cada detalhe que escapara de mim, juntando todas as peças daquele quebra-cabeça sombrio em meu passado.

- Então, ordenei a Stevan que seguisse a mulher. Evangeliny Bryce, a esposa de Stefano, grávida de seis meses de uma criança, uma menina.

- E o que você fez então? – indaguei, cuspindo as palavras através de meus dentes trincados.

- Simples, meu caro. Ela estava desesperada para fugir, esconder a criança do restante de nós, diga-me, Aidan, como você acha que ela foi parar em South Hooksett? Uma cidade, que coincidentemente, você já havia visitado há muitos anos por possuir histórico de envolvimento com um desertor? Não acha coincidência demais?

“Eu estive no comando desde o princípio, Aidan. Eu movi cada peça nesse tabuleiro, e o que você acha que foi uma miraculosa obra do destino, foi na verdade um movimento meu, articulado e planejado em seus mínimos detalhes”.

“Eu ordenei a Stevan que conseguisse passagens de avião para Eva, dizendo para que ele bancasse o mortal solidário, disposto a ajudar uma mulher desesperada. Eu a enviei para New Hampshire, dizendo a ele para persuadi-la a ir para lá, controlando sua mente fraca se fosse necessário, e assim foi, na manhã seguinte, ela embarcava, rumo a uma cidadezinha no meio do nada, para onde dezessete anos depois, você seria mandado, sob minhas ordens, e convenhamos, Aidan, nem mesmo foi necessário um grande pretexto, já que de fato havia uma dupla de desertores agindo por lá”.

“O resto são apenas detalhes, eu esperei pelo momento certo, esperei que a jovem Agatha tivesse amadurecido o suficiente, que sua beleza jovial já tivesse desabrochado, e então, eu mandei que você retornasse, assumisse o embuste de estudante no colégio dela, e finalmente reencontrasse a criança que você um dia poupou!”.

Diante de minha falta de palavras, Ducian prosseguiu com seu joguinho sádico, sabendo que estava me atingido, que estava me afetando, sabendo que eu estava prestes a duvidar de mim mesmo, de meus sentimentos. Da veracidade deles.

Por que como eles poderiam ser reais quando Ducian havia planejado tudo desde o princípio? Como eu poderia continuar buscando consolo naqueles sentimentos – os únicos que já afloraram em meu coração negro – sabendo da verdade a respeito deles?

Naquele momento, Ducian terminava de arrancar o que mais apreciava em mim. O que eu vinha cultivando nos últimos meses ruiu. E eu fui ao chão.

- Diga-me, Aidan, ainda acredita em destino depois de tudo isso?

- Só me diga porque... – sussurrei, a fronte incapaz de ser sustentada. Sentia-me derrotado, um fracote, o mais covarde e desgraçado dos homens.

- Por quê, Aidan? Ora, é simples! Eu queria ver até onde sua lealdade a mim se estendia! Até onde seria capaz de ir sem me trair e me apunhalar pelas costas, o que convenhamos, não demorou muito, afinal, foi apenas você reencontrá-la para se esquecer de tudo o que lhe ensinei, de tudo o que eu lecionei, do quanto eu acreditava em você.

“Como o canto de uma sereia ela te atraiu, enfeitiçou você, cegou você, e agora esses são os resultados de seus atos, todas as conseqüências. Agatha está morta, e me diga, meu filho, o que lhe restou senão eu, o homem que te ama como um pai ama seu filho?”.

- Mentira... – sussurrei, rebelando-me contra suas palavras, tentando me convencer de que era tudo mentira, Ducian podia ter forjado nosso reencontro, mas meus sentimentos por Agatha sempre foram reais... Ou pelo menos era disso que eu tentava me convencer.

- Quero que saiba, Aidan, que estou disposto a lhe perdoar. Que embora você não tenha passado nesse teste de lealdade, eu ainda o quero como meu sucessor, eu ainda pretendo fazer de você aquele quem assumirá meu legado!

Ducian virou suas costas para mim, pronto para se retirar, deixar-me ali, sozinho, remoendo cada uma de suas palavras, quando eu o chamei, uma última vez:

- Foi só por esse motivo que me fez passar por tudo isso? Só para testar minha lealdade? – minha voz parecia estranhamente morta, sem vida, exatamente como eu naquele momento: sem vontade alguma de viver.

Ele tombou seu semblante para trás, fitando-me com seus olhos azuis e mortíferos, os olhos do mal, eu os descreveria assim.

- Não, Aidan, na realidade há mais uma coisa. – sussurrou ele, e vendo que eu não diria mais nada, complementou – É meu dever evitar que a última profecia se cumpra, meu pai me incubiu dessa tarefa, e preciso cumpri-la.

- Última... profecia? – repeti com dificuldade, nunca havia ouvido nada a respeito dela.

Ducian deu de ombros, e sua mão abriu a porta de minha cela, pronto para me deixar sozinho, pronto para me abandonar na escuridão novamente.

- Pense em minha proposta, Aidan, posso lhe conceder uma segunda chance, posso lhe tirar desse buraco a qualquer minuto, basta que jure lealdade a mim mais uma vez, e me sirva novamente.

Não respondi a ele. Não tinha forças para tal, muito menos vontade. Simplesmente abaixei meu semblante, sem saber no que poderia me apoiar, agora que sei que fui sua marionete desde o princípio. Ducian me jogou no caminho de Agatha, Ducian havia forjado nosso reencontro.

Estava começando a duvidar de tudo no qual vinha acreditando. Tudo que estivera conservando vivo dentro de mim. Talvez...

Talvez, eu devesse deixá-la ir. Talvez fosse a coisa certa a se fazer. Agora que sei da verdade, talvez devesse fazer isso. Deixar que sua alma repousasse, descansasse em paz. Mas a dor de me imaginar completamente sem ela sufocou minhas incertezas.

Eu amava Agatha, independente de quem havia nos colocado frente a frente, destino ou Ducian, era inegável a veracidade, a intensidade de meus sentimentos por ela.

Por outro lado, Ducian queria me oferecer uma segunda chance. Deveria... aceitá-la?

Não, meu coração se negava a mergulhar em trevas e solidão novamente. Eu me recusava a ser acorrentado a ele novamente. Não quero voltar a ser o monstro que fui. Não quero me perder na escuridão.

Eu quero apenas encontrar uma saída. Uma maneira de sair daqui. Minha mente já começava a arquitetar um plano de fuga, mas antes precisava me recompor, revigorar minhas forças. Não seria fácil. Mas Christian foi capaz de escapar desses mesmos calabouços uma vez, talvez eu também seja capaz disso.

Talvez eu deva fugir, procurar Lucius e me aliar a ele. Porque havia me decidido afinal, se era guerra que Ducian queria, então ele teria guerra.

A partir de hoje, viveria apenas para um objetivo: matar Lorde Ducian Satoya, o homem que um dia chamei de pai, o que homem que fez de mim um monstro, o homem que um dia me prometeu poder ilimitado.

O mesmo homem, que hoje odeio com todas as minhas forças.

Meu coração inflamou com essa ideia, matar Ducian com minhas próprias mãos. Sim, nada me daria mais prazer, nada me deixaria mais completo. Viveria pela vingança, assim como Christian. E me vingaria de todos que haviam me prejudicado.

Todos eles iriam me pagar, e muito caro.


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Notas finais do capítulo

E o Aidan finalmente tomou uma decisão!

O que será que acontece agora?

Esse Ducian é ardiloso, ele esteve por trás de tudo desde o começo! O.O

Coitado do Aidan, tá desolado com essa revelação...Mas logo ele supera!O que acharam do Aidan pequenininho??? Ele era um menino meio traumatizado pela guerra... Tadinho!

Próximo capítulo, mais lembranças, talvez a fuga, depende do desenrolar dos fatos... rsrsrsrsrs...

Reviews???

Beijinhos!!!!



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