Crônicas de Sieghart escrita por xGabrielx


Capítulo 14
A Princesa — Alvorada


Notas iniciais do capítulo

Adicionado em: 08/05/14 22:36

Início da segunda história. Finalmente terminei com aquela maldita colônia de gosmas.

Espero atualizar pelo menos uma vez por mês.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/135239/chapter/14

Não era necessário aviso. Todos sabiam. Todos souberam.

Estava no ar.

A paisagem levemente borrada de lágrimas, onde quer que se olhasse; o cheiro da morte, não a violenta: uma morte de quem viveu o que tinha de viver e agora descansa, mas, ainda assim, uma morte, e um ar áspero, que roça a pele em busca de contato, de calor. Busca o consolo ou busca consolar? Talvez ambos. O ar não tem braços, mas se fazia presente: “Estou com você.”.

A cidade toda estava. O mundo todo estava. Não chorava, mas compadecia da dor. Ainda era começo do dia, então não poderia vestir-se de luto, mas a luz da mais brilhante estrela alcançava o quarto.

Era uma luz suave, cuidadosa. “Não a machuque!” avisaram as nuvens, finos véus brancos que cobriam a cidade, como se a protegessem nesse momento de dor. A luz ouviu. Adentrava pela grande e alta janela, ultrapassando os vidros, e acariciava aquela pele já sem vida. Fazia o melhor para iluminar todo o quarto – a enorme cama, os quadros, um com uma pequena menina e outro, imagem de várias luzes em um vazio de escuridão, o armário e o espelho grande o suficiente para refletir um adulto inteiro e mais metade do quarto... O quarto todo deveria estar claro. Vivo, acolhedor, para quando sua primeira convidada de todos os dias adentrasse.

Ela não sabia, e nem saberia. Não poderia, pois era ainda nova demais para entender. Fez o ritual a que estava habituada: com o maior cuidado do mundo, abriu a porta sem fazê-la reclamar um rangido sequer e, ao adentrar o quarto, fechou-a, novamente, como se manuseasse o objeto mais precioso de sua vida. Então, na ponta de seus pés, descalços e com os sapatos à espera atrás da porta, dirigiu-se até as altas janelas. Era pequena, baixa, mas estava crescendo. Em breve, nem precisaria saltar para subir à igualmente alta cama.

Com um leve salto e empurrão, mandou as janelas para fora, uma se virando para a esquerda e outra para a direita. Eram altas, gigantes, mas extremamente leves. Fizeram o giro total e abriram para o ar da manhã a entrada ao quarto.

Então, a garota correu, agora, para fazer barulho, mesmo, até a cama.

– Marea! Marea! – chamou, momentos antes de chegar ao colchão que ficava à altura de sua cabeça. – Marea!

Chamou mais algumas vezes, mas não teve resposta. Por isso, com esforço, saltou e puxou com os braços o resto de seu corpo até o topo da cama. Chamou mais uma vez a avó, desta vez em tom de interrogação.

– Não vai levantar?

Ainda não respondia. Cutucou seus braços e até mesmo o rosto, podia fazer cócegas na ponta do nariz e base da orelha, e até mesmo chacoalhá-la, mas não acordava com o sorriso quente de sempre. Após olhar e pensar, ela lembrou do que Marieleea tinha dito uma vez, que, uma hora, tudo que é vivo vai dormir para sempre. Assim como seus pais, até mesmo o Herói do Êxodo, Er, fora dormir para sempre. E, sim, até mesmo a poderosa Marieleea, Monarca de Taelia, do reino de Kwaliea, sua avó, até mesmo ela, um dia entraria nesse sono.

Lembrou-se da pele fria aos seus toques. Toda vida é quente; isso ela sabia. E sua avó não estava mais quente.

“Ela me deixou.”, pensou. Seu peito pareceu afundar em um buraco. Ele fez o favor de deixar seu corpo no lugar, mas o espaço vazio ao lado do seu coração agora parecia tão pesado quanto o castelo. “Estou só.”

O vento invadiu o quarto. Apressado, atirando para os lados as cortinas, quase desesperado, mas com o maior cuidado possível ao passar em volta da menina. “Não!” disse o ar áspero, suave, cuidadoso. Indeciso. Não sabia lidar com crianças, mas sussurrava, quase gritando, e a envolvia, balançando e fazendo dançar seus cabelos da cor da aurora. “Não está sozinha!” falava, com pressa.

Mas a menina sentada, chorando ao lado da avó, não ouvia, nem ouviria. Era nova demais para entender. Em quê se comparava o vento à pessoa mais importante de sua vida?

“Tão pequena...” falavam os mestres “...tão jovem...”.

Quem a acolheu foi Omoron, quem todos concordavam ser o melhor para cuidar dela. Não era de Taelia, nem de Kwaelia, mas ali morava, no castelo, junto da antiga rainha. Contava-se que ela devia a vida ao homem, que veio de algum lugar das Terras Menores. A exata história não se sabia. Talvez pretendessem levar para o túmulo os detalhes. Ainda assim, todos sabiam que não havia ninguém em quem Marieleea confiasse mais que ele. O homem ganhou uma filha e a princesa passou a ter um pai e um irmão dois anos mais velho, Ioreon.

Isso havia sido anos atrás.

Então, fez dezesseis de idade. Sua avó sempre disse que uma menina só vira mulher aos vinte e quatro. Porque sim, explicava. Não era resposta, mas ela se foi antes de realmente responder. Mestre Ballor viria a dizer que era quando a mente finalmente amadurecia. Naturalmente, para alguns era mais cedo, e para outros, mais tarde. “Para você, terá que ser mais cedo, princesinha.” completou o velho, com a voz triste. Ele também morreria, um ano antes de finalmente ver a princesinha se tornar rainha. As lágrimas iriam subir quando se virasse para as cadeiras dos mestres para receber suas bênçãos e visse a de Ballor vazia. “Rainha, mesmo, porque ‘rá’, neste caso, precisa do ‘inha’”, se lembraria. Era seu sorriso que carregava consigo, assim como o de Marea, o do pai que nunca chegou a realmente ver e o da mãe que morreu cedo demais. Todos eles sorriam em suas memórias, então não podia chorar justo no dia de sua coroação. Ela seria forte, pois foi para isso que nascera; este era seu propósito.

Mas chorou. Aguentou até o último minuto, mas o minuto em que chorou se transformou em horas. Não era digna de ser chamada rainha. Não merecia. Não ela, não assim. Ninguém do povo a viu chorando, pois já estava de costas e ninguém mais a veria neste dia, mas o ar a traiu. Sem mesmo saber o porquê do choro, ele a acompanhou na tristeza, e toda Kwaelia soube.

Trancou-se no quarto e chorou. Ioreon só parou de chamá-la e bater na porta quando seu pai veio buscá-lo. Temeu a punição que sofreria no próximo dia, mas em vez disso recebeu amor. “Estamos com você.” diziam todos. O ar, desta vez, só passava a mensagem, e desta vez ela era já velha o suficiente para entender. Tantas pessoas estavam junto dela... Tantas pessoas dependeriam dela... Passou a amar ainda mais a cidade. Jurou que se tornaria em alguém digno de ser chamada de rainha.

“Como eu era boba.”

Confinada a vida toda no castelo, nunca chegou a conhecer pessoas de verdade. Mesmo que só em nome, pois os mestres ainda cuidavam da maior parte dos deveres, somente ao se tornar rainha a jovem teve contato de verdade com o povo, e viu a diferença entre ela e os outros. Todos os que conhecia – os mestres, os ministros, os guardiões e mesmo todos os que cuidavam da limpeza regular dos cômodos mais usados – eram extremamente qualificados em suas áreas ou em algum ou mais campos do conhecimento. Nunca, com uma pessoa comum, poderia conversar sobre as coisas que conversava com os criados.

Mesmo assim, entendeu que lhe faltava sabedoria. Podia ser mais inteligente, podia aprender mais facilmente que os outros, mas a orientação dos mestres não era o suficiente – foram eles que quiseram isolá-la das pessoas comuns. Ela precisava de outro tipo de sabedoria. Por isso, dois anos após ser coroada, a rainha fugiu do castelo para conhecer o reino.

Os mestres fizeram bem todo esse tempo... que diferença faria mais uns dois anos cuidando do reino? Quando voltasse, estaria muito mais qualificada para cuidar das pessoas. Ainda assim, sabia que se dependesse deles ela nunca deixaria a cidade, então fechou-se para que o vento não lhe falasse e nem o solo a sentisse. A única mensagem que deixou foi para Ioreon, despedindo-se e prometendo voltar. Tornou-se uma estranha em Kwaelia e conheceu o bom e ruim de suas pessoas.

Os mestres tinham feito um bom trabalho. Tinha estudado a história, os lugares e as pessoas. Encontrou exatamente o que esperava encontrar, mas isso não a impediu de se deliciar com as maravilhas e entristecer com as injustiças que encontrava. Kwaelia era a nação mais desenvolvida de Ernas, e, ainda assim, tantas pessoas ainda sofriam... Os mestres poderiam ensiná-la sobre muitas coisas, mas nada poderia se comparar com a experiência. Sabia como viviam as pessoas, mas não sabia como era viver daquele modo; daqueles modos.

Tantas pessoas diferentes, tantas histórias, tantas... vidas. Amou mais ainda o mundo, e o mundo a amou de volta.

Voltou ao castelo após ter completado vinte anos. Reencontrou aqueles que havia deixado e finalmente voltou a sentir o vento. Evor, Capitão da Guarda Leste chegou a abraçá-la enquanto chorava, e a mestre Malar foi a primeira a se desculpar, seguida de Alla, e até Erkor, o Cabeça de Pedra, admitiu ter estado errado em querer mantê-la no castelo, embora isso não a tivesse poupado do que seria o início de um longo sermão.

A felicidade não durou muito. Soube que Omoron tinha morrido. Teria preferido aguentar os sermões de Erkor o resto da vida a ouvir esta notícia. Os mestres cuidavam de sua educação, mas Omoron foi sua família. Seu filho também estava entre os que a receberam no castelo, e ela sentiu. Sabia que ele não pretendia deixá-la saber, mas o vento não mentiria, não para ela. No fundo, mesmo que não quisesse, Ioreon a culpava pela morte do pai. O irmão que passou a ver como homem ainda a amava. Ele, também, a amava como mulher. A amava, e se necessário fosse daria sua vida por ela, mas não poderia mais viver com ela, ao lado dela.

Ele nunca poderia ser seu rei.

Agora já era forte o suficiente para segurar as lágrimas. Nem mesmo os mestres souberam de sua dor – o seu segredo, nem sua voz, nem seu corpo, nem mesmo o ar compartilharia com ninguém. O mundo era seu confidente, e ele não a trairia.

Tinha agora vinte e três anos.

Prometera que a morte de Omoron não seria em vão – foi graças a ele que ganharam mais tempo. Na próxima vez ela estaria lá, para ser a Rainha de Kwaelia e fazer o que era devido. Não estava ainda à altura da avó, mas com o tempo ela poderia superá-la, sabia que sim, e os mestres também concordavam. Ela poderia salvá-los da maldição... Da injustiça que os perseguia... Ela tinha que fazê-lo. Er, o Herói do Êxodo fora o primeiro, e foi quem tanto os salvou quanto condenou. Da última vez, quem os salvou foi Ermonoava, o Sacrificado, que como o Herói, que deu sua vida por Kwaelia. Antes dele, Merenooa e Erjovore, os Gêmeos, também cumpriram seus deveres, e antes deles, Tohaoone, a outra Marieleea e também muitos outros protegeram o reino. Era agora a sua vez.

Observava a cidade da varanda do seu quarto. Seu cabelo chegava quase à altura da cintura. De vez em quando, o vento passava, carregando para um lado e para o outro os fios hora vermelhos, hora laranjas, hora amarelos. Mesmo a luz evanescente do Sol era já suficiente para criar a ilusão de brilho em seu cabelo. “Agora, sim, seria a hora de chorar.” pensou, mas não sentia vontade alguma. Sabia o que vinha pela frente. O vento lhe sussurrava, falava. O mundo era seu amigo, e como amigo, avisava, mas nada podia fazer – dessa vez, realmente não tinha ninguém ao seu lado.

Os mestres disseram que levaria uma década. Que Omoron ganhara dez anos e ainda enfraquecera a maldição. Foi isso que disseram, mas não era o que o vento lhe dizia. Não era o que ela sentia. A maldição era mais forte do que alguma vez poderia ter sido. Não era possível que todos os outros tivessem enfrentado algo tão... tão grande. Não estava certo, não podia ser... mas era. O vento não mentiria, seu corpo não mentiria. Ela sabia o que sentia.

A avó poderia fazer algo, mas ela não era a avó. Marea morrera, e ainda não tinha nem metade de sua força... nem metade de seu poder...

A mais brilhante estrela do dia se escondia na distância, atrás do solo quase tão laranja quanto o céu. Nesse crepúsculo, assim como enchia o céu, a escuridão encheu seu coração. Sua esperança e coragem, tão reluzentes quanto seu cabelo, se foram com a luz, evaporando como aquele brilho verde que apareceu para se despedir do Sol.

Chamavam-na de Rainha da Aurora, e como o nascer do dia, sempre amanheceu. Kwaelia era sua e estava com ela, e o mundo era seu amigo. Nenhum deles, nem o tempo, nem as suas pessoas, nem o ar e o solo e a água, nem os sonhos nunca a trairiam.

Quem a traiu foi o destino.

Não era possível, ela sabia. “O destino não é amigo nem inimigo, princesinha... ele somente é.” lhe ensinou Marea, mas, ainda assim, sentiu-se traída. A aurora acabara há muito tempo, e a noite seria escura demais. Suas pessoas nada poderiam fazer que ela não pudesse, e o mundo... era o mundo. O destino é maior que todos, maior que tudo, e contra ele, que não sente, que não julga, que somente é, ela estava só.

O céu ainda iluminado levou mais alguns minutos para finalmente perder sua luz. Nesse tempo, ela tentou pensar em todas as pessoas que conhecera e lhe eram importantes, procurando algum conforto em suas lembranças, mas o sentimento que lhe veio não era aquele amor quente, acolhedor, pelos que se foram e por aqueles que ainda viviam. O que sentiu foi o mais profundo desespero. Um desespero líquido e borbulhante, tão fino que conseguia alcançar todos os cantos de seu corpo, e lodoso, tão sujo e vil que chegou ao ponto de impregnar todo o seu ser e sugar toda vontade que ela pudesse invocar.

A noite era fria e sem estrelas. Deitou-se na cama, mas continuou acordada. Talvez devesse chorar. Parecia querer chorar, mas... mesmo que quisesse... não conseguiria. Tudo estava... claro demais. Isso... estava mesmo acontecendo?

Essa seria a última chance, aquela que Omor comprara com sua vida, mas ela era nova demais... era cedo demais...

Já era velha o suficiente para entender, mas ainda assim... Os dez anos teriam sido o suficiente. Talvez até oito, sete bastasse, mas foram menos de três.

Não teria tempo.

Não poderia contar para os outros. Não submeteria aqueles que amava àquele sofrimento sem esperança, àquela escuridão desesperadora.

“Não.” disse para o ar. Desta vez, não... No momento, só ela sabia. Só ela sentia o desespero, e pediu ao ar que, por enquanto, assim fosse. Que, enquanto pudesse, somente ela soubesse do inevitável fim de seu mundo. Que enquanto vivesse, só ela sofresse. Que desta vez, o ar não acompanhasse na tristeza.

A dor seria só sua.

A alvorada veio, o Sol banhou o mundo com sua luz e sobras e agora se punha. O crepúsculo iniciava e anunciava o fim; era o fim.

E ela era ainda nova demais, e estava só.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Crônicas de Sieghart" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.