Batendo nas Portas do Inferno escrita por KAlexander


Capítulo 9
Capítulo 4 - Baú Escuro de Desejos (Parte 2)


Notas iniciais do capítulo

Bem, este capítulo está mais intenso que os outros... Realmente espero que apreciem, pois foi um pouquinho mais complicado de se escrever do que qualquer outro e estava planejado desde o início da fic. ^^



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Desacorrente seu cão do inferno. Essas palavras marcaram minha alma como fogo, incendiando meu espírito como se possuíssem vida. Eu não podia culpar Christian por isso. Honestamente, eu deveria agradecê-lo por me compreender e fazer... o que fez por mim na noite seguinte.

Obviamente ele não sabia da existência de Sophia, mas minha tensão e a estranheza de minhas atitudes haviam sido o suficiente para despertar uma desconfiança natural – e por que não saudável? Ele estivera me observando silenciosamente nas últimas cinco noites sempre que se encontrava em casa; eu via seus olhares discretamente curiosos e preocupados, contudo os ignorava, afastando-me de sua presença inabalável.

Sim, eu estava realmente afetado por Sophia. Era um fato inegável. Entretanto, prender-me à sombra de sua presença não estava em meus planos. Eu possuía toda uma eternidade de morte para usufruir e essa realidade retornou aos meus pensamentos com uma força enorme, como um tufão varrendo o campo de poder que era todo o meu ser.

Em suma, eu necessitava de uma distração. Não. Mais do que uma simples distração. Eu necessitava de um foco. Um objetivo. E, para mim, um vampiro, havia somente uma única e alcançável forma de se abster de todo o mundo real, de todas as paixões devassas, do todos os amores e medos mais intensos e tangíveis que podem destroçar um coração imortal. Um único modo de submergir nos sentidos sem ter medo de ser asfixiado e tragado pelo negror que acompanha qualquer espécie de caos. Ah, eu necessitava descer àquelas profundezas chamejantes de minha alma de monstro! E lá eu encontraria o que Christian estava chamando para sair. Venha, venha... Está livre para sair...

Aquele animal que eu mantinha encarcerado, aquela pobre besta que voltara a uivar para a noite, suplicava agora para que eu a libertasse, arranhando as paredes, agora esburacadas, de meu coração de pedras vivas e sangrentas.

E eu não mais declinaria à sua vontade.

Recolhi-me no aconchego incólume de meu quarto e desabei na inconsciência, com uma excitação que não cedeu rapidamente ao sono, logo após minha curta conversa com Christian. Eu ansiava pelo próximo crepúsculo, pelo momento em que eu poderia acordar e reger novamente a escuridão a meu bel-prazer. A abstinência dava sinais em meu corpo, mas eu sentia meu interior pulsando vivo com a expectativa que me movia.

Agradecido recebi o amanhecer no negrume do quarto, o momento em que poderia, finalmente, descansar minha mente. Um último vestígio de pensamento se desprendeu de meu cérebro enquanto meus olhos se fechavam vagarosamente. Christian... Faça valer a pena...

Quando o sol desapareceu no horizonte despertei, o mais cedo que a cautela me permitia. Escancarando a porta com força, corri pelo corredor até o quarto de Christian. A porta estava aberta, portanto entrei sem pedir licença. Olhei ao redor pelo aposento, a luz noturna se infiltrando pela janela aberta com um brilho suave. Um segundo mais tarde vi o vulto de Christian se esgueirando pela porta da pequena suíte. Uma surpresa, obviamente, e um sorriso se formou em meus lábios após olhá-lo de cima a baixo. Por algum motivo ele havia abandonado as botas de couro e os jeans juntamente com todo o estilo contemporâneo de bad boy que eu conhecia tão bem. Surpreendentemente o havia substituído por um terno negro perfeitamente ajustado ao seu corpo e uma camisa azul-marinho. Seus cabelos sempre desalinhados haviam sido penteados de um modo elegante sem parecerem antiquados. Com as mãos enfiadas nos bolsos casualmente, ele caminhou até mim. Simplesmente deslumbrante.

– Se vista de acordo, meu amigo. – Ele disse ironicamente solene.

– Para quê? – Disparei imediatamente, embora meu humor estivesse nas alturas.

Christian não me respondeu, apenas deixou o sorriso de raposa brincar em seu rosto; seus olhos estavam acesos com uma luz terrivelmente contagiante, algo que precedia a morte de suas vítimas... Foi quando eu soube que ele não pretendia me decepcionar aquela noite. Ah, eu mal podia esperar...

Assenti uma vez para sua resposta muda e refiz o caminho até meu quarto, fechando a porta atrás de mim.

Enquanto escolhia algo “de acordo”, não tentei adivinhar os planos de Christian. Eu o deixaria me surpreender. Eu queria que ele o fizesse, que me guiasse para o que quer que estivesse tramando, como a uma criança que confia no adulto que segura sua mão ao brincar no parque. Sim, deixaria que ele me guiasse. Ele e aquele dentro de mim. Eu o deixaria correr até o próximo amanhecer e não me importaria com os estragos. O que eram os danos de um cão condenado?

Uma vez mais eu seria o sonâmbulo apaixonado pelo tremor da Lua.

Usando um terno cinza-acetinado, meu cabelo longo devidamente assentado, deixei o quarto e me dirigi às escadas. Estaquei no topo quanto vi a figura de Christian a me fitar lá embaixo, sorrindo placidamente assim como eu o havia feito ao surpreender-me no quarto. Retribuí o gesto ao descer rapidamente.

Nenhuma palavra foi dita do momento em que deixamos minha casa, ele dirigindo meu carro em alta velocidade – o que era costumeiro, – até o momento em que estacionamos defronte a um prédio elegante numa área nobre da cidade. Minutos depois duas jovens, uma delas a que estivera com Christian em casa – viva, o que me espantou – surgiram na entrada suntuosa.

– Conheça nossas acompanhantes – ele murmurou maldosamente ao meu lado, pouco antes de entrarem no carro.

Sangue... Perfume... Vozes aveludadas... Corações pulsando agitados... O meu entre eles. Christian nos apresentou, mas não fiz questão de registrar seus nomes. Apenas sorri, deixando que a sedução em meus olhos se encarregasse das jovens que me observavam encantadas. Não podia culpá-las pela fome e pelo desejo que a juventude de ambas provocava em mim. Se alguém tivesse de ser culpado seria Christian, e esta seria a última coisa que eu faria ao longo daquela noite.

Novamente em movimento, elas se esqueceram de nós momentaneamente. Conversaram sobre roupas, sapatos, homens, revistas, festas e mais uma infinidade de inutilidades com as quais eu ria silenciosamente, sendo acompanhado por Christian, que dirigia relaxado ao som da música que vinha da rádio.

Cerca de meia hora depois estávamos todos no enorme jardim de uma mansão, encimados pela adorável luz da noite. Ah, eu tinha de admitir: Christian era insuperável. A música atravessava o ar com a brisa fresca e adocicada pelo perfume das flores que se espalhavam por arranjos inacabáveis em todos os cantos do espaço. Eu captava as vozes das conversas animadas das dezenas e mais dezenas de pessoas ao meu redor. Eu as via dançando e sorria inconscientemente enquanto as cores de vestidos, ternos, peles e cabelos enchiam meus olhos. Eu sentia o cheiro característico das bebidas que eram servidas se espalhando e me envolvendo. A comida exalava os odores dos condimentos, unindo-se e misturando-se ao aroma do sangue, dos humanos quentes que eu fitava.

Que bela festa! Christian me explicara rapidamente que era o aniversário que algum amigo das jovens que estávamos acompanhando. E, naquele exato segundo, sentado numa mesa num canto um pouco afastado, uma taça de champagne intocada na mão, eu ria alto ao ver Christian, cercado por montes de outros casais, dançar com a mulher loira que eu deveria, supostamente, estar acompanhando. Na realidade, o riso jamais abandonava meus lábios. Era muito divertido me passar por humano, sem me preocupar em ser reconhecido ou observado por olhos acusadores. Eu era apenas mais um convidado a ser servido e mimado por todos aqueles criados que caminhavam de um lado para o outro, sorrindo abertamente como se aquele fosse o emprego dos sonhos.

Levantei-me algum tempo depois e comecei a caminhar, me afastando do centro das comemorações pela lateral da gigantesca casa até encontrar uma fonte de mármore branco, próxima às árvores que cercavam o jardim; em seu centro três musas davam as mãos no alto, as costas unidas, suas roupas esvoaçando, imortalizadas naquela posição de singela alegria. Sentei num banco sob a sombra de um carvalho. Fiquei ali, ouvindo a água se derramar das mãos das musas e bater na superfície da fonte. Me envolvi naquele som tranqüilizador e deitei no banco, aconchegando a cabeça nas mãos. Fechei os olhos.

As folhas farfalhavam no alto e o cheiro da grama aparada, da terra que recobria as raízes grossas, entorpeceu meus sentidos. Respirei fundo e, juntamente com o ar, pensamentos vagos me invadiram. Se eu fosse apenas humano poderia dormir ali mesmo, até que a luz do sol me acordasse com seus raios pela manhã. Contudo, não poderia experimentar nem mesmo a metade da beleza simples que eu podia ver com aqueles olhos. Se fosse apenas humano, eu estaria morto há muitos anos. Não haveria eternidade, não haveria nada do que eu considerava vital em todo o meu universo particular. Não haveria Christian ou Sophia. Não haveria aquela obsessão por um jovem que eu quase matara. E que, muito provavelmente, eu mataria. De um jeito ou de outro.

Não importava a loucura de Sophia. Não importava a ansiedade inominável da sede. Eu queria aquela vida. Eu aceitava e, mais do que isso, gostava de ser o que era. De olhos fechados, eu soltei um risinho. Era apenas mais uma confirmação de meu destino. O destino que eu não escolhera a princípio, mas que, se pudesse voltar àquela época em que era um jovem na Inglaterra, não mudaria absolutamente nada.

– Rindo sozinho, Cloud? Acho que a inanição está lhe causando efeitos piores que eu imaginava. Ou será a idade?

Abri os olhos e me deparei com Christian sorrindo há alguns metros de distância. Não havia zombaria em suas feições; assim como eu, ele estava apenas aproveitando a noite.

Abandonei minha posição relaxada e sentei-me. Toquei o banco de leve com a mão, convidando-o a se sentar. Quando o fez, curvou levemente as costas e apoiou os antebraços nos joelhos. O silêncio que se instalou entre nós não foi constrangedor ou forçado. Estávamos ambos compenetrados em nossos próprios pensamentos, desfrutando da companhia do que poderíamos considerar o mais próximo de “família”, mesmo que esta palavra não se encaixasse em nosso círculo de palavras úteis havia muito tempo.

Então, enquanto meus olhos admiravam o brilho esplêndido da água que se derramava continuamente das mãos de mármore das musas, a voz calma de Christian cortou o silêncio.

– Sabe Cloud, quando você me transformou eu o odiei por isso. – Isso realmente me assustou, mas não o encarei; não havia sinais de ressentimento em seu tom. Era apenas um desabafo. – O odiei por me tirar a vida a força, a vida pela qual eu tanto havia brigado. Apenas por isso. Mas... quando você me mostrou o que era ser parte da noite... tudo o que senti foi gratidão. Afinal, o que eu era em vida? – Ele riu um riso amargo e suspirou. – Um delinqüente com um pai bêbado e uma mãe doente. Eu sempre me cuidei sozinho, mas sabia que mais cedo ou mais tarde isso não bastaria para me manter. Ou para manter minha mãe. Você me salvou, mesmo que por um capricho egoísta.

Sorri com suas palavras e ele fez o mesmo. Afinal, ambos sabíamos o que me levara a trazê-lo para O Outro Lado. Solidão. Nenhum motivo romântico que me levaria à uma revelação fragorosa sobre o amor. Somente a pura e mais concreta solidão. E Christian aceitava e compreendia isso.

– Você me resgatou quando me levou para a morte. – Continuou. - Tudo o que posso fazer agora é retribuir.

E, desta vez, fui obrigado a me virar para encará-lo. Sua expressão estava igualmente tranqüila e insondável. Uma máscara da serenidade que o movia através dos anos, apesar do espírito inconseqüente que o dominava na maior parte do tempo. Tentei inutilmente compreender aquela frase aparentemente inofensiva, mas que, eu sabia, não era. Não podia ser. Afinal, era... Christian!

– Vamos agora. – Ele disse de repente, levantando-se. – Ainda temos coisas a fazer.

– Temos? – Indaguei, erguendo uma sobrancelha para a sua figura loura que se afastava.

– Ora, não me subestime, Cloud! – Ele exclamou, se virando subitamente irritado. – Não achou mesmo que eu apenas o traria para uma festa por puro senso de diversão, achou?

– Ahn... não – respondi sinceramente. Eu apenas não sabia quais seriam os seus próximos passos.

– Foi o que pensei – e voltou a andar, se afastando até que eu o perdesse de vista.

Suspirei e, balançando a cabeça negativamente, me pus a andar pelo mesmo caminho que ele percorrera. E, dessa vez, realmente tentei imaginar o que Christian guardava para mim. Não foi muito difícil de prever; entretanto, saber o que aconteceria em um curtíssimo espaço de tempo não mudou o fato de que a excitação apenas se agigantava em mim.

Discretamente, deixamos todo o glamour daquela festa para trás e voltamos ao meu carro. As jovens não vieram conosco, o que estranhei, então, pouco depois de dispararmos pela rua, perguntei:

– E suas amigas?

Ele me olhou enquanto dirigia e deu um sorriso sarcástico ao indagar:

– Já está com saudades? Bem, não se preocupe. Elas vão nos encontrar mais tarde.

– Hum...

Notei, ao observar as ruas por quais passávamos, que estávamos nos afastando mais e mais do centro da cidade. Quase não havia passantes àquela hora da noite e a escuridão parecia se adensar com uma força maior ali. Finalmente paramos. Christian manobrou o Mustang até deixá-lo com a parte dianteira apontada para um estabelecimento de esquina que me pareceu uma oficina mecânica. Acendeu e desligou os faróis duas vezes enquanto eu me perguntava o que estava se passando; cerca de segundos depois a pesada porta de ferro se ergueu com um ruído metálico e nós entramos. Ouvi a porta se fechando atrás de nós quando Christian desligou o carro.

– Vamos – ele disse apenas.

Ele saiu do carro batendo a porta e fiz o mesmo em seguida. Olhei ao redor, apenas para constatar o que havia suspeitado. Estávamos numa oficina de teto alto, e pneus, peças de carro e ferramentas mecânicas estavam espalhadas por todos os cantos; o cheiro de óleo era forte e a graxa parecia recobrir grande parte das superfícies visíveis. Ouvi passos e senti o cheiro característico de sangue próximo. Dei a volta no carro para me postar ao lado de Christian quando vi um vulto aparecer por entre dois carros imundos. Era um homem jovem, de olhos duros e cabelos desgrenhados. Aproximou-se de nós e parou há alguns metros de distância.

– Olá John – disse Christian com um leve sorriso. O homem chamado John retribuiu o gesto e retirou uma pequena chave do bolso antes de jogá-la para Christian, que a apanhou no ar. – Obrigado.

O homem assentiu uma vez e Christian lhe deu as costas, andando em direção aos fundos do local, eu o seguindo de perto. Chegamos à uma porta lateral e saímos para a noite em um silêncio pesado; Christian andava com passos ágeis pela ruazinha deserta e mal iluminada. Há quase dois quarteirões de distância paramos defronte a uma casa velha de aparência extremamente decadente. O portão de ferro rangeu e se abriu com o vento que assolou a rua de repente.

– Está nos convidando para entrar – comentou Christian ao meu lado; ele piscou um olho e passou por mim, estático por um segundo antes de acompanhá-lo. Subimos os degraus que levavam à entrada e a porta foi aberta com a chave que o homem chamado John entregara à Christian. Entramos.

Enquanto Christian acendia as luminárias que se espalhavam por várias mesinhas pela sala espaçosa, eu apenas varri o local com o olhar. Havia uma camada fina de pó cobrindo os móveis velhos, e o sofá e as poltronas estavam puídos pelo tempo. Christian abriu as cortinas pesadas e destrancou as janelas numa tentativa de espantar o cheiro de umidade. O assoalho rangia audivelmente sob os meus pés ao caminhar até um corredor para explorar o resto da casa. Um pequeno banheiro, uma cozinha diminuta e dois quartos no primeiro andar. Nada luxuoso ou extravagante. Não havia fotos em molduras ou objetos pessoais. Apenas uma casa visivelmente abandonada.

Estava acendendo o abajur de um dos quartos desinteressantes quando ouvi o som de um carro freando bruscamente. Me voltei para a janela e vi uma caminhonete enorme estacionada diante da casa. Dei a volta e saí do aposento; atravessei o corredor e desci as escadas aos pulos. Quando cheguei à sala vazia logo ouvi a confusão de vozes que se aproximavam. Um segundo depois Christian, com um sorriso gigante no rosto, entrou pelo hall seguido pelas duas jovens que havíamos acompanhado e outra garota de cabelos longos e castanhos. Logo atrás três rapazes completavam o cortejo; um deles, o mais alto, levava nas mãos uma caixa de cerveja; logo após entrar, acomodou-a na mesinha de centro.

Então este era o presente esperado para o final daquela madrugada cálida. O lobo em meu peito uivou para a noite, sedento daquela juventude que se espalhava à pouca distância. Christian, Christian... Você quer provocar uma tragédia... E vai conseguir...

E assim se iniciou o que eu gostava de denominar “festim”. Em algum momento um dos nossos estimados convidados colocou música em um velho aparelho de som esquecido num canto da sala. A música que saía das caixas de som era envolvente, sedutora, lenta... Como tudo naquela sala. Havia uma aura vermelha abraçando docemente o ambiente; o ar estava denso, sua temperatura aumentando gradativamente com o calor dos corpos humanos e suas respirações profundas.  Ah, isto estava me enlouquecendo... Eu via a fumaça dos cigarros que eles tragavam subindo como nuvens brancas e macias, assim como a das outras drogas que eles consumiam, “ilícitas” como os humanos tendem a designar.

A bebida era consumida como se fosse água por aqueles jovens belos e palpitantes. Eles dançavam lentamente ao som das músicas enquanto outros apenas ficavam a observar o vazio com uma expressão completamente relaxada. Mal se davam conta da nossa presença – minha e de Christian. Estavam todos esquecidos do mundo ao seu redor, da realidade macabra que os rodeava encarnada no corpo dos dois homens que ainda eram senhores de si naquela casa. Bem... não por muito tempo.

A luz amarela das luminárias causava uma sensação de conforto naquele ambiente abafado e cheio. Eu me perdia na vibração daquelas vozes lascivas, no brilho cativante dos rostos afogueados e rubros...

Sentado numa poltrona vi Christian se esgueirar como um gato até a porta e trancá-la silenciosamente antes de guardar a chave em seu bolso. À distância, observei-o voltar seus olhos escuros para mim; havia um desejo incontido naquele rosto translúcido, e percebi que era como olhar em um espelho. Ele me fitou intensamente antes de assentir com a cabeça discretamente. Um sinal.

Era a hora.

O vi se achegar até a garota loira de feições infantis sentada numa mesa. Ela fumava um cigarro e quando o notou tão próximo, soltou a fumaça em seu rosto com um sorriso travesso. Ele fechou os olhos com o gesto e sorriu, aceitando a provocação. Em seguida puxou seu corpo delicado pela cintura até colá-lo ao seu; a garota prendeu as pernas em sua cintura quando ele começou a beijá-la calorosamente. As mãos dele desciam e subiam pelas costas delicadas enquanto ela prendia seus dedos nos cabelos dourados e ondulados. Eu sabia onde aquilo iria terminar, portanto deixei aquela cena de lado.

Me levantei da poltrona e não cheguei a dar dois passos quando mãos macias e pequenas deslizaram por minha cintura. Eu soltei um riso baixo, carregado de malícia, quando essas mesmas mãos subiram por meus ombros e retiraram o terno com gentileza. A jovem morena, que estivera com Christian na noite passada, largou a peça na poltrona e ficou diante de mim. Seus dedos habilidosos desataram o nó em minha gravata ao mesmo tempo em que eu percorria sua figura pequena com os olhos. Eu imediatamente quis devastar aqueles lábios vermelhos e cheios; sua pele era muito clara e macia, mas suas bochechas estavam lindamente rosadas com o sangue que se concentrava naquela região. O castanho de seus olhos era como chocolate líquido naquelas órbitas luzidias.

Permiti que desabotoasse minha camisa. Ela correu os dedos por meu tórax, o desejo estampado em seu rosto; a sensação daquela pele quente em meu corpo frio provocou um arrepio em minha coluna. Eu não podia mais suportar ser torturado.

Eu gostava de privacidade com minhas vítimas, portanto a puxei pela mão pequena escada a cima. Entramos em um quarto e fechei a porta. O som da música e das vozes lá embaixo fora quase completamente abafado, especialmente porque foquei toda a minha atenção naquela pela qual eu estava ansiando. A luz noturna incidia exatamente na cama onde a jovem havia deitado. Sem pressa, fui ao seu encontro.

Abri o zíper lateral de seu vestido negro apenas para expor as formas perfeitas e voluptuosas de seu corpo pálido, ponteado pela renda de seu lingerie. Acariciei seu corpo com gentileza, enquanto a beijava lentamente, suas unhas arranhando a extensão de minhas costas levemente, causando uma sucessão de arrepios de deleite.

Eu havia me entregado ao monstro. Eu estava sendo o que eu sempre deveria ter sido, o vampiro insaciável, preso nas garras da volúpia... E eu estava adorando...

Mas não podia continuar com aquilo por mais muito tempo, aquela sedução. Subitamente, deslizei uma de minhas mãos até seu rosto enquanto a outra se prendeu em suas costas, com firmeza. A garota percebeu a mudança em minha postura dominadora imediatamente. Àquela ínfima distância entre seu rosto e o meu a permitiu olhar diretamente em meu olhos e, foi o que fez quando interrompi o beijo... O medo do que encontrou ali fez seu corpo frágil, antes tão relaxado, entorpecer sob o meu. Aquilo apenas fez explodir a sede em mim e, me abstendo de qualquer pensamento, minhas presas se cravaram em seu pescoço fino. Seu gemido baixo foi um misto de dor e prazer... A última coisa que ouvi antes que o sangue afluísse em minha boca.

Gelo... gelo queimando em minhas veias, deflagrando meu coração. Eu estava surdo para a realidade, cego para o mundo. Eu apenas ouvia o fluxo do sangue saindo do corpo pequeno e sendo desviado para os meus lábios, inundando meu interior. Sua vida vermelha me alimentava, reavivava meu espírito há muito morto. E isto era tudo o que eu via, vermelho, vermelho e vermelho... O brilho vermelho que vinha me cobrir, elevando minha alma para longe do caos.

E tudo estava em paz e aquele silêncio maravilhoso era quebrado somente pelo som do rio denso que fluía. O ápice que me abarcava...

Então ela começou a fraquejar. O órgão vital que me supria estava sucumbindo ao ceder sua força. Eu deveria parar, ou ela não sobreviveria. Mas não parei. Diferentemente do momento em que suguei Sousuke, aquele jovem que estava tão longe de minha mente naquele momento, eu não me afastei. Pelo contrário... Eu bebi com mais força, aproveitando tudo o que ainda havia na fragilidade daquela garota perdida. Seu coração não resistiu por muito mais tempo.

Finalmente afastei meus lábios, arfando com força. Soltei o corpo imóvel sob o meu e fechei os olhos, apoiando as mãos no colchão, a cabeça baixa, meus cabelos caindo nas laterais do rosto. Quando enfim recuperei o fôlego – e o controle de minha consciência – abri os olhos. A garota a centímetros de mim estava lívida, a cabeça pendendo para o lado, as pálpebras, úmidas de suor, fechadas. E agora sua vida resplandecia em mim. Eu soprara o fogo da vela que há pouco ardia em seus olhos.

Adeus, bela... Descanse em seu leito de solidão.

E, lançando um último olhar àquela visão tragicamente erótica, deixei o quarto. Eu sentia meu corpo flutuando, o chão se desfazendo sobre meus pés leves demais. Cheguei mais uma vez à sala e encontrei o cenário um tanto quanto mudado. A garota loira, com a qual Christian estava atracado quando deixei o aposento, estava agora não mais sentada na mesa, e sim deitada, o cabelo longo esparramado como um leque na superfície escura. Olhos fechados... Corpo inerte como o de sua pobre amigo no andar superior, as pernas suspensas e os braços estirados nas laterais do corpo... Um mancha de sangue escorria por seus lábios descorados. Não havia nem mesmo a sombra de furos em seu pescoço. Ah, a marca de Christian em mulheres. Nunca o pescoço. Suas vítimas femininas sempre eram agraciadas o verdadeiro beijo de morte. Um fetiche bem singular.

A outra mulher estava deitada no sofá, cantarolando de olhos fechados, alheia aos acontecimentos. O rapaz loiro estava sentado no chão, as pernas dobradas, num canto afastado; uma garrafa de cerveja pela metade pendia em sua mão, apoiada no joelho. Entretanto, Christian não estava à vista. Nem os outros dois garotos.

Era a minha deixa.

Fui de encontro ao rapaz no canto da sala. Ele tinha os olhos fixos no teto, como se ali houvesse uma revelação da verdade universal. Seu rosto liso e ruborizado não devia ter mais de 20 vinte, embora fosse difícil dizer em pleno século XXI. Sua cabeça, jogada para trás, deixava o pescoço alvo completamente exposto. Sim, era um convite realmente tentador. E eu, um cavalheiro, não recusei.

Ajoelhei-me ao seu lado, em silêncio, e, sem cerimônia alguma, segurei seus ombros com firmeza. E, antes que ele pudesse se dar conta do que estava se passando, uni meus lábios à superfície musculosa de sua garganta, à veia azulada que descia por sob a pele extremamente quebradiça, como uma porcelana rara e envelhecida pelos anos. O ouvi arfar quando meus dentes penetraram sua carne, um som muito baixo e fraco, que apenas mostrava sua postura completamente indefesa.

Dessa vez não o fiz como com a garota. Eu estava desesperado quando a tomei para mim, a sede me devorando com seus gritos incessantes. Naquele momento eu estava apenas me rendendo à luxúria por sangue que o lobo desacorrentado exigia. Eu sorvia aquele sangue luminoso com tranqüilidade, saboreando sua textura única, seu sabor incomparavelmente doce.

Quando me afastei, o garoto ainda estava vivo, mas, por experiência, eu sabia que seu destino era inevitável. E, como eu previa, seus olhos se fecharam minutos depois. Eu me obriguei a ficar ali, a ver a vida abandonar seus olhos. Por algum motivo eu tinha de ver os fins de minha volúpia. Concretizar o ato.

Quando me ergui vi Christian voltando pelo corredor; parecia estonteado, como se estivesse ligeiramente alcoolizado. Um fio carmim se estendia pelo canto de seus lábios ponteados por um sorriso satisfeito. Ele parou quando me notou ali. E o milagre havia sido operado em seu rosto. Apenas uma palavra poderia descrevê-lo. Humano.

Creio que essa talvez fosse a palavra correta para me descrever, pois eu vi o encantamento notório em seus olhos límpidos ao me fitar.

– Sem arrependimentos? – Ele perguntou sem nem mesmo um vislumbre de deboche. Era uma pergunta séria, pronunciada com muita cautela.

– Nenhum – respondi em voz baixa. Era verdade. – Pelo menos não agora.

Um sorriso gentil suavizou sua expressão. E, resoluto, ele se aproximou de minha figura estática apenas para sussurrar com uma voz rouca em meu ouvido:

– Então termine isso.

Christian se afastou e ouvi quando destrancou a porta e saiu, deixando-me novamente a sós. Ele sabia que eu optava pela privacidade para matar...

Com passos firmes, dei a volta no sofá para olhar a jovem do alto. Com um sorriso, pensei que as coisas estavam sendo facilitadas para mim. Ela respirava profundamente, seu peito subindo e descendo com o ar que enchia seus pulmões. Um sono tranqüilo e profundo tomava conta de suas feições, naquele instante, tão inocentes quanto às de uma criança nos braços calorosos de sua mãe. Por que interromper aquele sono? Isso seria imperdoável. Ele deveria ser eterno na sua beleza casta. Uma Branca de Neve frígida. Minha marionete de cordas arrebentadas. Seja minha agora...

Abracei aquela criança adormecida, rodeando-a com meus braços, prendendo-a no subterfúgio de meu calor roubado. Mais uma vez o monstro se deleitou com o sangue inocente, uivando exultante para a Lua eternal. Sua fome havia sido apaziguada. E agora ele podia voltar à cova do diabo. E lá ele repousaria, até que eu o chamasse para sair. Até o momento em que seus gritos de agonia não mais me deixassem prosseguir... E então eu destrancaria a porta novamente...

E o receberia de bom grado...

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