Batendo nas Portas do Inferno escrita por KAlexander


Capítulo 8
Capítulo 4 - Baú Escuro de Desejos (Parte 1)




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Cinco noites se passaram desde a visita de Sophia sem que eu pusesse os pés para fora de casa. Inquieto e dolorosamente abalado eu caminhava de um canto ao outro sem jamais afastar meus pensamentos de sua figura imponente e atormentadora. Suas aparições sempre haviam sido ponteadas por chateação e aborrecimento, mas daquela vez... As palavras com que me deixara não eram um mero aviso ou um desabafo ao acaso de uma mulher – no caso, vampira - abandonada.

Sophia estava me ameaçando.

E eu tinha um palpite sobre o que ela estava se referindo. Em todos aqueles anos desde que eu a abandonara encontrar outra companhia deixara de ser uma preocupação real para mim. Eu tivera experiências por demais decepcionantes com outros de minha espécie, portanto eu realmente estava contente com a solidão. Ou talvez apenas conformado. É difícil dizer. E Sophia, bem, ela passara a ser somente um diminuto incômodo com o qual não valia a pena me preocupar.

Eu estava incrivelmente intrincado em minha natureza de vampiro, caçando e tirando mais vidas do que eu considerava “normal”, observando os humanos à distância, considerando suas ações como parte de minha experiência ininterrupta, um espectador nas sombras companheiras. Porém, não havia mais excitação naquela rotina tediosa. Há anos nada despertava meu interesse, minha curiosidade. Eu não podia usufruir de minha gana infantil, que por sinal eu adorava, para abusar de situações extravagantes simplesmente porque... Porque não havia uma mísera situação que se assemelhasse minimamente ao meu conceito de extravagante!

Há alguns anos eu estava realmente ponderando sobre a possibilidade de sair a procura de Christian, onde quer que ele estivesse. Afinal, ele era meu pupilo; por que eu não poderia visitá-lo? Além disto, me parecia o certo a fazer. Contudo, talvez ele não optasse por querer minha presença ao seu lado. A falta de notícias apenas desencorajava meu pequeno anseio, portanto acabei descartando esta alternativa com o tempo. Quando Christian surgiu em minha casa naquela noite cálida todas essas dúvidas se evaporaram, um dos motivos para minha felicidade crescente ao tê-lo comigo novamente.

Mas, a questão é que a lógica que se seguiu a esta desistência foi... tosca, confesso, mas seria extremamente útil para mim num futuro próximo. Eu não podia ter meu pupilo primogênito ao meu lado, entretanto, poderia criar um novo para mim. A perspectiva iminente de ter um vampiro jovem, exuberante, esbanjando desejo pelo conhecimento que eu lhe proporcionaria acalorou meu espírito momentaneamente melancólico.

Isto ocorreu pouco antes da chegada tumultuosa de Christian. Sua presença conseguiu afastar esse pensamento exultante, mas a realidade de seu afastamento próximo acarretou, juntamente com minha potencial vítima, Sousuke, em seu retorno imediato.

Extremamente útil, eu disse. Bem, deixem-me recompor esta frase. Foi extremamente útil. Foi, certamente, até aquela maldita ninfa surgir e interpretar seu exímio papel de algoz em meu inferno pessoal. 

Sophia vinha me observando, era um fato, desde o momento em que Christian havia se instalado em minha casa. Não havia outro modo de saber sobre sua visita e sobre minha singela fascinação por Sousuke. Entretanto, enquanto refletia aprisionado dentro de minha própria casa por meus pensamentos intolerantes, cogitei que talvez, e apenas talvez, Sophia estivesse sempre me observando, sondando meus passos, talvez até mesmo se infiltrando em minha mente... Eu não tinha o conhecimento de sua idade real, muito menos do quê criaturas seculares eram capazes. Sabia somente que os séculos nos fortaleciam, até o momento em que nos tornávamos verdadeiros invólucros de poder. A possibilidade de que ela fosse um desses poucos monstros sobreviventes dos tempos não era completamente descartável.

Contudo, o importante era que ela tinha pleno conhecimento sobre cada ação descuidada que eu cometia. E, pela primeira vez, não estava de acordo com os meus atos. Pior, atos estes que eu ainda não havia perpetrado. Não era necessário. Sua mente sagaz e sádica já os considerava como potenciais.

Sophia sabia como eu agia. Sabia como eu raciocinava. E isto era péssimo. Era uma tragédia. E agora estava me ameaçando. Por quê? Bem, como já mencionei, ela não havia aceitado a separação. Mas... não era apenas isto. Sophia era uma criatura prática. Perder tempo com inutilidades não era de seu feitio, portanto suas últimas palavras possuíam um significado tão prático e direto - mesmo que mascaradas por seus termos subjetivos e carregados - quanto ela própria.

Ela não seria substituída e, caso eu o fizesse, pagaria por este abjeto erro.

Naturalmente isto não deveria me preocupar. Não, de jeito nenhum... caso viesse de alguém como Christian ou outro vampiro jovem e descuidado. Eu poderia lidar facilmente com isto. Contudo, eu estava sendo alvo de Sophia. Ninguém menos do que Sophia. Uma das filhas da noite mais poderosas que alguém, tanto humano quanto imortal, poderia encontrar em seu caminho. Realmente a sorte era algo tão distante quanto a luz do sol em minha existência.

Entretanto... eu simplesmente não era capaz de imaginar que Sophia fosse capaz de me ferir. Cada vez que cogitava esta terrível possibilidade as imagens da década que havíamos partilhado embebiam minha mente num turbilhão de memórias doces e especiais para meu eu momentaneamente aturdido.  Infelizmente, essas imagens bucólicas eram seguidas de perto pela pergunta que vinha me perseguindo pelo rastro de inquietude que eu deixava pela casa.

E se ela fosse realmente capaz de cumprir suas ameaças?

Não. Eu estava exagerando. Por que diabos eu estava tão absolutamente preocupado com Sophia? Afinal, toda aquela história era ridícula, não era? Uma voz irritante, e que me lembrava muito Christian, sussurrou, intrometida, o contrário em meu cérebro. E, como faria com Christian, eu a enxotei. Não devia me desesperar por algo tão... hipotético. Tinha de me manter senhor da situação, como sempre fizera. Afinal, aquele era Cloud Le Fluer, e eu sempre tivera total confiança nele.

Eu tinha isto em mente no início da sexta noite após meu desastroso encontro com Sophia. Eu caminhava pela casa cogitando sobre o que eu deveria fazer a seguir. Caminhando por um dos corredores que levavam à minha biblioteca particular senti uma suave corrente de ar atravessar o espaço que me cercava. Passei por um espelho, vendo minha imagem refletida na semiescuridão, indiferente, antes de dar dois passos para trás e encarar meu próprio rosto dentro da moldura dourada elegantemente intrincada. Vi meu cenho se franzir em descontentamento. Eu estava um perfeito horror. Pálido como a cera, meus olhos reluzindo como diamantes envoltos nas sombras das olheiras em minhas pálpebras. Sinais da fome que se apresentava.

Me resolvi por ir caçar no momento em que ouvi os passos de Christian se aproximando, leves e cadenciados no assoalho. Mas não apenas os seus passos. Outros, mais duros e desajeitados, o acompanhavam. O aroma me atingiu como se possuísse vida, me cercando com suas mãos intensas e resolutas, arrancando um gemido quase inaudível, um misto de dor e prazer, que não pude controlar. Uma voz feminina e alta se misturava à de Christian, propositalmente sedutora e aveludada. A voz do caçador mais evoluído dentre todos os felinos.

Voltei pelo corredor por qual viera até chegar à sala iluminada por diversas luminárias espalhadas pelo aposento. Próximo à escada, Christian tinha uma jovem presa em seus braços; minha primeira impressão foi óbvia. Ele estava se alimentando em minha casa; há muito tempo atrás, quando o havia transformado, ele adquiriu o hábito de levar vítimas para casa, o que eu desaconselhava, mas, como era de costume, ele não me ouvia, portanto apenas ordenava que se livrasse dos corpos o mais rapidamente possível. Entretanto, quando ele se afastou da garota vi que estivera apenas beijando-a. Ela sorriu para ele, satisfeita, o rosto corado e os olhos vagos e brilhantes. Parcialmente bêbada, notei. Ele deslizou os dedos pálidos pelo cabelo curto e preto da jovem. Ah, aqueles olhos de raposa! Ele a examinava com uma fome indisfarçada, a excitação causada pela bela vítima que adentrara seu ninho com boa vontade, o sorriso satisfeito naqueles lábios cheios o entregava. Seus dedos desceram do rosto da moça para seu pescoço, traçando linhas invisíveis ali; ele mal podia se conter. E eu o compreendia... Como o compreendia...

– Christian.

Quando ouviu minha voz ele se voltou para minha direção vagarosamente. Eu estava sorrindo para sua figura estonteante e ele somente retribuiu. Tentei decifrar sua expressão, retirar algum pensamento escondido em sua mente através de seus olhos escuros e serenos ao me observar. Inútil.

– Quem é o seu amigo, Christian? – A jovem indagou com voz manhosa, se agarrando à cintura dele por trás, apoiando o queixo no ombro de Christian. Seus olhos me observaram com uma leve curiosidade. Era verdadeiramente bonita, pensei; pena que a beleza não se equiparava à inteligência.

– Ah, ele é meu... primo. – Ele respondeu, contendo um riso. – Cloud, esta é... como é o seu nome mesmo querida?

Eu, por outro lado, não me contive. Christian era inacreditavelmente absurdo, e era realmente difícil acreditar em certas atitudes que ele tomava, ou em coisas que fazia. Eternamente jovem... Tanto em aparência quanto em espírito. Como eu poderia não amar aquele estúpido inconsequente?

Abandonando minha posição inerte, rindo levemente, caminhei até Christian ouvindo a garota reclamar com ele por ter-se esquecido uma vez mais de seu nome.

– Desculpe-me por isso. – Disse para ela ao puxar Christian, que não reagiu, surpreso, pelo braço antes de avisá-la: - Pode subir, ele irá logo em seguida.

A jovem deu de ombros antes de seguir minhas instruções e desaparecer escada a cima. Levei Christian até o corredor em que me encontrava anteriormente e soltei seu braço.

– O que diabos está fazendo? – Perguntou ao me encarar, respingando irritação por suas palavras.

– Sei o que está prestes a fazer. – Informei o óbvio, indiferente à sua reação.

– Mesmo? Que bom, então pode sair da minha frente agora. – Disse impacientemente, me indicando com um gesto displicente da mão de dedos longos.

– Você vai matá-la – pronunciei sua única ambição para aquela noite tranquilamente.

– Pretendo – disse, revirando os olhos, - mas não tenho idéia de como vou conseguir com você me mantendo aqui, Cloud seu maldito!

Eu ri baixinho e ele me olhou como se eu houvesse enlouquecido. Mas então seu olhar mudou, como se percebesse que negociar seria uma alternativa mais provável de obter seu prêmio vivo.

– Olhe – começou um pouco mais tranqüilo, - conheço seu sermão há tempo demais para ouvi-lo novamente, portanto tente ver as coisas pelo meu ângulo: Cloud me responda, o que você acha que essa garota pode acrescentar à humanidade? É apenas uma humana idiota e vazia que transita no mundo dos contos de fadas, que naquele cérebro oco é a definição de “shopping”. Tenho certeza de que ela não fará falta alguma.

E cruzou os braços, a expressão decidida e teimosa, que preenchia seu rosto quando defendia algum ponto de vista.

– Christian – disse eu calmamente, com um meio sorriso, - não pretendia e não pretendo lhe dar um sermão.

Ele ergueu uma sobrancelha e seus olhos escuros me encararam em desconfiança.

– Então...? – Perguntou lentamente.

– Essa garota, - disse eu, indicando o andar superior com a cabeça – onde a encontrou... há outras como ela?

Então, enquanto a compreensão dominava as feições antes interrogativas de Christian, um sorriso maligno se fez presente nos lábios pálidos. Seus olhos faiscaram com a luz do monstro noturno que eu cutucara com apenas algumas palavras. E agora que eu o acordara seria difícil colocá-lo novamente em sua jaula.

Eu retribuí o sorriso, de forma mais contida, mas ainda assim o fiz. Havia uma compreensão singular entre nós naquele momento, algo próprio de criador e cria, um sentimento exultante que fluía em ondas silenciosas. Suas palavras seguintes foram a resposta para meu pedido mudo.

– Não se preocupe, Cloud. – Sua mão tocou meu ombro gentilmente e, antes que eu pudesse dizer uma única palavra, desvencilhou-se e pôs-se a andar em direção à sala.

Virei-me para observá-lo e o vi andando com passos relaxados antes de se voltar para mim e sorrir tranquilamente.

– Desacorrente o seu cão do inferno – disse Christian, as palavras sombrias ressonando pelo espaço. – Deixe-o uivar e correr ao menos uma vez. Faça-o lembrar quem ele é... e o quê é...


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