Artífice escrita por Arkytior


Capítulo 3
Raison


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo me deu bastante trabalho, tive que ficar editando várias vezes até ficar bom. Mas no final, fiquei satisfeita com o desenvolvimento. E fico grata por todos os reviews!



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III – Raison 

 

            O tão esperado fluxo de aristocratas para sua loja não ocorreu. Talvez pelo encontro com Lucien ter sido um pouco antes da temporada. Porém, conseguia uma renda razoável com sua loja, grande parte desta oriunda das vendas de doces e acessórios, o que lhe fez economizar dinheiro na compra de vassouras e outros itens com magia mais explícita.

 

            Tinha relações amigáveis com a família da padaria em frente à sua loja, onde diariamente comprava baguetes. Já chamava os filhos dos donos pelo nome: Marius era o filho mais velho e Yolanthe, a mais nova. Também mantinha um bom contato com a senhora Durand da loja de bebidas, com quem renovava seu estoque de licores.

 

            Não era uma vida fausta, mas Éclair encontrava-se satisfeita com o andamento da loja. Suas economias aumentavam: não precisou pedir mais dinheiro para a família, e esta não lhe enviara nenhuma notícia de prejuízos, quebras ou falências. No início, sentira um pouco de falta das conversas e doces dos chás da tarde, mas no tempo presente havia muitos objetos a serem aperfeiçoados e feitiços a serem aplicados ocupando sua mente. Não havia tempo para frivolidades, e seu apartamento refletia isso, com suas pilhas de livros, mecanismos e materiais brutos. “Preciso de algum criado”, pensou sozinha no caminho para o trabalho.

 

            Adrian, ao contrário do que costumava dizer, visitava freqüentemente a loja, chegando até a comprar alguns artefatos em certos casos. De fato, era uma pessoa muito mais agradável quando relatava suas viagens. Sua jornada até o continente suspenso da raça celestial foi particularmente impressionante:

 

            - Como deixaram você entrar?

 

            - Foi difícil, chegaram a ameaçar serrar meus chifres... Sem contar que confiscaram quase tudo o que eu levava.

 

            - Ainda bem que nenhuma espécie tem aversão a humanos. – Éclair sorriu.

 

            - Pois é. Mas vocês morrem antes de todo mundo. – Adrian rebateu com um sorriso ainda maior, exibindo os grandes dentes. Éclair há muito deixou de ficar assustada com eles.

 

            Despediram-se alguns minutos depois.

 

           Nos momentos em que a loja estava vazia, Éclair pensava em algo novo para vender nos próximos quinze dias. Seria a época dos bailes no país, onde toda a nobreza e a alta burguesia reuniam-se em Floresion em busca do prazer e entretenimento de luxo. Todo o comércio preparava-se com antecedência para essa época do ano, quando eram vendidos apenas os melhores artigos, novidades eram lançadas constantemente, modas surgiam e acabavam, colunas sociais eram mais importantes do que a política e comerciantes enriqueciam. Era a chance de levantar sua fortuna quase que instantaneamente. Teria de aumentar seus estoques desde já, para atender a demanda. Trabalharia de madrugada criando itens, se necessário.

 

            O que lhe preocupava era a localização da loja: Anémone era um bairro de classe média apenas. Claro, os profissionais desse nível eram embalados pelo espírito da temporada e passeavam nos finais de semana em busca de presentes para si, mas não em lojas de bairro. Os ricos tinham todas as galerias e ateliês a poucos metros e uma carruagem de suas mansões. Algo deveria chamar a atenção do público de tal maneira que todos visitassem sua loja. Algo surpreendente. “Uma invenção”, concluiu.

 

            Não seria necessária uma criação que mudasse os rumos do estudo da magia, obviamente. Apenas um produto bonito e que pudesse ser considerado um belo presente. Com material ou magia suficiente para justificar um preço alto. Um produto exclusivo. Anotou seus devaneios em uma folha de papel e concluiu que devia mandar uma carta para seus pais perguntando sobre possíveis novidades em sua terra natal.

 

            Entediou-se. O mês de Março ainda não tinha terminado, logo, o movimento era baixo, já que os salários ainda não foram pagos. A rua estava quieta devido ao horário: início da tarde. Todos os trabalhadores já haviam voltado aos seus postos. Fechou a loja para comprar um sanduíche na padaria; não tinha almoçado. Cumprimentou Marius e pediu o último sanduíche de baguete do horário, repleto de recheio. Pagou com moedas, sentou num banco do lado de fora e comeu depressa; não gostava de fechar a loja fora do horário. Apreciou a paisagem: o bairro era bem cuidado e as construções tinham uma arquitetura bonita, apesar de relativamente simples, com poucas sacadas e detalhes em gesso. Sua loja tinha uma aparência respeitável também, embora precisasse de vitrines maiores. Providenciaria isso de acordo com os lucros.

 

            Três pessoas corriam em frente à sua loja. Éclair levantou-se, para evitar danos à sua propriedade.  Uma mulher de meia-idade, um homem e uma adolescente vestida com trapos. Reconheceu a Sra. Durand da loja de bebidas.

 

            - O que está acontecendo?! Não briguem em frente a minha lo... – Gritou.

 

            - Não deixe a ladra fugir! – O homem, um ajudante recém-empregado, a interrompeu em resposta. Com isso, Éclair sacou sua varinha quase por instinto, olhou para trás e lançou um feitiço na ladra.

 

            - Conmoror! – Um raio branco saiu da varinha, paralisando a moça imediatamente, cuja expressão era de terror em relação ao fenômeno. Retirou a garrafa de sua mão e verificou o rótulo: gim de baixa qualidade, prova suficiente de que a ladra não era digna de pena. “Quando eu devolver a garrafa, lhe soltarei e ordeno que saia da minha frente. Desta vez eu não lhe denunciarei à polícia. Porém, se causar mais problemas em frente à minha loja de novo, eu mesma cuidarei da sua falta de boas maneiras”, cochichou no ouvido da ladra em tom ameaçador. Como prometido, devolveu a garrafa a seu legítimo dono e liberou a moça. Retexo fora a palavra mágica de liberação. Ao sentir-se livre, a garota fez como ordenado e fugiu desesperada.

 

            - Depois disso, acredito que ela não roubará mais nenhum produto, camaradas. – Éclair desenroscou sua bengala e reabriu a loja, sorridente. Divertia-se por dentro com a expressão assustada de seus colegas.

 

            - Os boatos eram verdadeiros, a senhorita realmente é uma maga, afinal. – Sra. Durand sorriu timidamente, tentando agir de maneira polida perante a dama. Sempre a imaginara como apenas uma vendedora, não uma artífice de fato.

 

            - Que boatos? Nunca fiz segredo das minhas habilidades, senhora. Esse feitiço é fundamental para uma jovem. Acredito que seja ensinado nas escolas daqui, também.

 

            - Ah, mocinha, quando eu tinha a sua idade não se ensinava magia nas escolas comuns. Eu lembro que era algo que apenas a nobreza e os milionários conseguiam pagar... As coisas mudam tão depressa, não é? – Apesar de perplexa, conversava com sinceridade e gratidão – Vejo uma senhorita como você trabalhando duro com os artigos mágicos agora, em busca de uma vida melhor, e isso é muito bonito.

 

            - Muito obrigada, senhora. Fico lisonjeada. – Éclair não queria revelar sua riqueza no momento. Apesar da família, sua vida agora era a de comerciante, sem mais. Por sinal, achou interessante ninguém, exceto Lorde Bertrand, ter reconhecido sua posição apenas pelo sobrenome, conhecido e incomum. Talvez achassem que fosse uma filha bastarda ou uma parenta distante. De qualquer forma, não quis perder tempo pensando nisso. Despediu-se e voltou ao trabalho.

 

            Os clientes foram poucos nesse dia, o que deu tempo suficiente para Éclair pensar em vários itens a ser vendidos, grande parte com magias simples até. Por outro lado, o movimento baixo poderia prejudicar seu orçamento, já que, apesar dos lucros iniciais, nada estava garantido, já que a loja ainda não tinha completado um mês aberta. Lembrou de seu pai dizendo que poderia voltar para Brille se a situação estivesse muito complicada, o que ainda era uma possibilidade. Concluiu que não seria iludida pelos lucros iniciais, mas também não desistiria tão cedo.

 

            Levantou-se para organizar as mercadorias antes de fechar a loja. Já tinha retirado sua jaqueta, chapéu e bengala do armário, mas antes precisava conferir algumas cestas de doces e os livros nas estantes, coisas fáceis de desaparecerem. Ao terminar, retirou o dinheiro da caixa registradora, colocando-o dentro de seu chapéu, arrumou-se para sair e vislumbrou a ladra de horas atrás. Segurou a bengala com mais força, com medo de ser roubada, mas agiu com cortesia, embora num tom severo:

 

            - Precisa de algo? Já estou fechando a loja. – “Foi bom ter guardado o dinheiro a tempo”, pensou.

 

            - Bruxa... – murmurou a garota, que tinha visitado o local num misto de medo e curiosidade. - ...O que você vende nessa loja?

 

            - Primeiramente, eu não sou uma bruxa, sou uma artífice. Se realmente quiser me rotular, chame-me de maga então. Eu estudei muito para adquirir meu conhecimento arcano, ao contrário dos bruxos, que ganham tais poderes de terceiros. – Olhou para a garota, que transparecia o medo em sua face com mais intensidade, já que não esperava que Éclair escutasse seu comentário. – Vamos, garota, quer comprar algo?

 

            - Não, senhora... Vim aqui apenas pra falar que aquela bebida não era pra mim, era... – Lacrimejava, levando a mão ao rosto.

 

            - Se quiser pedir desculpas, vá à loja de bebidas, não a mim. Eu apenas fiz um favor a uma colega. Aquele feitiço era praticamente inofensivo. – Levantou a bengala, preparando-se para algum ataque da ladra. Se a garota tivesse roubado um pão, não ficaria tão apreensiva, mas álcool? Indigno.

 

            - Eu só quero uma coisa sua, me escute. Não é bebida. Como eu falei, não era pra mim, era pro meu irmão, sabe... Se eu não arranjo bebida pra ele, ele me bate... Olha... – Chorava. Retirou a mão do rosto, pôs o cabelo louro e ondulado para trás e revelou metade do rosto coberto por bandagens. – No meu braço também... – Levantou as mangas gastas de sua blusa, revelando mais bandagens e vários ferimentos expostos.

 

            - Sinto muito, não sou uma maga curandeira. Conheço uma boticária que poderia lhe receitar uma poção, mas ela trabalha do outro lado da cidade, e já deve ter fechado a botica por hoje. – Éclair sentiu-se ligeiramente desconfortável por não ter reparado no estado da garota. Então esse era a situação em que os pobres viviam? – De qualquer forma, já avisou a polícia sobre isso? Já pensou em trabalhar fora, como criada, talvez? Você pode resolver esse problema.

 

            - Mas ele é meu irmão! Até ele arrumar um emprego de novo, ele precisa de mim! Você não entende, senhora, não entende! – Chorou mais alto e prostrou-se ao chão, segurando a mão de Éclair, desesperada. Era óbvio que uma moça bem-vestida como Éclair não lhe ajudaria. Todas as damas eram iguais. Declaravam-se doces, delicadas como flores, mas eram cruéis com as desafortunadas. – Eu... eu... devo estar fazendo você perder tempo, vou embora. – Levantou-se e virou-se, desconsolada.

 

            - Espere. Posso lhe pagar um quarto numa pensão daqui. Só preciso que você volte amanhã para cá às oito horas em ponto, e que me diga seu nome completo agora. – Não sentia pena, já que não era muito difícil fugir de onde morava para conseguir um emprego simples. Criada, lavadeira, qualquer coisa, desde que largasse a idéia de martírio para o “homem da casa”. Interpretava seu gesto apenas como caridade, obrigação de uma dama educada, mais nada. Se a moça tivesse um bom comportamento na pensão e cumprisse a promessa, poderia lhe ajudar com mais alguma coisa, já que provaria seu valor.

 

            - Meu nome é Giselle Martin, tudo bem?

 

            - Ótimo. Venha comigo. – Saiu da loja, cancelando a magia de iluminação e trancando a porta com a chave escondida na bengala, junto com Giselle. Um pouco da escuridão já tinha chegado ao céu.


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Notas finais do capítulo

Os feitiços em Artífice são palavras em Latim (tiradas de um dicionariozinho Inglês/Latim que baixei):

Lux (no capítulo I): Luz
Conmoror: Ficar de pé, parar
Retexo: Desfazer

—-

Apesar das dificuldades (leia-se "bloqueios") me diverti muito escrevendo esse capítulo, principalmente o final. Éclair não é nenhuma santa, apesar das aparências. Giselle não vai se safar tão facilmente.

E para as fãs, calma, o Lucien volta...



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