Ausência escrita por Seto Scorpyos


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/87281/chapter/1

 

- Uruha, dê uma olhada nessas fichas... – Kai disse, entrando na sala da agência sem bater.

Ao ouvir uma risadinha de criança, o moreninho ergueu os olhos e empalideceu vivamente. O loiro estava sentado no braço da poltrona, com um olhar indecifrável. Ao lado dele, uma japonesinha segurando um bebê sorriu, constrangida.

- Yutaka-san... que bom que chegou. – ela cumprimentou, tímida.

O moreninho não respondeu. Ele olhou dela para as crianças e de novo para o amigo. Uruha se levantou e se aproximou, perfeitamente controlado.

- Shiroyama-san chegou faz algum tempo e como eu estava sozinho, fiquei com ela até que alguém chegasse. – os olhos dele cintilaram e Kai empalideceu mais ainda.

A mulher se levantou, sorrindo envergonhada.

- Acho que tirei Takashima-san do que estava fazendo... – ela encolheu-se, apertando o bebê contra si.

- Tudo bem, não foi trabalho nenhum. – o loiro ofereceu, educado.

Ela sorriu e virou-se para Kai, que estava petrificado.

- Eu sei que devia ter avisado Yuu que eu viria... mas eu estava realmente me sentindo sozinha e pensei que seria bom vir para cá. Takashima-san foi muito solícito em ficar conosco.

- É... que bom... – Kai murmurou, sem saber o que fazer.

- Eu estava perguntando a ele porque não passou o aniversário conosco, em Tókio. Fizemos uma festa tão linda... e ele podia ter ido com você e Nao, ou com Reita e Ruki... Fiquei realmente triste por ele ter ficado sozinho aqui e nós lá, nos divertindo tanto.

Ela continuou a falar, sem parecer notar que Kai estava cada vez mais constrangido. O olhar de Uruha se tornou glacial, mas ela não reparou. O menininho reclamou de cansaço, sentado quieto e os adultos olharam para ele.

- O Aoi sabe que está aqui esperando por ele? – Kai perguntou, depois de engolir seco.

- Eu liguei para ele. – Uruha explicou, sério.

O moreninho arregalou os olhos. – Falou com ele?

- Não. Deixei recado.

O tom seco e frio fez Kai desviar os olhos, completamente desnorteado. Antes que pudesse pensar em alguma coisa, a porta se abriu e Aoi entrou como um furacão, acompanhado de Reita.

Um olhar deu aos recém chegados uma idéia do que estava acontecendo e Kai suspirou visivelmente. Aoi avançou e cumprimentou a mulher, sério.

- Miyume, o que veio fazer aqui?

Ela arregalou os olhos diante do tom brusco e ele percebeu, respirando fundo. O pequeno desceu correndo do sofá e se jogou contra suas pernas, aliviado.

- Papai! Que bom que chegou! – ele festejou, sem se importar com o olhar estreito do homem.

- Eu pensei em vir, já que é sempre você que vai nos ver... – ela começou, incerta – Eu não queria atrapalhar...

- Chegou faz muito tempo? – ele perguntou, finalmente se inclinando e deixando o pequeno abraça-lo. – Já almoçaram?

- Sim – ela sorriu - Takashima-san nos recebeu e nos tratou com muita gentileza.

O moreno finalmente trocou um olhar com o loiro.

- Obrigado por isso.

Uruha não respondeu e virou-se para a mulher.

- Agora que seu marido está aqui, eu me despeço. Tenho trabalho me esperando. – despediu-se, sério.

- Obrigada, Takashima-san. Espero que possa vir jantar conosco qualquer dia, para que eu possa agradecer.

Ele sorriu, educado, e ela não notou que o sorriso não chegou aos olhos. Assim que ele saiu, Aoi trocou um olhar com Reita, que deu um sorriso para a mulher e saiu atrás dele.

Uruha estava em frente à sua mesa, juntando suas coisas em uma mochila.

- Uruha...

O loiro não respondeu e continuou com o que estava fazendo. Antes que ele terminasse, Aoi se aproximou rapidamente e o segurou pelo braço.

- Desocupe o apartamento e volte para o seu. Depois vou até lá. – sentindo a tensão no corpo esguio, o olhar do moreno se estreitou – Eu não abro mão do que é meu, Uruha e você me pertence. O que aconteceu aqui não muda nada. Reita irá com você para garantir que faça o que estou mandando. - o loiro não disse nada e Aoi se afastou, soltando-o. Por alguns minutos, observou-o atentamente e então, olhou para o outro homem - Fique com ele.

Sem esperar, virou-se e voltou para a sala de Uruha. O loiro terminou o que estava fazendo e se afastou sem esperar por Reita. O mais velho correu e segurou-o.

- Você ouviu, Uruha. Eu vou contigo.

- Me larga ou vou começar a gritar...

O murmúrio fez Reita arregalar os olhos e olhar em volta, preocupado.

- Uruha, não seja criança! Tem uma explicação...

- Me. Solta. Agora.

O tom, bem mais ameaçador, fez Reita respirar fundo.

- Entendo que esteja magoado e com muita raiva de nós, mas essa reação não vai ajudar em nada. Sabe que ele não vai te deixar ir.

- Eu disse para me largar! – Uruha protestou, alto dessa vez.

Várias cabeças se viraram para ele e Reita soltou-o, afastando-se. Kai e Aoi, segurando o filho, pararam na saída da sala, olhando os dois. Miyume arregalou os olhos e se apertou ao lado do marido. Uruha se encaminhou diretamente para o elevador e assim que a porta se abriu, entrou. A porta se fechou um segundo depois de Aoi ver uma lágrima no rosto de Uruha.

- Ele está bem? – Miyume perguntou, preocupada.

- Só com dor de cabeça. – Reita explicou, aproximando-se.

Ao sentir o olhar pesado do moreno, o loiro mais velho encolheu os ombros e suspirou, resignado. Kai olhou de um para o outro, desanimado. Miyume percebeu a tensão no ar e respirou fundo, um pouco envergonhada ao pensar que a idéia de fazer uma surpresa ao marido não saiu como ela esperava.

 

***

 

Depois de quase duas horas que Uruha tinha saído da agência, Aoi recebeu uma lacônica mensagem de texto. “Apartamento livre”

Nada mais, nem uma palavra de recriminação ou qualquer outra coisa. Duas palavras simples e esperadas, que significaram uma preocupação enorme para o moreno.

 

Quando finalmente chegaram ao apartamento, Aoi se sentiu estranho ao ver que o loiro tinha tirado todas as suas coisas, como havia mandado. Surpreendeu-se pela meticulosidade do jovem, que não deixou sequer uma camiseta no cesto de roupas sujas, diante do pouco tempo que teve.

Kai e Reita não ficaram com eles, pretextando qualquer coisa sem importância e antes de saírem, ouviram um pedido quase desesperado do moreno para que fossem atrás de Uruha e não o deixassem fazer nenhuma besteira.

 

****

 

Miyume terminou de alojar os filhos no quarto de hóspedes e suspirou, cansada. Olhou em volta e sorriu ao ver a decoração moderna. Saiu e deixou a porta entreaberta, para que ouvisse os filhos, se fosse preciso. Não acreditava muito nisso, já que os dois filhos estavam exaustos. Ela caminhou pelo apartamento e ficou admirada com a iluminação indireta e móveis claros e modernos.

Ela olhou o marido, sentado no sofá segurando um copo e sorriu, ajeitando o cabelo. Aoi não pareceu perceber quando entrou e se sentou próximo a ele, virando-se para dar-lhe atenção.

- Parece muito cansado. – ofereceu, sem saber direito como proceder.

- O dia foi duro. – ele respondeu, com a voz baixa.

- Desculpe se causei algum transtorno. – pediu, um pouco envergonhada.

Ele suspirou e se virou para ela, dando um sorriso que não chegou aos olhos.

- Está tudo bem, Miyu... eu apenas não esperava...

- Aquele seu amigo foi muito simpático e me sinto um pouco culpada por não perceber que ele estava com dores... Ele estava chorando no elevador, não é?

Aoi desviou os olhos, levantando-se.

- Eu não notei – mentiu – Não se preocupe. Uruha é assim mesmo.

- Uruha? – ela perguntou, surpresa – Não é um apelido feminino?

- É... – ele parou e apoiou as mãos no bar, sem se virar para a esposa – mas combina bem com ele...

Ela sorriu, sem perceber o desconforto do marido.

- Combina mesmo. Ele tem traços bem delicados. – olhou as costas do marido – É um belo homem e parece ser uma boa pessoa.

Aoi tomou o resto da bebida de um só gole, tentando limpar a garganta. Encarou o copo vazio e murmurou, sem sentir.

- É, ele é um bom homem.

 

Mais tarde naquela noite, Aoi não conseguiu dormir. Encarou longamente a esposa dormindo ao lado do filho mais novo na enorme cama e achou o quadro estranho demais, inacreditável demais. Sem fazer barulho, saiu do quarto e foi até o de hóspedes. Da porta, olhou o filho mais velho, confortavelmente instalado na cama.

Depois de alguns minutos observando-o dormir, voltou sobre seus passos e foi para a sala, servindo-se de mais uma dose de uísque. Ainda segurando o copo, jogou-se sobre o sofá e agarrou o celular. Buscou o número conhecido e esperou a ligação ser completada, ouvindo o toque de chamada do outro lado. Os chamados se repetiram até cair na secretária e o moreno desligou, sem deixar recado.

 

****

 

- Como assim não apareceu no apartamento? – Ruki perguntou, incrédulo – Para onde ele foi, então?

- Eu não sei. – o amante respondeu, encolhendo os ombros – Mas para lá não voltou. Eu fui depois que deixamos a agência e fiquei até agora – o loiro se jogou no sofá, exausto – Avisei o porteiro para me ligar assim que ele aparecer...

Ruki ficou em silêncio, entristecido pela situação do amigo.

- Ele deve estar nos odiando... – murmurou, sentido.

O amante o olhou, semi cerrando os olhos.

- Eu nem consigo imaginar como ele está se sentindo, mas sei que saiu de lá chorando. E Aoi ainda teve que fazer das suas...

- O que ele fez? – Ruki perguntou, curioso.

Em poucas palavras, o loiro contou ao amante as palavras de Aoi para Uruha, fazendo o pequeno soltar um palavrão, exasperado.

- Diante de uma situação daquela, ele ainda... – parou, irritado demais para conseguir pronunciar alguma palavra – Aquele idiota ainda.... - gesticulou, exasperado - Depois de tudo ainda tinha que bancar o possessivo! – Ruki abriu e fechou as mãos – Aquele idiota insensível! Desgraçado!

Reita se levantou e abraçou o amante, acalmando-o. Ruki ainda se debateu e então parou, respirando pesadamente.

- Nós fizemos isso, Reita... nós ajudamos Aoi a enganar o Uruha... me sinto tão mal... – o pequeno puxou o ar e o amante se afastou, preocupado – Eu queria... eu sinto tanto...

- Eu sei que sente. – o loiro respondeu, respirando fundo – Apenas se acalme. Vai precisar de toda a sua energia quando ele aparecer.

Ruki deu um sorriso irônico e se afastou, abraçando-se.

- Não acredito muito nisso... – murmurou, olhando em volta.

Reita o encarou, pensativo.

- Uruha está magoado e tem razão de fugir por um tempo, mas a vida dele está aqui. O apartamento, o emprego.

- Tudo ligado a Aoi, que ele sabe agora que é casado e tem filhos. – Ruki explicou, inclinando a cabeça – A vida que ele conhecia não é real, Reita. Nada daquilo é real.

Reita ficou em silêncio, sem saber como retrucar as palavras de Ruki.

 

****

 

Com o passar dos dias, a tensão pelo desaparecimento de Uruha aumentou. O loiro não voltou para o apartamento e nem para a agência. As chamadas para o celular informavam que o aparelho estava fora da área ou desligado. Os contatos profissionais foram verificados, mas nenhum se encontrou com Uruha depois daquele dia.

- Ele ainda está com a moto, mas o que fez com tudo o que tirou do apartamento de vocês? – Kai comentou, tentando pensar.

- O porteiro informou que ele deixou o apartamento só com uma mochila e a mala pequena, dizendo que ia viajar... – Aoi respondeu, sem vontade.

- Então temos que chamar a polícia! – Ruki disse, irritado com toda aquela imobilidade.

- Não podemos. – a resposta do moreno saiu lacônica.

- E porque não? – o pequeno o enfrentou, incrédulo – Temos um amigo desaparecido! Isso é caso de polícia!

- Se ligarmos para a polícia, irão investigar tudo... – Aoi replicou, sem olhar Ruki – Vão descobrir que ele morava comigo... vão saber sobre Miyume e meus filhos....

A expressão de Ruki ficou carregada.

- E daí? Sua honra e boa figura é mais importante que Uruha, não é? Sempre foi! – virou-se, inconformado – Não sei por que ainda me irrito com seu egoísmo.

- Serei o principal suspeito. – Aoi disse, respirando fundo – Eu sou o maior interessado no sumiço de Uruha, agora que minha esposa está aqui.

Ruki olhou para ele, sem demonstrar pena.

- Pode provar que não o viu depois que ele saiu daqui.

- Mas não posso provar que não paguei ninguém para fazer Uruha desaparecer.

Ambos se encararam e Ruki notou o quanto Aoi estava abalado. Mais pálido e magro, o moreno realmente estava demonstrando que não estava assim tão despreocupado.

- Estou tentando evitar que Miyume saiba sobre Uruha. Ela já está desconfiando do meu comportamento e insiste que eu o leve para jantar lá em casa. Eu inventei uma viagem, mas não sei até quando vai durar. - o tom de voz de Aoi soou baixo e desanimado.

- Não podemos pedir sigilo para a polícia? Ou contratar um detetive? – Ruki perguntou, depois de alguns minutos – Ninguém desaparece assim, alguém deve ter visto alguma coisa...

Reita se desencostou da porta e puxou Ruki para perto de si. Ele já havia discutido o assunto com Aoi e sabia o que ele ia responder.

- Não posso arriscar. Se algo vazar e cair na imprensa, estarei arruinado.

Ruki arregalou os olhos e Reita apertou o abraço, segurando-o. Por alguns minutos, eles esperaram os gritos indignados de Ruki, mas o pequeno simplesmente baixou a cabeça e se abandonou no abraço do amante.

- Então Uruha estava completamente certo em fugir de você. Você não vale nada, Aoi.

Se desvencilhando, Ruki atravessou a sala e saiu, sem olhar para trás. Kai e Reita o observaram sair e o loiro suspirou, tenso.

- Acho boa a idéia do detetive. Vou cuidar disso. – disse, sem olhar para ninguém.

Apanhou o casaco e saiu da sala, fechando a porta cuidadosamente atrás de si. Kai olhou o moreno sentado à mesa e sentiu pena.

- Eu esperava um escândalo, lágrimas e recriminações... não este desaparecimento silencioso. – comentou, entristecido – Pelo jeito, magoamos Uruha muito mais do que pensamos. Eu, pelo menos, subestimei o estrago que ia causar.

- Eu não. – Aoi respondeu, encarando os papéis em sua mesa – Eu sabia que Uruha não ia aceitar. Ele nunca seria meu amante sabendo que eu sou casado. Miyume me contou a conversa deles aquele dia. Ele agora sabe que me casei com ela quando já estávamos juntos e ainda tem as crianças... – ele sorriu sem humor – Eu sabia que era arriscado, mas fui egoísta o suficiente para tentar manter as coisas convenientes para mim o máximo possível. A culpa dessa ausência é minha também, porque quando eu coloquei vocês nisso também, eu o deixei sozinho.

Kai o encarou longamente, notando os efeitos da tensão na expressão exausta.

- Eu sinto muito...

- Eu também sinto, Kai. – o moreno se levantou, encolhendo os ombros – E sei que a minha vida nunca mais vai ser a mesma depois disso tudo.

- Ele vai voltar, só precisa de um tempo – o moreninho ofereceu, penalizado.

O olhar devastado de Aoi fez Kai se encolher.

- Mesmo se ele voltar, nunca mais vai aceitar me ter por perto. Assim que Miyume colocou os pés na agência, eu perdi Uruha para sempre, Kai. Independente de como eu me sinto, isso não vai mudar. – ele passou a mão, tirando o cabelo do rosto – Eu ainda fiz uma tentativa desastrada de dizer a ele que não ia desistir dele, mas o que acabei fazendo foi bancar o arrogante diante de uma situação inacreditável que eu mesmo criei.

 

Apesar de todos os e-mails, telefonemas e mensagens, Uruha não voltou nem se comunicou. Surpreendentemente, o fotógrafo mandou o trabalho prometido para a matéria da revista por e-mail, aliviando um pouco a preocupação dos amigos e de Aoi. Infelizmente, o jovem não respondeu aos pedidos desesperados por uma chance de se explicarem.

 

*****

 

Depois de algumas semanas, Reita ficou surpreso ao saber que o amigo tinha vendido todos os móveis e devolvido o apartamento. Apesar das reclamações com o porteiro pela falta de aviso, não puderam fazer nada.

- Eu nunca pensei que ele pudesse deixar tudo para trás... – Kai lamentou, inconformado.

Ruki simplesmente encolheu os ombros.

- Não é de se estranhar, depois de tudo. A vida dele aqui não era real. Tudo em que ele acreditava, não era verdade, Kai.

O moreninho olhou o amigo, sem saber o que responder.

- Somos culpados por termos escolhido ajudar Aoi nessa loucura. De um jeito ou de outro, não ia dar certo... – Ruki comentou, pensativo – Só deu enquanto Uruha não sabia.

- Achei que ia dar tempo do divórcio... – Kai disse, desanimado.

- Acha mesmo que Aoi ia pedir o divórcio de Miyume com dois filhos pequenos? – o pequeno riu, sacudindo a cabeça – Apesar daquela carinha, ela foi esperta. Garantiu logo dois filhos para segurar o marido!

- Mas era o combinado. Dois anos e divórcio! – Kai rebateu, confuso – Ela concordou, não foi?

- Sim, ela concordou no início. – o amigo concordou, olhando para fora da lanchonete pela janela – E também não deveria haver filhos, pelo menos não por agora. Ela aceitou para que Aoi se casasse e depois mudou de idéia.

- Achei que ele sabia. – o moreninho ficou surpreso.

- Ele não podia fazer mais nada além de aceitar depois dela simplesmente informar a gravidez. E Miyume é realmente uma boa mulher para ele, só que não é quem ele ama. E acho que ela sabe disso, por isso tanto empenho em manter o casamento.

Ambos trocaram um olhar pesado, deixando o silêncio se instalar entre eles. Não havia mais o que dizer, além de lamentar o destino dos amigos.

 

****

 

Miyume olhou o marido pensativamente. Apesar de sempre afirmar que tudo estava bem, ela sabia que não era verdade. Ele estava a cada dia mais fechado em si mesmo e mais aéreo, tenso. Sabia que tinha algo a ver com sua vinda repentina e se arrependia de não ter avisado antes, mas não conseguiu imaginar como aquilo afetava tanto o marido. Aoi continuava tão gentil e carinhoso como antes, mas agora tinha algo diferente. De uma forma sutil, mas definitiva, ele estava se afastando. O sorriso para os filhos não tinha mais a leveza de antes e o olhar dele se tornou sombrio, profundo e doloroso.

Ela tentou se aproximar, deixa-lo saber que estava ali se ele precisasse, mas o marido não pareceu ver. Ele passou a chegar cada vez mais tarde, mais cansado e mais ocupado a cada dia. Não reclamava de nada e ainda brincava um pouco com os filhos, mas era na cama a maior mudança, com ela. Por mais que dividisse o corpo, Miyume sabia que a alma dele não estava ali. Aoi ainda era carinhoso e cuidadoso, mas não tinha emoção. Ela percebeu que ele se esforçava para deixa-la satisfeita, ainda que não sentisse o mesmo. Isso a partiu por dentro.

Não conseguiu se aproximar dele o suficiente para saber o que estava errado, mas sabia que ele estava sofrendo. O olhar atormentado que ela surpreendia quando ele pensava que ninguém o estava observando a fez chorar escondido, mortificada por não saber o que estava acontecendo com o homem que amava.

Fosse qual fosse a tempestade que ele estava enfrentando, ela percebeu que ele o faria sozinho, por escolha própria.

 

*****

 

Com o passar das semanas, os rapazes perceberam que Uruha não ia voltar, nem aceitar conversar. Todas as tentativas de encontra-lo se mostraram infrutíferas. O detetive contratado por Reita apenas soube que ele partiu de Tóquio duas semanas depois do último dia em que o viram, com destino à Austrália, mas perdeu a pista dele naquele país. Uma investigação completa sairia caro demais para qualquer um deles, e apesar da relutância, deixaram a questão em aberto.

Ruki ainda mandava e-mails regulares, contando como estava a revista e falando sobre coisas aleatórias, na esperança de ter alguma resposta. Infelizmente nunca houve nenhuma.

 

****

 

O tempo é engraçado. Corre quando precisamos que pare e para quando precisamos que corra.

A ausência de Uruha começou com dias, depois passou para semanas, meses... anos. As mensagens de Ruki foram se espaçando e com o tempo, pararam. Reita e Kai, vez ou outra, souberam de alguns trabalhos do fotógrafo para outras revistas, e então sabiam que ele estava bem. Ou pelo menos bem o suficiente para continuar vivendo.

Com o tempo, as inevitáveis perguntas sobre Uruha também pararam, e eles pararam de inventar desculpas para a falta do loiro. Aoi chegou a agradecer a mania de privacidade de Uruha, que evitou que toda a revista soubesse do relacionamento dos dois. Isso evitou fofocas constrangedoras e manteve o assunto entre eles. E mesmo eles, com o tempo, evitaram falar.

Não que tivessem esquecido, porque algo assim não se esquece facilmente. Eles traíram um amigo querido, tentando ajudar o outro. Infelizmente, a boa intenção não adiantou muito. Quando se trata de sentimentos, alguém sempre acaba muito machucado, querendo ou não.

Ruki ainda mandou mensagens de aniversário, e mandou também uma para avisar Uruha do divórcio de Aoi.

 

Miyume nunca soube por que terminou. Apesar de seu amor pelo marido, não conseguiu alcança-lo. Quando viu seus esforços serem em vão, ela se resignou a ter Aoi pelos filhos. O moreno nunca disse nada, mas não tentou esconder que estava morto por dentro. Ela quis gritar e sacudi-lo, mas não o fez. Sutilmente, tentou falar com os amigos para saber o que estava errado, mas eles simplesmente se fecharam também. E ainda havia uma questão estranha sobre o amigo loiro que ela tinha conhecido no escritório. Ela nunca mais o viu, apesar de sempre falar dele e insistir para que o marido o trouxesse para jantar ou qualquer outra coisa. Ela queria retribuir a gentileza do jovem fotógrafo, mas nunca conseguiu e nem mesmo entendeu por que. O preocupante eram as evasivas e as meias respostas que recebeu sempre que falou sobre isso, além da sombra no olhar do marido.

Quando a tensão já estava atingindo os filhos do casal, Aoi simplesmente pediu o divórcio. Ela chorou e tentou faze-lo desistir, mas não conseguiu. Miyume soube então que não adiantava. O sentimento do marido por ela não era nem perto do que sentia por ele. E lamentou não poder mudar isso. Se sentiu lutando contra um inimigo terrível, desconhecido, na forma daquela sombra imensa no olhar do marido.

Contra aquilo não podia, não por não querer, mas por não saber nem por onde começar ou com que armas lutar. Ela perdeu sem ter a chance de sequer tentar.

 

****

 

Uruha...

 

Eu sei que deve estar me odiando, e entendo por que. Acredite, eu também me odeio quando penso o que fiz com você, com a gente...

Quero que saiba como aconteceu, e por que. Ainda que não resolva nada, quero que saiba. E teria contado antes, se soubesse que eu tinha o mínimo de chance de você não me abandonar.

Eu fui arrogante e estúpido com você na revista, aquele dia. Eu agi como se fosse seu dono e te dei uma ordem inacreditável, a única desculpa que posso dar é que fiquei louco porque sabia que se te deixasse sozinho, uma coisa horrível ia acontecer. Por isso queria que Reita fosse com você, para garantir que eu tivesse tempo de explicar.

Eu me casei com Miyume como um acordo comercial. O pai dela investiu na revista, e depois de um tempo, começou a deixar claro que queria o casamento. Eu fiquei pasmo quando isso aconteceu e me arrependi de ter aceito o investimento, mas já era tarde. Acho que ele tinha isso planejado desde o início, mas eu não percebi nada até que não pudesse mais recusar. Eu juro, Uruha, eu não sabia que ia ter que pagar dessa forma! Eu estava com você e sabia que não podia te contar uma coisa dessas nem como piada. Tentei fingir que não tinha entendido, mas ele foi incisivo e me deixou sem saída.

Acho que já percebeu porque eu viajava tanto... e todos aqueles telefonemas que eu nunca explicava... eu me senti horrível fazendo aquilo com você, mas eu não tinha outra saída.

Reconheço que fui egoísta ao querer ainda estar com você, mesmo casado. Mas eu não estava pronto a abrir mão de você. É você que eu amo e é com você que eu quero estar.

Fui cruel e arrogante, reconheço. E tenho enfrentado o inferno sem você do meu lado.

Eu vi você chorando aquele dia, e tive que usar de toda a minha força para não correr e te abraçar. Essa lembrança me tortura, porque apesar de eu ter muitas outras, a última  que tenho de você é essa: você chorando ao ir embora. Por minha culpa.

Por minha culpa também você ficou sozinho. Eu envolvi todo mundo nos meus problemas e deixei você sem outra opção a não ser nos deixar. Não havia ninguém para você, meu egoísmo cuidou disso.

Me sinto perdido sem seu sorriso. Sinto frio e acho que nunca mais vou me sentir aquecido... ainda ouço a sua risada no silêncio e espero te ver chegando.

Mas isso nunca mais vai acontecer, não é?

Eu perdi você para sempre. Por burrice e covardia, por ganância e egoísmo. Eu troquei o que tínhamos por algo que não é nem mesmo uma pálida sombra...

Eu sabia que ia doer, sabia que ia perder tudo, mas não pude evitar te ter pelo maior tempo que eu pudesse... eu queria que fosse para sempre.

Nunca foi minha intenção te machucar... eu te amo demais para te fazer sofrer intencionalmente. Eu fui covarde e isso acabou conosco. E eu lamento tanto...

Eu espero que essa dor que está sentindo diminua com o tempo e até mesmo desapareça. Por mais que me doa dizer isso, quero que seja feliz. Não quero ser uma lembrança dolorosa que te impeça de ir em frente. Sei que você está sofrendo, sei que sente dor e que chorou muito... e talvez ainda chore. Mas eu não quero que se consuma por meu erro. Eu preciso que você seja feliz.

Preciso disso, Uruha, para que eu possa continuar vivendo.

Preciso que você seja feliz.

Tente lembrar do quanto nós fomos felizes, e tente por favor não me odiar muito. Eu também peço que tente entender Reita, Ruki e Kai. Eles só se envolveram porque eu pedi. Na verdade, acho que não dei muita escolha a eles...

Por mais que eu não tenha mais o direito, por mais errado que eu esteja, por mais cruel que eu possa parecer, ainda te amo. Muito. Com tudo o que faz de mim eu mesmo.

Me perdoe. Por favor me perdoe.

 

                                                                                  Aoi”

 

 

O moreno não releu a mensagem. Não precisava. Colocou o cursor sobre a opção enviar e fitou longamente a tela com o endereço conhecido. Era a primeira mensagem que mandava para Uruha em um longo tempo. Ele nem sabia mais quanto.

Parar de contar foi o único modo de não enlouquecer.

Clicou na opção e viu a caixa de carregamento se encher e a mensagem piscar na tela.

SUA MENSAGEM FOI ENVIADA COM SUCESSO

 

Ficou parado, encarando a tela sem realmente ver. A lembrança de um rosto delicado com um sorriso aberto o fez abrir um sorriso doloroso de volta. Eram as únicas coisas que ainda tinha de Uruha. Lembranças.

Depois da partida do jovem loiro, percebeu que ele tinha realmente levado tudo, inclusive as fotos dos dois. Infelizmente, não foi até o apartamento antes que fosse esvaziado, ou teria mais alguma coisa para se lembrar. Não tinha nada material, nada para tocar.

Reita, Ruki e Kai compartilharam com ele as fotos que tinham e criou então uma pasta com tudo o que pode reunir. Fotos dos dois, de Uruha sozinho e até mesmo as fotos que o loiro fez para as matérias da revista. As antigas e as atuais, que ainda não tinham sido utilizadas. Juntou tudo para se lembrar.

Embora soubesse que não precisava disso. Não precisava de nada fora si mesmo para se lembrar. Cada pedaço do seu corpo conhecia e se lembrava de Uruha, e se torturava pela falta que o loiro estava fazendo.

Um vazio que sabia que nunca mais seria preenchido.

Desligou o computador com um suspiro exausto. Encarou a tela escura ainda por um bom tempo e então se ergueu, atravessando a sala vazia. Depois da partida de Miyume e os filhos, pensou em vender o apartamento e deixar tudo para trás, mas não conseguiu. Queria estar ali quando Uruha voltasse. Mudou os quartos e trocou os móveis, tirando tudo que pudesse indicar que a esposa e os filhos estiveram lá por algum tempo. Não queria que nada deixasse o loiro triste.

Mas ele não voltou. Nem mesmo depois da notícia de seu divórcio.

Tudo o que sabia dele eram notícias esparsas de trabalhos feitos, e só. A distância imposta por Uruha deu a noção exata do estrago no loiro, e não havia nada que pudesse fazer.

O moreno respirou fundo e encarou a rua através do vidro da janela. Ainda era o editor chefe da revista que ambos ajudaram a fundar, ainda se encontrava com os amigos e com os filhos, e mantinha um relacionamento amigável, mas distante, com a ex-esposa. Apesar disso, sentia-se partido, incompleto. Como se uma parte grande e importante de si mesmo estivesse faltando, e ele sabia que esse pedaço era a medida exata de Uruha. A saudade e a preocupação se tornaram constantes, dividindo espaço com a tristeza e a culpa.

Encostou a testa no vidro, encarando sem ver o intenso movimento do começo da noite. O silêncio do apartamento o envolveu e Aoi fechou os olhos, sem se importar em limpar a solitária lágrima que escorreu pelo rosto.

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Eu também! Eu também! Eu também!!
Também queria uma continuação, mas o ruivinho apenas deu aquele sorriso e negou com a cabeça.
Tentei chantagem emocional, ameaçei cortar os pulsos e nada... ruivinho insensível...