As Loucas Confissões de Jessica Summer escrita por Miss D


Capítulo 7
Você conhece a minha avó?


Notas iniciais do capítulo

Como prometido, aí está! Capítulo-recompensa. Enjoy *u*...

*Jessica Falando*: Não tem ninguém normal no meu círculo social. NINGUÉM.



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  Hoje eu vou à casa da minha avó (Céus, não! Não pode ser verdade, NÃO! É brincadeira, não é?). Não, não é brincadeira, minha querida. É seríssimo. Bem que eu queria que não fosse, mas é. E não há nada que possamos fazer sobre isso. Além dos professores – que com certeza são almas perdidas –, os próximos da lista são os velhos. Idosos, quero dizer. (Meu amor, tanto faz!). E eles têm alguns MUITOS sérios problemas.

  Veja bem, existem muitos tipos de gente velha. Algumas até conseguem chegar a esse estado de vida não-tão-humana normais. Mas outros... Bem, outros não têm essa sorte.

  No meu caso, a minha avó se encaixa na última alternativa. E eu acho seriamente que tenho que enumerar algumas das loucuras dela:

           1ª. Falar – A minha avó é, de uma maneira não muito boa, uma dessas pessoas que aprenderam a falar quando eram humanas. Mas daí ela ficou velha e essa doença transformou essa dádiva divina do homem em uma coisa irritante. A habilidade da fala sempre foi motivo de regozijo e superioridade para a espécie humana. Pessoalmente, nunca me sinto tão infeliz por causa dela como quando vou à casa da velha. Ela não fecha a boca UM SÓ SEGUNDO – sinceramente, não sei onde ela arranja tanto assunto para falar. Por exemplo:

  – Oi, vó!

  – Oi minha neta! – bem estranho, admita – Nossa, como você cresceu! Ficou sabendo da minha vizinha? A filha mais velha dela estava grávida pelo que eu soube, então dá para imaginar como ela está crescendo, e vai continuar cada vez mais – ela solta aquela sua risadinha assustadoramente maliciosa que os velhos dão – A sua prima também não-sei-o-quê, ela falou não-sei-o-quê para mim e... – uma hora depois –... daí a sua tia, sabe, disse que ela e fulano de tal... – mais uma longa e cansativa hora de conversa chata e: – A vizinha da amiga da prima da mãe daquela mulher da igreja...

Bem, já deu para notar que, se eu for enumerar todos os tópicos (da vida alheia) que ela acha para contar eu vou morrer aqui.

          2ª. Falar sobre os problemas dela (reclamar) – Essa é outra das manias de velho que ela tem. A maioria dos velhos tem essa. Reclamar das coisas. Reclama de ter que acordar, reclama de ter que varrer o chão, reclama de ter que comer (Só na casa dela. Na casa dos outros ela não reclama mesmo de comer a comida dos outros. O máximo que ela sempre faz é falar que está sem sal. Mas, se a comida estivesse realmente insossa ela não comeria um monte até passar mal, com fez da última vez). Posso continuar? Obrigada. Reclama de ficar em casa, reclama se sai dela, reclama se está triste, se está entediada, e também reclama se está feliz – ela diz que felicidade demais pode causar infarto. – Sabe, se algum dia ela não tiver nada do que reclamar – o que provavelmente nunca vai acontecer já que ela reclama de, deixe-me ver... TUDO –, sua vida perderá totalmente o sentido.

  Aqui está uma das típicas reclamações de uma avó como a minha:

  – Filho – ela fala para o meu pai –, estou tão pobre ultimamente! – ela acabou de comprar uma estante e um jogo completo de cozinha novos. – Não tenho um centavo para fazer nada. Seu pai é que sabe, ele me viu ontem juntando as moedinhas para comprar a mistura. E você viu aquela goteira no banheiro? Nem se eu quisesse teria dinheiro para pagar um encanador para consertar aquela porcaria. E eu acho que a fiação inteira da casa está com problema. De vez em quando a luz falha que é uma coisa! – ela não disse coisa – Imagina se eu vou poder chamar um eletricista, nunca!

  E você acha que ela fala isso igual àquelas vovozinhas dos filmes, com aquela voz manhosa de profundo lamento? Que nada! Ela fica é toda irritadiça reclamando de tudo. Como uma bomba relógio, só que com cara de avó maníaca.

         3ª. Falar sobre as doenças que tem (ou que pretende ter). Ou ainda, como a minha prima diz, se gabar, literalmente, dos problemas de saúde. Essa também é bem comum entre a sociedade dos idosos. Algo como um clube da dor, igual eu vi em um filme uma vez. Ela adora inventar problemas de saúde (provavelmente para poder reclamar do SUS depois).

  Um pequeno diálogo entre velhos.

  – Oi, comadre.

  – Como você está, comadre?

  – Ah, menina, você nem sabe! Eu estou tão mau, acho que vou ficar com pneumonia. Meus pulmões estão horríveis! E eu estou com uma tosse terrível que quase me sufoca à noite. Meus olhos também estão ardendo, talvez pneumonia também dê conjuntivite. Esse tempo seco está acabando com as minhas costas. Semana passada eu fiquei dois dias inteirinhos travada da coluna. Ainda dói. Sabe, uma dor nas cadeiras, entre o quadril e a cintura, que é a morte. E você, como vai?

  – Nossa, comadre, lembra da minha gastrite? Pois é, está atacada, tenho certeza que vai virar úlcera! Ontem eu fui ao posto de saúde, sabe, e o médico nem olhou para mim, comadre! Esses médicos! Ele disse que eu estou ótima, acredita? Sem nem mesmo pedir um exame! Como posso estar ótima se minha gastrite vai virar úlcera?

  Provavelmente ele viu a mesma coisa que eu, uma velha cheia de disposição para atazanar a vida dos outros e bem imaginativa quanto às suas doenças. Por que não dá uma doença na boca dela, por quê?

  – Ai, comadre, eu também tenho úlcera. Sei bem como esses médicos do governo são. Daqui a pouco ela vira câncer e aí eu morro e ele nem vai ligar, não é com ele mesmo. Ultimamente estou me sentindo tão perto da morte. Eu achei um tumor bem no pescoço.

  – Sério, comadre? – daí ela faz para outra uma cara tão evidente de descontentamento por causa da doença mais mortal da outra e pergunta, desconfiada: – Quanto tempo de vida eles ainda te dão?

  – Uns três anos, no máximo – e depois eu é que sou a melodramática.

  Então uma faz para outra uma cara de triunfo doentio, enquanto a que perguntou diz:

  – O médico me disse que eu só tenho mais três meses de vida, por causa do derrame.

  A primeira vira a cara, pensando por que raios a doença da outra tem que ser mais trágica.

  Viu só? Os velhos têm uns papos bem esquisitos.

            4ª. Falar mal dos políticos. Bem, eu não me interesso nem um pouco por política, mas se todo mundo escutasse o que a minha avó fala sobre os políticos, a sociedade voltava à monarquia (Ou Anarquia).

  ATENÇÃO: Para própria segurança dos leitores, este tópico não terá diálogo demonstrativo. Falas censuradas pelo Ministério da Criança e do Adolescente. Faixa etária: inexistente para este caso.

           5ª. Falar enquanto assiste televisão.  Esse é a mais irritante das manias. Eu ABOMINO!

  Preste atenção:

  Você está assistindo a um filme legal na TV, no volume normal. Repetindo: na TV, ou seja, não dá para pausar ou voltar, nem nada disso. Aí entra a minha avó, na parte mais legal. A mulher está fugindo do monstro devorador de tripas. Então a vovozinha pergunta:

   – Que filme é esse?

   Você fala o nome do filme, com os olhos pregados na tela de 21’ da sua televisão.

  – Ahhhh... Por que ele tem esse nome?

  Você responde o óbvio.

  – O que a moça está fazendo? Por que ela está correndo igual a uma imbecil?

  – Ela está fugindo, vó – você responde tentando inutilmente não tirar a sua atenção da tela.

  – Por que?

  Já começando a perder um pouco a paciência, você responde:

  – Por que tem alguém atrás dela, é claro!

  Você já não consegue prestar tanta atenção no filme. Na verdade, a linha do raciocínio está bem longe do seu cérebro, que é onde deveria estar. Resumindo: você está perdidinho.

  – O que aconteceu com ela?

  – Ela... – o desespero por continuar a prestar atenção no filme, e entender, é evidente na sua voz, no rosto, em tudo.

  Silêncio. Dois segundos depois do silêncio:

  – Você viu o que aconteceu na novela das oito ontem? Aquela mulher sabe... como é que é mesmo o nome dela?... Aquela loira e magrela... pegou o marido traindo ela, daí... – como se você quisesse realmente saber do episódio da novela. Se você quisesse saber da novela, teria assistido. Agora tudo o que você quer fazer é entender o que está acontecendo na maldita da Temperatura Máxima. Será que ela não consegue entender? Não. Quer um conselho? Desista logo.

  Nesse meio tempo de reclamações internas e pensamentos homicidas, ela ainda está falando. Essa mulher nunca fecha a boca? É, não. Pelo menos eu nunca a vi fazer isso. Ela fala até dormindo.

  – Sabe – ela diz depois da narrativa ultracompleta e detalhada do episódio –, que filme mais besta. A gente nunca sabe o que está acontecendo.

  “Se alguém aqui calasse a boca, pelo menos eu entenderia”, você pensa. Então aumenta um pouco o volume da televisão.

  – Ela vai fazer o quê agora? – pergunta a velha quando a mulher vai, trêmula, pegar as chaves do carro para dar o fora (Exatamente o que você deveria estar querendo que essa vovozinha fizesse nesse momento).

  Você aumenta ainda mais o volume da TV.(Vou te falar uma coisa: isso não adianta muito. Em quanto ele deve estar agora, cinqüenta?).

  – Ah! – ela exclama – Minha vizinha tem um carro igual a esse, sabe. Outro dia ela estava me contando que a embreagem, seja lá o que isso for, deu defeito no meio de uma viagem para o Paraná...

  – Dona Lurdes – você interrompe –, será que a senhora poderia fazer silêncio? – diz isso com o máximo de educação possível no momento. – Eu quero ver o filme.

  – Não, filho, deixa eu te contar. Aí essa tal da embreagem deu defeito e eles ficaram encalhados no meio do nada. O marido dela teve que andar uns dez quilômetros para achar um mecânico.

  Você está se controlando para não pular na garganta dela. Tipo o David Benner, tentando não se transformar em Hulk. Você acha que funciona? Eu não. Sei muito bem que você está decidindo se matar estrangulando faz menos barulho do que batendo com tudo na cabeça.

  – O que a moça quer agora?

  – Não sei – você responde mal humorado.

  – Quem é ela, aliás?

  Silêncio. Está entendendo alguma droga do que está acontecendo lá na TV? É, eu sei que não. Como poderia?

  Mas quando ela finalmente pergunta “Por que terminou assim?” você perde a paciência, está a ponto de responder “Se você tivesse fechado essa sua bocarra enorme e prestado atenção no filme, saberia! Mas, além de matracar o tempo todo, não deixa que ninguém entenda nada.”, mas reprime impulso. Simplesmente sorri educadamente e diz:

  – Quer tomar um chá? – e ela continua a falar infinitamente.

            6ª. Falar mal do INSS.  A essa altura você já deveria ter entendido o que eu quero dizer, mas vamos lá. O INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), era para ser o que assegura a vida das pessoas, sabe, quando elas entram na terceira idade. Mas, na maior parte das vezes, em vez de ‘asseguramento’ as pessoas têm é aborrecimento. É sério. Por isso nunca vou com ninguém ao INSS. Você por acaso já viu o tamanho daquela bendita fila? Já? Além dela, ainda tem toda a dor de cabeça que o resto pode causar. Acho que este é um dos motivos por que os velhos são do jeito que são.  Daí as pessoas devem se perguntar: Nossa, esse troço deve dar bastante dinheiro, não é? (Ninguém deve estar perguntando isso, meu bem). Bem, se você for funcionário público... Se quer saber, é só que tenho um certo ressentimento por causa de uma vez que fiquei doente do tipo quase-morrendo, fui no auto-intitulado Posto de Saúde (Quando na verdade deveria chamar: Posto de Falta de Saúde) e ninguém fez nada a respeito. Mas eu não tenho nada contra funcionários públicos.

  E, como este é um tópico do qual minha avó sempre está reclamando, não tem como esquecer. Ah, esqueci uma coisa: depois de ficar um ano naquela fila excomungada, você não imagina quanto recebe, não? É, um salário mínimo. E, pelo menos por aqui, um salário mínimo não é lá uma fortuna. Então dá para deduzir que a velha não é a maior fã do INSS, e que, como eu sou uma pessoa sensata, não vou escrever o que ela fala (que, na maior parte das vezes, envolve muitos palavrões).

  O MINISTÉRIO DA SAÚDE ADVERTE: A fala que seria colocada neste espaço foi considerada inadequada para a faixa etária selecionada. Para sua maior segurança, retiramos o diálogo totalmente. (Não me pergunte o que aconteceu com o último que leu, o pobrezinho.)

 

  É claro que existem outros problemas, mas quem disse que eu tenho paciência para contar? Só esses já não foram o suficiente para você? Certamente deu para ver que os distúrbios mais freqüentes e alarmantes têm algo a ver com falar, mas isso é o normal – até onde distúrbios mentais podem ser normais, claro.

  Em geral, com essas vovozinhas, é tudo ao extremo. Quando não são exageradamente viciadas em uma coisa, são exageradamente desleixadas em outra. Falo isso por experiência própria. Não se esqueça que eu tenho duas avós – e as duas estão vivinhas.

  Enfim, dá para entender por que não é o paraíso ir lá. Até a idéia me aterroriza. Vou te contar, que programinha familiar legal esse, hein? Tudo.

  Minha vida tem sempre que ter essas complicações inesperadas. Por que eu? Isso só acontece comigo, aposto. E eu nem fiz a lição de casa. Droga. Devo ter matado meu pai à forca, só pode ser.

 

  Sabe, eu não estou muito animada com essa visita. Quer dizer, eu gosto da minha avó, gosto mesmo. Ou me esforço ao máximo para gostar. Só que é muito mais fácil gostar dela quando estou na minha casa, a uns vinte quilômetros da sua cara e das suas implicâncias. Eu sou muito ruim? Normal. Acho que é só o instinto de sobrevivência.

 

   Lugares onde você normalmente não gostaria de ir com a minha avó:

  1. Supermercado (principalmente na ala feminina). 
  2. INSS (Se você ainda não estiver ficando louco).
  3. Cinema (Se o seu objetivo principal for assistir ao filme).
  4. Shopping (É brincadeira que você quer ficar ouvindo reclamação de esporão e problema de coluna o tempo todo, não é?)
  5. Comícios Eleitorais (Você gosta de ouvir palavrões?)
  6. Banco do Brasil (por motivos óbvios).

 

  O fato é que eu não me sinto assim tão a vontade na casa dela. Por vários motivos que você provavelmente já vai saber – além dos que eu já mencionei.

  E, apesar de todos os meus protestos e da infinidade de desculpas que eu tentei ardilosamente usar, fui forçada a entrar no carro e ir. Agora me diz, por que as pessoas comemoram a Proclamação da República? Qual é a democracia existente nesse país se você é forçado a ir a lugares de onde quer passar bem longe? Isso é democracia? É?

  Então, cá estou eu, neste carro barulhento e velho. Ninguém precisa de colchão que faz massagem com um carro desses. Sabe aquele colchão que chacoalha as pessoas para fazer a tal massagem? Então, esse carro faz o serviço completo, até melhor. Nada chacoalha mais que ele, ainda mais nessas ruas impecavelmente bem pavimentadas daqui. E, sinceramente, quem admira o ronco do motor das Ferrari e dos Porshe tinha que ouvir o barulho, não só do motor, mas do carro inteiro do meu pai. Acho que até os marcianos escutam essa lata-velha. Como diz a Marta: “Gente pobre é um pobrema”. 

  Meu pai neste momento está falando algo sobre nó sermos totalmente chatas, mal-agradecidas e injustas, e que não temos a mínima consideração com a nossa pobre avó. A Julia e eu, quer dizer. A última parte não é de todo mentira, sabe. Bem, ele falava essas coisas que os pais sempre falam. É isso que eles fazem, não é? Dar bronca na gente. Nem sei como agüento isso novamente. Não é a primeira vez que ouço essa ladinha. É sempre assim. Por isso nem perco mais meu tempo em ficar ouvindo. Já até decorei.

  Bem, a Júlia está parecendo bem resignada com isso, eu acho. A coisa do meu pai e sua falação incessante, entende? Ela nem parece ligar. Talvez sejam os fones de ouvido, não sei. Ela parece bem calma (Quem sabe finalmente aceitaram o meu conselho e sedaram a garota? Eu sempre achei que isso fosse necessário. Principalmente antes de ela entrar no carro, quando estava meio que soltando fogo pelas ventas e andando feito uma louca pela casa, quase a demolindo. Assustador.) – por que eu fui quebrar os meus fones, POR QUÊ?

  E eu tenho realmente muita pena da minha irmãzinha. Mesmo. Ela bem que podia ter nascido com uma irmã linda e super-estilosa igual a ela própria, ao invés da mané esquisitona que tem. Mas a culpa não é minha, não é? Infelizmente para mim – e para muitas outras pessoas –, eu nasci assim.

  Olhando assim, superficialmente, para ela, até que parece bem comum (ao invés da aspirante a top-model que eu sei que ela é!). Está usando uma blusinha rosa-bebê bonitinha e simples, de alçinha, e uma mini-saia de pregas com uma sandália de salto alto, as duas brancas. Não parece tão ruim. Porém você nunca viu as roupas que ela costuma usar, como aquele vestido preto-brilhante, cheio de lantejoulas, curtíssimo e sem nada para tampar as costas, que ela normalmente veste junto com um scarpin, salto agulha quinze centímetros. E ela já é bem alta no seu um metro e sessenta e quatro. Não me pergunte como os meus pais deixam ela se vestir assim, nem eu sei. Meu palpite é que eles não fazem a mínima idéia do que vai dentro do guarda-roupa dela. E eu nem quero saber, também. Por isso, sim, hoje ela até que parece um ser humano normal.

  E eu decidi que, já que somos tipo companheiras de cárcere, vou ser mais solidária com ela. Sabe, não é fácil ser minha irmã. Na verdade, nós vamos ser solidárias uma com a outra, como as irmãs devem ser. A gente, na maior parte do tempo, é meio distante, mas nos amamos. Eu acredito. Então eu olho carinhosamente para ela. Estou sentada do meu lado do banco de trás, a uma distância considerável dela, no entanto, sei que realmente nos gostamos. De verdade. É só que é meio perigoso sabe, ficar perto demais da Júlia. Ela parece algo prestes a explodir (Como aquela hora, lá na sala, quando disseram onde eles iriam).

  Os fones de ouvido com certeza a estão deixando distraída. Ela está mexendo a cabeça de um lado para o outro no compasso da música. Só que quando vê que estou olhando afetuosamente para ela, faz aquela demonstração de profunda delicadeza habitual de sua personalidade generosa: vira diretamente para mim e lança um olhar que diz, tipo assim, “Tá ligada que é você quem vai ter que agüentar a velha gagá, né?” . E eu sei que estamos numa boa. A minha irmã não é um doce? É por isso que nos damos tão bem (É, tão bem quanto um macaco se dá com uma serpente). É sério, é a coisa mais linda essa sua consideração comigo, porque a verdade é que ela não está de muito bom humor hoje (Essa garota tem transtorno bipolar, sério mesmo. Precisa de tratamento URGENTEMENTE, ela muda mais de humor do que de roupa. E ela troca MUITO de roupa). E você não conhece a minha irmã. Se conhecesse, saberia como apenas esse gesto é tão significativo. Na verdade, é como se ela dissesse algo como “Hey, estamos juntas nessa”. Por isso é tão importante. É tocante, sabe.

  Depois ela se vira outra vez e volta a se concentrar apenas na sua música. Que, para ser honesta, está tão alta que eu, do outro lado do banco, bem longe, estou escutando perfeitamente. Ela ainda vai ficar surda, se vai.

  Britney Spears. Ela está escutando Britney Spears. Por que isso é tão previsível? Todas essas garotas tipo ela escutam coisas assim. Céus, eu podia ter uma irmã com um pouco mais de estilo próprio. Isso é tão comum que dá vontade de vomitar. Pelo menos ela ainda não está cantando Lady Gaga. Essa é uma daquelas cenas que ficarão para sempre gravadas no meu cérebro como totalmente bizarras.

 

   As cinco cenas mais terrivelmente bizarras que eu já pude assistir:

1)   O Robert Pattinson ser aclamado o homem mais atraente do mundo.

2)   Meu pai de cueca samba-canção.

3)   O Dia dos Namorados dos meus pais.

4)   A Mariah Carey naquele prêmio pela música “I Wanna Know What Love Is”.

5)   Minha irmã cantando. Principalmente Lady Gaga.

 

 Nós não temos nenhuma rixa entre nós, se é o quer saber. Apenas não somos muito... sei lá, não nos identificamos uma com a outra. Mas eu a amo. Eu acho. Podia ser bem pior, eu podia ter uma irmã punk de alguma gangue de revoltados, cheia de piercings e tatuagens e com um namorado bissexual de franja melada de gel para o lado – Deus me livre, Deus me livre MESMO. Ela podia ter dado uma resposta mal-educada como na maioria das vezes, sabe? Na escola ninguém nem sabe que somos irmãs (é claro, ela prefere omitir esse fato tremendamente embaraçoso...). Ah, cala a boca! Não se cansa de me atormentar, não?

  Voltando ao assunto. Bem, talvez eu não tenha tanta pena assim da Julia.

  Estou com medo de sair do carro. Já estamos chegando e, sinceramente, não estou nem um pouco entusiasmada com esse passeio em família. Nada entusiasmada. Isso não vai prestar.

   Meu pai toca a campainha, é meu avô quem vem atender. Se me perguntassem, eu não saberia dizer por que meus avôs se casaram. Eles não têm muita coisa em comum, não... Mentira, eles não têm NADA em comum.

  Vovô não é uma dessas pessoas falantes. Normalmente ele guarda um silêncio profundo e mórbido para tudo e todos – totalmente o oposto de Dona Lurdes, que não tem problema nenhum em falar por ela, pelo vovô, pelas minhas tias, por mais uns dez possíveis membros da família, pela torcida do Flamengo... Mas é assim, eles se completam. Enquanto ele nunca fala, ela ocupa todo o espaço que seria para ele fazer isso.

  As pessoas têm de aprender a se adaptar ao meio em que vivem, para poderem conviver melhor. Só que eu não sei ao certo como ele sobrevive.

  Por causa dessa diferença drástica na personalidade, acho que me identifico mais com o vovô. É muito melhor o silêncio dele do que a falação incessante da boca furiosa da minha avó. Acho realmente que ela aprendeu uma técnica para respirar enquanto fala, porque não pára sequer para tomar ar.

  O vovô, da forma mais reservada possível, pergunta se eu estou bem e eu respondendo que sim, depois de abraçá-lo. Estou mais temerosa com o que pode acontecer lá dentro. Da casa, quer dizer. Porém reprimo o impulso de responder “até agora” à sua pergunta. Isso seria um pouco falta de consideração já que a culpa do meu iminente sofrimento não é dele. É do meu pai.

  De qualquer forma, sou muito mais educada que a minha irmã que, ao passar pelo portão, olha bem para tudo, com uma cara de nojo. Você deve perdoá-la, nós meio que não passamos os melhores anos da nossa vida ali.

  Não me leve a mal, era quase um pesadelo.

  Muito inconvenientemente para mim, Dona Lurdes SEMPRE morou perto da nossa casa e, mesmo agora quando mudamos de cidade, a distância ainda me parece impossivelmente pequena. Não que eu me importe, mesmo que ela morasse na quadra de cima à minha casa eu não a visitaria com tanta freqüência.

  Não me considero uma pessoa muito ruim. Se quer saber, sou melhor que a Julia – sem querer estragar a boa imagem que você já deve ter dela. É só que é um pouco difícil agüentar a vovozinha. Não tenho as memórias mais felizes de quando ia naquela casa, sabe. Minha avó tem uma meta, ou sei lá o quê, de manter a casa impecável e assustadoramente limpa e arrumada. O TEMPO TODO. É medonho. Uma vez eu fui à casa dela e sem querer bebi dois copos de água. Só dois. Ela não gostou muito – nem um pouco, na verdade (parece que água é uma coisa realmente muito cara por aqui). Então, se algum dia aparecer na casa de Dona Lurdes, já sabe: nada de mais de um copo de água.

  Também já tive insuficiência respiratória nessa casa. É que eu fiquei com medo de respirar mais de três vezes por minuto e, de repente, sujar o ar que ela tinha acabado de limpar. Minha avó tem uma mania excessiva de limpar as coisas.

  Vai ver é por isso que eu não gosto de ir lá (e porque eu acho que a religião da velha é contra rir, ou qualquer outro tipo de expressão facial de felicidade).

  Nós entramos e, diferentemente do que fiz com vovô, só disse um “oi” forçado e abafado, e fui sentar. E como a minha querida avó é um amor de pessoa; sensível, entende? A primeira coisa que me diz é:

  – Que é, menina? Não vai abraçar a sua avó, não? E tira esse sapato antes de entrar... Que falta de respeito. A sua tia Francisquina era igualzinha e veja só o que aconteceu com ela (essa velhinha tem ou não tem um gosto fabuloso para nomes?!).

  Francisquina é uma tia minha que não teve muita sorte na vida. Foi burra o suficiente para casar com um cara bêbado que batia nela, então se divorciou e, francamente, acho que está melhor assim. Mas a onda de azar dela não terminou por aí. Ela tem dois filhos – primos que, por ser uma pessoa inteligente, não vejo assim tantas vezes. Um deles está já há algum tempo andando com o tipo errado de pessoa e, se quer saber, cheirando o tipo errado de ar/pó. O outro vai ser pai de novo, mas eu acho que dessa vez vai ter que casar com a mãe do bebê.

  É esse tipo de coisa que nos faz refletir sobre os poderes místicos que uma mulher raivosa pode ter com seus filhos – e netos. Pessoalmente, não acho que a tia Francisquina seja tão azarada assim, não. Isso tem cara é de praga de mãe, e das bravas.

  Então eu abraço ela. Não sou tão trouxa assim e acredito totalmente na magia negra dos professore e de senhoras inofensivas como Dona Lurdes.

  Como todo ser racional e civilizado que consegue passar por aquela porta em sã consciência, eu me sento em silêncio logo depois de me afastar da minha avó. Ela tem umas conversas muito embaraçosas das quais não pretendo fazer parte.

  Dona Lurdes presta sempre muita atenção em algumas coisas de extrema importância nenhuma. Por isso, assim que coloco meu lindo traseirinho no sofá, me lembro que, se eu quiser ter paz enquanto estiver ali, tenho que sentar da maneira correta, que, no caso, é com as costas afastadas do que deveria ser o encosto do assento, ombros retos, mãos sobre o colo, e total, inteiramente, completamente parada, postada como uma estátua. Ah! E lembre-se de não respirar mais de três vezes por minuto. O ar, sabe?

  Ela foi lá, no fundo da casa, e está voltando com uns presentes embrulhados em papéis de cores claras para minha irmã e eu. Apesar da coisa de ainda estar empacotado e faltar uns três metros até que ela chegue onde eu estou, já sei o que é. Faço idéia. O fato é que a minha avó não é muito criativa nessa história de presentes para os netos, então, possivelmente, é outra camiseta. Mas não essas camisetas normais. Aquelas camisetas de velho, sabe, do tempo em que se vestir não era realmente uma coisa importante, e as pessoas podiam tanto vestir calças da Forum como se enrolar em lençóis que dava no mesmo. Tipo um camisuéter. É, acho que esse é o termo.

  Eu não sou mal agradecida. Acredito que até que sou bem resignada com as coisas na minha vida. Principalmente coisas assim. Mas é que, honestamente, não gosto desses camisuéteres. São esquisitos até para mim. E nem pense que algum dia vou colocar um desses no meu corpo. Pretendo morrer antes dos 45 e bem sóbria.

  De qualquer forma, aposto que ela comprou no bazar beneficente da igreja – um evento em que só velhos mãos-de-vaca aparecem –, de novo. Tenho um espaço inteiro reservado para eles na minha cômoda. Talvez ainda tenha lugar para mais um entre o do natal e o do meu aniversário no semestre passado.

  Julia não parece tão feliz. Nada feliz. Ela nem mesmo disfarça a expressão de total desagrado de seu rosto. Como eu já disse, ela é quem entende de moda, e não eu. Por isso dá para imaginar o que ela vai fazer com ele – manter a quinhentos mil quilômetros de distância de seu corpo de modelo.

  E agora vem a parte que eu mais gosto. Sabe, minha avó deve ter vivido uma vida muito, mas muito chata mesmo. Sempre repetindo a mesma coisa, todos os dias. Acordando toda vez às 06h00min, tomando café-da-manhã sempre às 6h e 30min, guardando a manteiga todas as vezes na segunda prateleira da geladeira ao fundo do canto esquerdo, sentando sempre não mesmo horário para conversar com a televisão ligada. E, definitivamente, SEMPRE se sentando para falar abobrinhas depois de me presentear com aqueles camisuéteres horrorosos.

  É, acho que vou me matar. De jeito nenhum que minha vida vai ser assim.

  Vou te falar outra coisa sobre a minha avó: ela adora conversar a respeito de assuntos que NÃO DEVEM ser mencionados em público. NUNCA. Como a vida íntima das pessoas, por exemplo.

  E, sendo a pessoa incrivelmente esperta que sou, dou logo um jeito de ficar caladinha, na minha, para completar ainda mais minha perfeita e impecável imagem de escultura abstrata – por favor, esse corpo sem forma nem pode ser chamado de corpo! – Só que não dá muito certo não.

  – E então, Jessica, você já menstrua? Porque hoje em dia as meninas estão ficando mocinhas tão antes da idade! Outro dia mesmo eu via na TV – minha avó AMA DE PAIXÃO jornalismo investigativo. Datena, para ser mais precisa – sobre uma menina de nove anos que o padrasto abusou e ela ficou grávida, a pobrezinha!

  Tirando o fato visivelmente embaraçoso de que minha avó está discutindo meu ciclo menstrual na frente de, deixe-me ver, minha mãe, a Julia, meu pai, meu avô E da faxineira, eu permaneci indiferentemente silenciosa a essa pergunta.

  Já quanto à notícia que ela falou, tenho uma coisa a dizer: esses noticiários que a Dona Lurdes assiste só passam desgraças, credo! Céus, não têm nenhuma, uminha sequer, notícia feliz. Vê se eles falam de algum lindo casamento que aconteceu, com os noivos felizes e perdidamente apaixonados? Não! Só se na festa um ex-namorado maníaco da noiva saiu atirando em todo mundo que via pela frente. Eles falam de adolescentes promissores que ganharam com mérito algum concurso de redação ou olimpíada de matemática nacionais? Nunquinha mesmo. Falam é dos delinqüentes juvenis que planejaram friamente a morte dos pais executivos. Mas isso parece outra daquelas manias de gente velha, eles assistem Datena para ter mais assuntos problemáticos para conversar. Quanto mais desgraça, melhor.

  Eu é que não quero chegar a esse estado decadente de vida. Ou quase-vida.

  – Não vai responder à sua avó, Jessica? – e virou-se para minha mãe, que, tenho certeza, estava sem a menor vontade na sala dos meus avôs. – Você devia dar uma educação melhor para os seus filhos, Carmen.

  Morreu. Só isso.

  Minha mãe já não gosta de ir à casa da sogra, e ainda ela fica atacando mamãe na sua capacidade de educar os filhos. Dona Lurdes deveria saber que estava cutucando o dragão com o palitinho de dente.

  Meu pai olhou para minha mãe com um olhar que dizia “Respire fundo, meu bem. Não seja precipitada.”, e depois, com a voz falsamente descontraída, perguntou:

  – Você quer um pouco de água, querida?

  O que não foi a coisa mais inteligente a dizer, visto que aqui tem aquele problema todo com a água e tudo mais. Porém mamãe estava com os olhos muito estreitados, quase como linhas, na direção da minha avó, que olhava fixamente de volta, ameaçadora. As duas estavam numa espécie de contemplação ofensiva uma da outra. Coisa que somente sogras e noras sabem fazer.

  Eu continuava calada, quase tão calada quanto Julia ou vovô. Só que Julia, diferente de mim, estava largada no sofá, toda de qualquer jeito, e olhando as unhas (postiças. Eu não queria ter que falar isso a você, mas...). Em momentos assim, essa é a melhor atitude. Silêncio.

  Entenda, quando você finge, como eu, que nem está escutando uma palavra do que alguém diz, DE PROPÓSITO, é porque, obviamente, não quer fazer parte da conversa.

  Mas parece que para Dona Lurdes, não. Quer dizer, não é só por que eu estou bem caladinha aqui, sem prestar a mínima atenção ao que ela está falando e sem a menor inclinação para fazer isso, que eu não estou fazendo parte da conversa, não é?

  Ela acha realmente que eu estou.

  (Ignore, Jessica, ignore). É fácil falar. Você sabe perfeitamente que eu não vou conseguir fazer isso. (É só ter força de vontade). E nos punhos também.

  O que você quer de mim, hein, Dona Lurdes?

  Mesmo que só mentalmente, eu não deveria ter perguntado.

  –... Está me escutando, Jessica? Isso é ótimo para mim. Eu não gosto nem um pouco da menopausa, na verdade. Tenho calafrios horrendos à noite e de dia quase morro de calor. Mas se for para me livrar dessa praga que as mulheres têm, melhor. Eu entrei muito tarde na menopausa. Já contei pelo menos oito meses desde a minha última menstruação;

  Ah! Como eu amo esse assunto. Sim, porque essa é a parte da minha vida que eu mais gosto. Por que eu não gostaria de discutir como é confortável usar absorvente, ou como é incrível quando minhas roupas ficam manchadas de vermelho, ou como é ótima a sensação de estar parecendo uma torneira com um grande vazamento? Porque é assim que eu me sinto, vazando. E isso sem mencionar a alegria de ter cólicas.

  – E, da última vez, veio tão pouco, sabe, quase nada.

  Por que eu ia querer saber sobre o fluxo sanguíneo escorrendo na calcinha da minha avó?! (ECA!!!) Concordo totalmente, eca.

  – Vem muito para você, Jessica? Eu lembro que quando eu era jovem isso era horrível. Parecia que eu esta tendo hemorragia.

  Não vou responder, me recuso a fazer parte dessa conversa estilo programa “Papo de Mulher Para Mulher”. Eu detesto esse tipo de programa. Prefiro mil vezes Datena.

 

  Pontos positivos de ir à casa da minha avó:

  •  Ela cozinha bem.
  •  Ela tem uma TV legal.

 

  Pontos negativos de ir à casa da minha avó:

  •  Eu não posso mudar o canal da TV.
  •  Ela tem problemas mentais.
  •  Posso ter outra insuficiência respiratória,
  •  Mamãe e Dona Lurdes parecem incapazes de conviver pacificamente no mesmo ambiente.
  •  Ela tem umas conversas mega-chatas, irritantes e embaraçosas.
  •  Ela tem síndrome de Eu-Estou-Morrendo.

 

  Por que eu deveria ter escolhido vir? Ah, é! Porque eu nunca tenho escolha sobre isso.

 

 


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Notas finais do capítulo

Não sei quanto a vocês, mas eu simplesmente AMEI esse cap. Foi tremendamente divertido escrever ele - principalmente porque, como já devem ter percebido, eu amo todos os personagens que vão aparecendo.
Obs.: Os velhos são pessoas realmente esquisitas. Concordo totalmente com a Jessica.

*Jessica Falando*: Como eu posso ser normal no meio de gente assim? E as pessoas ainda dizem que eu é que sou dramática...