Feitiços Modernos escrita por Janus


Capítulo 1
Capítulo 1




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Sou uma bruxa.

Nenhum comentário? Não, não é isso que meu genro ou nora me chama – como se eu tivesse isso – sou uma bruxa mesmo, daquelas que acendiam fogueiras em grandes tabernáculos e chegavam a ser confundidas com semideusas, fazendo raios caírem dos céus e apavorando os caçadores que ousavam se aproximar de seu território.

Foram bons tempos...

Era assim que éramos. Criaturas com corpo feminino, muitas eram loiras e tinham longos cabelos bem cuidados. Também agíamos como sereias em terra firme atraindo homens para a perdição. A simples menção do que éramos apavoravam as pessoas. Chegávamos mesmo a integrar algumas das lendas de então. Aquelas três irmãs do destino que surgiram na mitologia nórdica eram bruxas, Medusa era uma bruxa! Tinha um mal gosto para penteados, mas era uma bruxa. As chamadas sereias do mar também eram bruxas. E eu queria saber quem foi o marinheiro bêbado que disse a mentira de que tinham caudas em vez de pernas.

Mas as coisas foram mudando. Alguns séculos depois, apenas fazer raios caírem não já assustava tanto. Uma grande pira de fogo com uma mulher dançando diante desta e recitando palavras estranhas também não tinha mais o mesmo efeito. Idade média... a época em que o estereotipo das bruxas tinha sido efetivamente criado. As belas mulheres dançando foram substituídas por figuras de capuzes agindo a noite em cemitérios e de dia eram mulheres normais, prontas para serem capturadas pela inquisição. Até parece que gostamos de andar no cemitério. Já andou em um daquela época? Lúgubre, frio, tristonho, abandonado. Uma mulher que adorava dançar em uma fogueira iria ficar vadiando em um cemitério? Só se fosse para um encontro, e tinha que valer muito a pena! Que ridículo. Nossa paixão é torturar as pessoas, enchê-las de medo. Mais ridículo ainda é a quantidade de bruxas consideradas mortas nesse período. Como se fosse fácil uma verdadeira bruxa ser morta. Na época dos bárbaros apenas os mais furiosos conseguiam nos enfrentar, e isso por que eram tão ou mais sanguinários que nós mesmas. Mesmo os raros cavaleiros que enfrentaram bruxas só o fizeram por serem mais vis e mesquinhos que as caçadas. Tudo o que eles queriam era nome e reputação a espalhar para os ventos, algo equivalente a acertar na loteria sozinho hoje.

Enfim, a Idade Média foi onde nós bruxas menos agimos e isso porque não precisávamos! Adoramos ver o sofrimento e medo alheio, é o nosso fetiche, nossa forma de vida. A Igreja torturava e deixava todos com medo e pavor, porque iríamos fazer algo para chamar a atenção? A única bruxa que realmente morreu durante a inquisição foi uma idiota que caiu do telhado de sua casa. E isso para poder ver melhor uma jovem infeliz que ia ser queimada na fogueira. Coitada... da bruxa, não da infeliz.

Além disso era divertido ver a nossa nova imagem. Nos dava um ar mais aterrorizante. De dia mulheres comuns, mas em segredo, em seus redutos secretos, nos seus porões de casa escondidas de todas vivíam rodeadas de caveiras e livros de feitiços, fazendo poções e lançando pragas nos vilarejos.

Mas se quer saber, também foi muito chato. Não fazíamos nada, apenas assistíamos. E realmente, mesmo que quiséssemos fazer algo, não seria pior do que já ocorria. A peste negra, o castigo dos céus que se espalhou pela Europa várias vezes. Poderia ser talvez a única coisa que poderíamos realmente ter feito então. Mas mesmo isso foi conseqüência daquele bando de humanos que lavavam as mãos de manhã cedo quando acordavam, e se desse tempo, o rosto. Inventaram o perfume porque eles não gostavam de tomar banho! Precisavam de nossa ajuda para fazer uma peste? Nem queira imaginar o esgoto de então. Ele não existia! Em grandes cidades como Paris sim, havia esgoto. Mas nos milhares de vilarejos não. Usavam o mesmo principio da fazenda, uma fossa para esconder os dejetos. Numa fazenda com no máximo cinqüenta pessoas funciona. Tente fazer isso em uma vila com muitas centenas. A fossa fica sobrecarregada bem depressa.

Mas mesmo essa época passou, e a seguinte foi a que eu considero a mais vergonhosa. As bruxas do novo mundo... mulheres velhas, com verrugas, chapéus com ponta e tortos, voando em vassouras... juro que para mim me parece descrição que alguém faria de uma sogra que detestasse. E até que parece mesmo. Talvez alguém tenha inventado isso para se livrar da sogra e os outros o imitaram. E quando acabaram todas as sogras tiveram que continuar com a mentira ou teriam problemas.

Acha minha explicação ridícula? De mulheres sensuais fomos transformadas em figuras de capuz negro que faziam coisas terríveis a noite. E de figuras de capuz nos rebaixaram a velhas feias que voavam em vassouras. Alias, queria saber de onde tiraram isso de vassoura. Eu já tentei e realmente... é ridículo! Sem contar que marca o corpo não importa como você se sente sobre isso. só aconselho a não tentar sentar como se fosse um cavalo, por motivos óbvios. Além disso usar um chapéu todo amassado e com ponta... nossa. Bruxas não precisam ter mal gosto! E nessa época as mulheres usavam lenços na cabeça, não chapéus. Porque bruxas tinham que usar chapéus e anunciar a todo mundo “sou uma bruxa, estão vendo? Não? Então olhem meu gato preto”.

Isso é outra coisa que não entendo. Na verdade detesto gatos. Soltam muito pelo, apesar de serem muito úteis para espantar os ratos. E naquela época os ratos eram uma praga muito irritante. Haviam gatos soltos em toda parte, e isso mantinha esse monte de rato sob controle. Porque ficaram com medo dos gatos pretos? Talvez porque esse monte de medroso visse movimento a noite e ficassem assustados, ou porque a noite apenas podiam ver o reflexo das luzes dos olhos de um gato preto. Nessa época eles eram um bando de covardes ainda maiores, mas tinham medo de coisas bobas, não da gente. E isso porque também nunca viram uma bruxa de verdade.

Mas nessa época fazíamos algumas coisas. Nada assim espetacular. Não era mais a época de medo e tormento continuo como os séculos anteriores, mas a condenação de inocentes continuava, e muitas mulheres infelizes foram mortas sendo chamadas de bruxas.

Eu admito que nem todas eram propriamente infelizes. Algumas eram burras o bastante para acreditar em varias histórias deturpadas e fazerem coisas inúteis acreditando que eram feitiços. Coisas que hoje seria equivalente a macumba, mal olhado, essas coisas. Queriam causar mal a outras pessoas. Era quanto agíamos. Observávamos a quem queriam ferir e se nos interessasse, fazíamos o serviço as escondidas. Nosso interesse era ver o sofrimento dos outros, não anunciar nossos serviços nas paginas de um jornal. Não tínhamos problema algum em fazer isso escondido.

Mas nessa época também começou a decadência final. Nas histórias para crianças. Antes as histórias eram assustadoras para manter as crianças em casa e longe das florestas. Mas nesta época as florestas já estavam muito desmatadas, e as histórias viraram mais contos de fadas.

No século passado foi pior. Pode imaginar a nossa decadência? Quer entender ela? Deixe-me explicar. Uma princesa conhece um príncipe e vive feliz para sempre.  

Tédio!

Agora, coloque uma bruxa na história e se tem algo interessante. Toda a história é para salvar a princesa da bruxa, ou derrotar a bruxa, não importa. Sem a bruxa a história não existe. Pois é... viramos necessidade do entretenimento infantil, e Walt Disney levou isso as raias do absurdo. Confesso que eu ficava vermelha de vergonha com aqueles clássicos. Sem contar outras um pouco mais antigas, como bruxas boas no Mágico de Oz...

Bruxas boas? Pois sim. Mas o que podíamos fazer? O que você faria contra canhões, pólvora, revolveres, metralhadoras, e por ai vai? Nosso consolo ainda era ver o tormento dos outros, e as duas grandes guerras até que ajudaram. Mas sabíamos que na próxima talvez não sobrasse ninguém.

Hoje o termo bruxa é até chique em alguns casos. Somos lembradas em algumas festas – confesso que adoro doces – somos ainda referencia para filmes épicos, embora em muitos já estamos sendo heroínas, somos fetiche de algumas pessoas. Mas competir com as lendas urbanas foi a gota d’água. Quem te assusta mais, uma bruxa ou a loira do banheiro? Isso já deixou de ser decadência e se tornou vergonha.

Mas no meu caso estou satisfeita, e não sou a única. Ainda sou uma bruxa, e faço o que sempre fiz, mas apenas meus... como dizer? Meus feitiços são mais modernos. Não preciso mais canalizar antigas energias ainda desconhecidas dos cientistas, ou utilizar de alquimia para elaborar alguma poção que enfraqueça os músculos e assim deixe os homens doentes. Ou ainda manipular os germes que permeiam tudo o que existe para soltar uma praga devastadora. Ah, não... hoje meu poder é mais sutil do que nunca. Ele está na ponta de uma caneta.

Hoje posso ir tranqüilamente em algum hospital publico e assistir a longa fila de enfermos aguardando para serem atendidos, deliciar-me com atendimentos de emergência feitos nos corredores de hospitais, sentir o jubilo do desespero da infeliz dona de casa que descobre que ali não tem o remédio de seu filho, e isso depois de horas esperando, observar quase com um orgasmo médicos públicos corruptos que dificilmente aparecem para atender os pacientes e os poucos médicos heróis que lá estão lutando inutilmente para ajudar todos os que pode. Claro, eles sempre conseguem para alguns, mas eles não podem atender a todos, e os não atendidos que me alegram. E o melhor é que eu fiz isso, eu sou a responsável ao menos em parte por tudo. E vocês que me deram tal poder.

Minha varinha de condão moderna é uma caneta, e minha sentença de tortura é minha assinatura no papel. Finalmente após séculos de decadência e humilhações eu voltei a me sentir como antes, no topo, e podendo causar tormentos a um quantidade de seres que antes eu apenas podia sonhar.

Ainda sou uma bruxa, mas a bruxa dos tempos modernos. Eu sou uma política. E trema! Sou candidata a reeleição!


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Notas finais do capítulo

Reviews?

Minhas outras fics Originais
—Mágica para o Afeto— Oneshot
—Um Estranho Incidente— Oneshot
—O Último Ser Humano— Oneshot
—Declaração de um Alienado— Oneshot
—Por Que?— Oneshot
—Ayesha, a Ladra
—A Caçadora