Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 160
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CRETA


O Monte Ida era o epicentro de extraordinários fenômenos que logo atrairiam a atenção de especialistas do mundo inteiro. Satélites meteorológicos mostravam a convergência e o acúmulo de nuvens sobre Creta num padrão nunca visto antes. Impressionava também a rapidez com que a nuvem se formara. Na falta de uma classificação melhor, formara-se uma cumulonimbus gigante. Mas, enquanto esse tipo de nuvem normalmente alcança de 10 a 23 km de altura, a que se apresentava sobre Creta já alcançava 45 km, nos limites da estratosfera.

Ventos fortíssimos assolavam a ilha, destruindo barcos e instalações costeiras. O aeroporto estava fechado para pousos e decolagens. O vôo que trouxera Calaïs e Hércules fora o último a pousar e só pousara com segurança graças aos anemoi. Sem eles, os ventos agora ameaçavam os aviões no ar e em terra e o próprio aeroporto.

As baixíssimas temperaturas nas camadas superiores da nuvem gigante resultaram na precipitação de grandes pedras de granizo em toda região de montanha. Anogeia e as aldeias próximas a Idaion Antron foram quase totalmente destruídas. Foi repentino e as pessoas mal tiveram tempo de buscar abrigo. Muitos morreram.

Relâmpagos cruzavam os céus da ilha numa freqüência nunca vista antes em nenhum lugar. A grande maioria entre nuvens e a grandes altitudes, mas muitos caíam em árvores, torres de transmissão, torres de celular e campanários de igrejas, alguns evoluindo para incêndios. O mais sério consumiu uma igreja centenária.

Os prejuízos se multiplicavam. Os raios que caíram sobre torres de transmissão sobrecarregaram a rede e causaram a interrupção do fornecimento de eletricidade em muitos pontos da ilha. Quase todos os celulares estavam sem sinal. O forte vento derrubara galhos e até árvores inteiras e, por toda parte, havia ruas e estradas bloqueadas.

O medo alimentava os boatos que realimentavam o medo. A população estava apavorada. Os trovões emendavam uns nos outros num ribombar contínuo e assustador que parecia anunciar o fim do mundo. Quem pode, trancou-se em casa. Mas muitos desafiaram a tempestade e buscaram as igrejas. Se fosse mesmo o fim, esperavam que isso contasse pontos a seu favor.

Como todo boato, aqueles tinham um fundo de verdade. E, se ainda não era o Apocalipse, era seu prenúncio.

Anjos só podem se manifestar no plano material através de receptáculos humanos. E em nenhuma outra parte do mundo existiam tantos deles quanto na região do Mediterrâneo Oriental. Considerando apenas a ilha de Creta, eram cerca de quarenta. Muitos eram descendentes de filhos bastardos dos antigos deuses. Já receptáculos para arcanjos, só existiam na América. Mas, para os objetivos de Rafael, um receptáculo que resistisse algumas horas já seria adequado. Mesmo porque havia outros à disposição.

Em diferentes pontos da ilha, quase que ao mesmo tempo, dezessete homens entraram numa espécie de transe e, em seguida, desapareceram. DESAPARECERAM NO AR. Havia testemunhas. Em alguns casos, mais de uma. Um vídeo feito no celular mostrava um destes desaparecimentos misteriosos. Não demorou para que circulasse nas redes sociais e, em uma ilha pequena, sempre tem alguém conhece alguém que testemunhou o fato ou que conhecia o sujeito que desapareceu. O do vídeo ou um dos outros dezesseis.

A repercussão foi maior porque, antes disso, já circulavam na internet as primeiras fotos feitas por um turista japonês mostrando um gigante azul de muitos braços, armado com espadas e lanças, guardando a entrada da caverna Idaion.

Idaion Antron era um ponto turístico importante. Recebia turistas todos os dias, o ano inteiro. Kälï promovera um desmoronamento que bloqueou a passagem pela única estrada asfaltada que leva à caverna, impedindo a aproximação de automóveis e de ônibus de turismo, mas sempre tem alguém aventureiro o bastante para vencer a trilha de 3 km a pé.

O fotógrafo era um japonês apaixonado por mitologia grega que viera do Japão exclusivamente para ver a famosa Caverna de Zeus. Não ia voltar agora que estava tão perto do objetivo. Não por causa de uma estrada bloqueada. Mas a visão que teve ao chegar era algo com que jamais sonhara. Nem que se tornaria o autor da primeira prova fotográfica da existência de uma criatura mitológica.

Que criatura era aquela? Nenhuma que reconhecesse da mitologia grega. Parecia mais uma divindade indiana. Mas o que uma divindade indiana estaria fazendo em Creta?

O rapaz não trouxera apenas equipamento fotográfico. Tinha um notebook conectado à rede mundial e, minutos depois, fotos e vídeos já corriam o mundo.

A repercussão fora imediata e a controvérsia enorme e envolvia muitas esferas. As fotos, feitas com teleobjetiva, eram de resolução excelente, mas isso não impediu acusações virulentas de fraude, principalmente por razões religiosas.

O maior motivo de estranheza e da revolta de organizações religiosas ocidentais e muçulmanas era a semelhança do gigante azul com a deusa indiana Kälï. E um dos argumentos usados para desacreditar os registros era a sua incoerência intrínseca. Que relação poderia existir entre uma divindade indiana e a Caverna de Zeus, em Creta? Nenhuma, é claro. Que maior prova que era tudo uma falsificação grosseira?

Depois que as fotos e o vídeo foram exibidos por uma emissora local, ensaiou-se uma corrida para Idaion Antron que só não aconteceu porque o tempo começou a mudar de forma assustadoramente rápida e o medo logo se tornou maior que a curiosidade.

Um jovem motorista de taxi que ignorou a prudência e os conselhos e se aproximou da caverna acabou fulminado por um raio enquanto descrevia a batalha entre os anjos e Kälï, pelo celular, para uma emissora de radio local.

O fotógrafo japonês, assustado pela chegada dos anjos e temendo pela própria vida, tentou fugir, mas foi pego pela terrível chuva de granizo. Uma grande pedra o atingiu na cabeça e ele caiu, sangrando. Foi, então, atingido por outra. E outra. E outra. Muitas. Dois minutos após receber o primeiro impacto, ele estava morto. O equipamento também não resistiria aos impactos. Mas o vídeo, duas horas depois, já totalizava um milhão de acessos.

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IDAION ANTRON


Calaïs chegou ao Monte Ida quando a terrível batalha já se aproximava de seu clímax. Mas sua atenção não se fixou nas marcas de destruição presentes por toda a parte nem nos homens caídos em meio a imagens em negativo de grandes asas gravadas a fogo no chão de pedra.

O gigante azul estava acuado, mas, no momento, a única preocupação de Calaïs era com o irmão e ele não se deteve nem mesmo para entender o que acontecia no campo de batalha. Seguiu direto em direção à entrada da caverna Idaion e entrou, ignorando o anjo que tentava em vão atravessar a barreira mística.

Não foi difícil encontrar os argonautas. Seus corpos jaziam inertes no chão da caverna sob uma cúpula luminosa. Os símbolos desenhados com luz eram estranhos e Calaïs não os reconheceu. Místicos sem dúvida, mas vinham de um projetor 3D. Magia e tecnologia lado a lado. Necker havia mencionado apenas Jasão, Idmon, Eufemo e Autólico. Não tinha citado Palemon, mas era ele sem dúvida. O gênio da tecnologia. O projetor era coisa dele.

Zetes não estava entre eles. Calaïs não sabia se isso era bom ou ruim. Estavam gelados, mas não mortos. Calaïs ainda tentou acordá-los, sem sucesso. Imaginou - corretamente - que ali estavam apenas seus corpos físicos. Suas almas estavam longe. No Inferno. Seu irmão estava no Inferno. E isso não podia ser bom.

Não sabia o que fazer. Foi invadido por uma terrível angústia. Mas sabia que não podia se entregar ao desespero. Precisava acalmar sua mente e seu coração. Ajoelhou e rezou. Estava tão concentrado que por pouco não deu um grito quando viu Idmon de pé na sua frente.

– Idmon?

– Não, filho do honrado Bóreas. Sou Hécate, a senhora da noite, vestindo o corpo de meu discípulo.

– Honorável deusa das três faces, o que pode me revelar sobre o meu irmão Zetes?

– Seu irmão atravessou o Hades e agora caminha no Inferno, assim como seus companheiros. Eles correm grande perigo. Todos eles. Neste momento, não há qualquer certeza de que sua missão terá sucesso. E, como alertei antes que entrassem, independentemente de sucesso ou fracasso, o Inferno cobrará seu tributo.

– Deusa da noite, eu acordei no dia de ontem, numa cidade localizada no outro lado do mundo, com um pressentimento ruim. Uma angústia crescendo em meu peito. Mas não tão grande quanto a que sinto agora. Eu tenho medo. Medo pelo que pode estar acontecendo com meu irmão.

– Seu medo é justificável, jovem vento. Seu irmão assumiu para si um terrível fardo e, ao menor descuido, ele cairá.

– Pode me conduzir até ele?

– Posso. Mas não vou. E também não adiantaria. O desfecho, seja ele qual for, está muito próximo. Você não chegaria a tempo.

– Me deixe tentar. Eu aceito o risco.

– Não. E não adianta insistir. Talvez o tranqüilize saber que eles estão sob minha proteção. Mas, a minha proteção não se estende a você, que rejeitou em seu coração os antigos poderes. Mesmo que eu quisesse, eu não poderia protegê-lo se algo desse errado.

– A minha segurança é o que menos importa. Vai mesmo proteger o meu irmão?

– Vou.

– Obrigado. Muito obrigado, deusa.

Calaïs se surpreende ao ver-se subitamente sozinho. O corpo de Idmon voltara a ocupar o mesmo lugar que antes, como se ele jamais tivesse despertado. Mas Calaïs sabia que não fora uma ilusão. Hécate realmente se manifestara para ele.

E agora se fora.

Viera atrás de respostas. Agora tinha uma resposta. Mas, não a que queria escutar.

Queria escutar que o irmão estava bem.

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Um estrondo e toda a caverna estremece. Algumas pedras se desprendem do teto. Um segundo estrondo e um desmoronamento obstrui parcialmente a entrada. Idaion Antron estava sob ataque. Um anjo usava sua espada flamejante para atrair e direcionar raios contra a entrada da caverna.

Calaïs olha apavorado para os corpos dos antigos camaradas. Algumas pedras caem próximas ao ponto em que se encontram. O medo que sentia era por eles, não por si próprio. Se a caverna desabasse, eles morreriam. Não era só com o irmão, tinha um compromisso com eles também. Por tudo o que foram e viveram juntos um dia.

O medo desaparece, dando lugar à determinação do guerreiro.

Calaïs sabia que não tinha chance contra toda uma legião de anjos, mas era o único que estava de pé e não ia fugir da luta.

.

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LOS ANGELES


– Sam, acabou de dar no noticiário. Uma série de estranhos fenômenos em Creta. Não pode ser mera coincidência.

– Tô abrindo o laptop. Que tipo de fenômenos, Bobby?

– Os mais visíveis são meteorológicos. Uma enorme nuvem de tempestade que se formou de repente. As imagens de satélite são impressionantes. Uma terrível tempestade elétrica cobrindo toda a ilha. E ventos. Ventos fortíssimos causando todo tipo de destruição.

– Acha que pode ser coisa do Calaïs?

– É uma hipótese que não pode ser descartada. Mas, parece ter começado uma hora antes do horário previsto para chegada do vôo.

– Não quer dizer que não tenha o dedo dele. Que eu saiba, ele não precisa do avião para nada.

– Ele não. Mas o Hércules precisa. Acha que o Calaïs arriscaria as vidas das pessoas a bordo?

– Espero sinceramente que não. Quero muito acreditar nisso. Estou entrando no site da companhia aérea. .. Droga, já esperava isso. Simplesmente não há como acompanhar pelo site os horários reais de pousos e decolagens. Não temos nem mesmo como saber se realmente pousaram em Creta. Segundo esse outro site, o aeroporto de Creta está, neste exato momento, fechado para pousos e decolagens. Os vôos que chegam estão sendo desviados para Atenas.

– E parece que tem muito mais coisas acontecendo.

– Que tipo de coisa?

– O nosso tipo de coisas. Deu também no noticiário que, desde o início do dia, estão circulando boatos desencontrados na ilha sobre fim do mundo e uma batalha entre deuses que estaria acontecendo nas montanhas. As pessoas estão assustadas. A TV mostrou um minuto de um vídeo que um turista japonês colocou na web. O vídeo mostra um gigante azul de dez braços, cheio de armas, na entrada da tal caverna que o Hércules disse ser a entrada do Hades.

– Yeah! Este parece ser o assunto do dia. Está em todos os sites. Em alguns, as notícias estão sendo atualizadas quase que minuto a minuto. Parece que neste exato momento o tal gigante azul está sendo atacado por um grupo de homens que testemunhas afirmam terem desaparecido de pontos diversos da ilha umas poucas horas antes.

– Encontrou o tal vídeo?

– Encontrei. Estou abrindo.

– Impressionante. Acha que é real?

– Somando isso, Jasão, os boatos e a tempestade? Pela nossa experiência, eu diria que tem grandes chances de ser.

– Droga. Tudo isso acontecendo, e nós aqui, de mãos atadas.


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Notas finais do capítulo

04.08.2012
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Agradecendo a Drita a sexta recomendação. E aproveitando para recomendar suas histórias a meus leitores, na hipótese improvável que já não conheçam.