Eu sou... Scarlet Flawless escrita por lljj


Capítulo 4
Solteiras




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— Atenção! — A voz de Renzel viajou pelo auditório, silenciando as conversas paralelas e levando todos a virar a cabeça em sua direção. — A caravana para Yalkell sairá na quinta-feira às sete e trinta da manhã. Nenhum minuto a mais ou a menos. Quem se atrasar será descontado do pagamento.

Os membros mais novos da banda concordaram prontamente; os mais antigos, acostumados demais ao jeitinho ditatorial para se assustar, voltaram ao processo vagaroso de guardar os instrumentos.

— Quantas apresentações teremos em Yalkell? — questionou Bete ao amarrar os cachos castanho-escuros em um rabo de cavalo. Mechas soltas emolduraram seu rosto enquanto um rubor forte aquecia a pele alva de suas bochechas.

— Três — respondi antes de beber um grande gole da garrafa de água em minhas mãos. Sem uma cadeira à vista sobre o palco, sentei-me em um caixote de madeira destinado aos instrumentos.

Um sol implacável reinou do lado de fora. As portas e janelas fechadas tornaram o Grande Teatro um imenso forno pronto para nos cozinhar. O brilho gorduroso de suor resplandeceu na pele de cada pessoa presente.

— Espero que as acomodações sejam melhores das que tivemos em Hermina — comentou Kendra, sentada ao meu lado. Agitava um delicado leque para abanar o pescoço, onde fios do cabelo loiro pálido grudavam na pele dourada, e me fitou pelo canto dos olhos muito azuis. — Minha cama estava cheia de percevejos.

Encolhi os ombros doloridos. O desgaste acumulado de apresentações consecutivas, viagens frequentes e ensaios vigorosos cobrou uma taxa extra do meu corpo. Até meus cabelos doíam. Avaliar o nível de aprovação da banda em relação aos hotéis reservados era a última coisa a me preocupar.

— Reclame com Renzel.

— Reclamar o que? — perguntou o próprio diabo, aproximando-se. — Não é sobre o hotel de novo, certo, Kendra? Já avisei que tem total liberdade para reservar outras acomodações. Pagando do seu bolso, claro.

Kendra fechou o leque em um movimento cortante. Os lábios carnudos se apertaram em um biquinho.

— Por que é tão cruel comigo, Renzel? — Cruzou os braços, destacando o decote avantajado de seu vestido. — Não tenho sido boa o bastante para você?

Renzel não se dignou a responder, embora um ar de diversão adornasse seu rosto. Kendra fazia parte do coral há tempo suficiente para suas birras e reclamações entrarem na rotina. Bete era mais nova, tanto em idade quanto na banda, e relanceou os grandes olhos verdes de um lado a outro como se esperasse uma verdadeira discussão entre Renzel e Kendra. Abigail, a veterana do coral, se limitou a puxar outra tragada do cigarro preso entre seus dedos e observar as interações ao redor com um olhar entediado, encoberto pelos fios lisos e negros de sua franja.

Renzel parou a minha frente e balançou uma cesta diante do meu rosto. Frutas de diferentes formatos e cores estavam cuidadosamente empilhadas dentro dela. A maioria fácil de reconhecer — maçã, pera, ameixa —, porém algumas de aspecto um tanto... extravagante.

— Acabou de chegar para você — informou ele, ostentando um sorriso mais que presunçoso. — Sabe o que é esse fruto eriçado? — Apontou o dedo esguio para a fruta que ocupava o espaço central da cesta. A casca era áspera, colorida em tons de verde e laranja com um padrão quase geométrico. Um ramo verde espetado se ergueu no topo, semelhante a uma... coroa? — Isso é um abacaxi, a fruta mais cobiçada da Cidade Imperial.

Kendra abandonou a fachada coquete para se inclinar mais perto e analisar a coisa com um misto de repulsa e fascínio.

— Como se come isso?

Renzel franziu o rosto em uma careta de horror.

— Está louca, mulher? Não se come um enfeite de luxo!

Abigail soltou um grunhido.

— Então é para olhar enquanto apodrece?

Renzel suspirou, balançando a cabeça em evidente decepção.

— A plebe não entende — lamentou, em seguida puxou um cartão da cesta e o empurrou para mim. — Leia.

O amontoado de letras rebuscadas convidou Scarlet para comparecer a uma reunião na Residência Bright. O convite era polido e formal, mas o horário da reunião e a frase “local exclusivo para a confraternização entre amigos” pintou uma imagem bem diferente do evento: uma festa do porão, com toda a bebida e malícia que lhe eram características. O fato de estar assinado em nome de lorde Desvalles só arrematou o meu declínio.

Devolvi o cartão para Renzel.

— Não.

Um vinco floresceu na testa dele.

— Não?

— Não.

A expressão de Renzel endureceu.

— Ah, puxa, já está na nossa hora, não é, garotas? — falou Bete e, dessa vez, estava certa em esperar uma discussão. — Vamos indo, vamos?

Abigail lançou um sorriso torto para mim antes de se afastar. Ela nutria um prazer especial em ver a autoridade de Renzel ser contestada. Kendra pareceu desapontada por não acompanhar o impasse, mas partiu sem mais palavras. Bete saiu por último, acenando um tímido tchauzinho por sobre o ombro. Os músicos terminaram de guardar seus pertences e se encaminhavam para a saída. Em poucos minutos, apenas Renzel e eu permanecemos no palco.

— Sabe de qual Desvalles estamos falando? — perguntou ele. — O herdeiro de mais da metade dos territórios a oeste de Sina, membro de uma das famílias mais tradicionais da humanidade, patrocinador de vários artistas?

— Sei muito bem quem é. Conheci ele no baile de lorde Lobov e, sinceramente, não me impressionei.

Lorde Desvalles era mais um integrante das legiões de homens com complexo de deus a infestar a Muralha Sina. Esquivei-me dele desde aquela fatídica noite. Apesar do meu óbvio desinteresse, ele continuou enviando convites e presentes para provar o quão irritante era.

— Deve levar isso mais a sério. — Renzel colocou a cesta do meu lado para pousar as mãos nos quadris estreitos. As mangas dobradas até os cotovelos eram o máximo de desalinho o qual se permitia, mesmo em um calor insuportável. — Não estamos mais lidando com comerciantes e a baixa nobreza. Desvalles faz parte da nata social, tem conexões até com a família real. Ele te enviou a porra de um abacaxi!

— E daí?

Daniel podia ser o próprio rei e eu ainda não desejaria desperdiçar meu tempo em sua companhia. Conciliar a agenda atribulada de Scarlet e minhas atividades como informante já demandou bastante energia, obrigada.

— Meu bem — Renzel segurou meu rosto entre suas mãos grandes e delgadas, a gentileza do gesto contrastou com a linha contraída de seu maxilar —, não estou te pedindo para dormir com ele; seria decepcionante, eu sei. Apenas seja um pouco mais sociável, é bom para os negócios.

A cadência dele soou como se falasse a uma criança teimosa. Por Sina, Rose e Maria, como odiava esse tom! Agarrei os pulsos dele e o afastei ao me erguer.

— Não cheguei até aqui para ser sociável, muito menos fazer média com gente como Desvalles.

— Encare como parte do trabalho. As pessoas querem conhecer a mulher por trás de Scarlet. — O azul dos olhos dele reluziu maldosamente. — Mesmo que ela seja tão inacessível que não consiga cultivar uma única conexão real.

Os músculos das minhas costas enrijeceram a ponto de machucar. Raiva e amargura se embolaram em meu interior até ser impossível distinguir qual era qual. Essa era a hora de dar um tapa no rosto de Renzel e colocá-lo em seu devido lugar: um homem desprezível, egoísta e sem um pingo de moral para falar de mim. Mas as palavras dele carregaram uma verdade que minou as minhas forças. O cansaço se apoderou dos meus membros, tão pesado e antigo quanto a solidão dos meus dias.

Renzel piscou duas vezes, soltou um longo suspiro e desviou o olhar.

— Merda, eu não devia ter...

— Envie uma recusa ao convite — declarei, e foda-se o que quer que ele queria dizer. Peguei a cesta de frutas e parti em retirada. — Agradeça pelo abacaxi. Ficará lindo na minha sala de visitas.

*

 

Na verdade, eu não possuía uma sala de visitas. Sequer tinha uma casa. Nos últimos anos minha residência variou em uma sucessão de quartos de hotéis cuja qualidade e espaço cresceram de acordo com a renda de Scarlet. Minha atual base de operações, por assim dizer, ficava na cobertura do hotel Hartmann, no centro de Stohess. Um apartamento de dezenas de metros quadrados que eu dividia com Hick, tendo Renzel como vizinho de porta. Os móveis de madeira maciça, os tapetes de linho, as pinturas elegantes, as plantas ornamentais e demais elementos da decoração eram de exclusiva propriedade do hotel. Fora alguns itens pessoais, nada ali era meu.

Após convidar lady Helen Becker para um chá da tarde, senti a necessidade de acrescentar alguma coisa para quebrar a impessoalidade do ambiente. O abacaxi de lorde Desvalles caiu como uma luva. Coloquei-o como destaque na mesinha da varanda.

Do sétimo andar, a visão era de tirar o fôlego. O céu azul salpicado por nuvens brancas se estendeu ao longe até se chocar nos paredões cinzentos da Muralha Sina. O Parque Bela Vista era uma mancha verde aos fundos da paisagem, cercado por construções grandiosas da mais elegante arquitetura, pintadas em tons pastéis e coroadas por telhados vermelhos. A Avenida Central, a principal de Stohess, estava lá embaixo, fervendo desde cedo com o trânsito de carruagens e carroças e a agitação das lojas e fábricas. Diferente de Hermina e seu efervescente cenário artístico, Stohess era um polo comercial, apontado como a segunda região mais rica das três muralhas — atrás apenas da capital, Mitra.

Não me impressionei ao descobrir que o distrito era o lar oficial da família Becker, os maiores investidores do ramo de laticínios.

Nove dias se passaram desde meu primeiro contato com lady Helen e, para o desgosto de sua adorável mãe, a menina deixou claro o desejo de repetir o encontro. A fama devassa de Scarlet não a assustou. Ao contrário, em nossa troca de cartas, lady Helen demonstrou grande curiosidade sobre a vida de uma cantora popular.

Ladies em geral eram incentivadas a aprender somente o necessário para conseguir um bom casamento. Qualquer outra aspiração ou talento se perdeu nas expectativas de uma vida limitada entre o matrimônio e a maternidade. Lady Helen, no entanto, se beneficiou das práticas da igreja para desenvolver um apurado conhecimento musical. Aos dezesseis anos, era a mais jovem pianista a tocar na orquestra da congregação de Stohess. Entusiasmada, narrou extensamente sobre o sonho de compor uma sinfonia. Enviou-me algumas partituras de sua autoria para avaliação. Um material bruto, porém promissor.

Talentosa e divertida, lady Helen era a prova de como a inocência conduzia ao abismo.

A trágica ironia do destino traçou o caminho perfeito para eu atingir os planos da missão através da lady mais simpática a respirar dentro dessas muralhas. Eu não me daria ao luxo de perder essa oportunidade, apesar do espaço oco a crescer em meu peito.

Às duas da tarde, a jovem cruzou as portas duplas do apartamento. O cinza-azulado de suas íris era ainda mais brilhante quando olhou em todas as direções como se tentasse gravar cada detalhe do salão de entrada. O ar de fascínio perante um cômodo no qual o aparador vazio era o maior enfeite confirmou minhas suspeitas: essa era a primeira vez que lady Helen pisava em um hotel.

Ela ao menos considerou o perigo que corria?

A luz do sol atravessou as janelas largas e lançou reflexos de ouro, cobre e marfim sobre seus cabelos soltos. Nem mesmo o amontoado sem graça que era o vestido rosado encobriu o magnetismo de sua beleza. Segurava contra o peito uma pasta de couro, na qual estariam as demais partituras que queria me mostrar. Quando enfim se concentrou em minha pessoa, abriu um sorriso ofuscante.

— Scarlet! — exclamou, entre um cumprimento e uma risada, tão estupidamente feliz que constrangeu.

Ah, pobre, pobre garota...

Sorrindo, guiei-a para a varanda. Hick terminava de encher a mesa com os produtos enviados pela cozinha do hotel. O esmalte vermelho do jogo de chá brilhou sob os raios solares enquanto a brisa espalhou o apetitoso perfume dos sanduíches recheados de carne e queijo. As flores do jarro de cristal eram uma linda mistura de rosa, azul e lilás; contudo, o alvo da atenção de lady Helen foi certeiro.

— Isso é um abacaxi? Pelas Muralhas, há tempos não vejo um!

A declaração foi o estopim para uma longa conversa à mesa, conduzida de forma sutil para passear por assuntos relevantes. O tema abacaxi incentivou a lady a falar sobre a decoração de sua casa. O tópico se voltou para comidas preferidas quando começamos a comer, então evoluiu para uma discussão sobre os nobres que ofereciam os melhores e piores jantares de Sina.

— Acredite em mim, os jantares da Mansão Saer são uma agressão ao paladar — disse Helen, e acrescentou uma colherada generosa de mel ao chá de jasmim. — Não existe meio termo: ou a comida está salgada demais ou está insossa.

Lambi as pontas dos dedos para salvar o farelo deixado pelos biscoitos amanteigados.

— Visita com frequência a Mansão Saer?

Ela balançou a cabeça em confirmação.

— Lorde Saer e meu pai estão fazendo negócios. Somos convidados para todos os jantares. — Ela estremeceu como se o mero pensamento fosse uma tortura.

— Ah. — Coloquei outro biscoito na boca. Lorde Vitor Saer era um conhecido parlamentar. Ele e seus aliados formavam um grupo que defendia a autonomia e neutralidade do parlamento. Nas votações, evitavam assumir partidos ou erguer bandeiras. Uma aproximação entre lorde Saer e lorde Becker poderia ser o prenúncio de uma alteração nessa dinâmica. — Então suas famílias são aliadas? — questionei, sorrindo para suavizar a intromissão.

A lady mordiscou um sanduíche e mastigou devagar. Seus olhos vagaram pela paisagem de Stohess, um brilho brincalhão presente neles. Após engolir, se inclinou mais perto para murmurar:

— Se eu te contar uma coisa, promete guardar segredo?

Meu estômago afundou para algum ponto do andar térreo.

— Claro.

Ela lançou um desnecessário olhar para os lados — Hick era a única outra pessoa no apartamento, mesmo assim estava longe de vista —, depois aproximou sua cadeira até nossos joelhos se tocarem sob o tampo da mesa.

— Meu pai está tentando resolver a crise deixada pelo escândalo de lorde Lobov. Ouviu as fofocas? — Aquiesci prontamente. — Lorde Saer é meio que um dos principais líderes do parlamento, mas ele já está muito velhinho, por isso indicou um afilhado para ocupar sua cadeira nas votações.

— O que isso tem a ver com seu pai?

A aposentadoria de lorde Saer era uma novidade esperada. O homem beirava os oitenta anos. A indicação de um afilhado também não era uma surpresa, afinal o velho viúvo não tinha filhos legítimos. Aonde lorde Becker entrava nessa história?

— Ai, Scarlet! — A garota distribuiu tapinhas em suas bochechas coradas. — Meu pai pretende fechar um acordo político com lorde Saer através desse afilhado. Ele ofereceu a minha mão em casamento, entende? Eu vou me casar!

Oh-ou. Erwin estava com problemas.

— Você está bem com tudo isso? — indaguei por pura curiosidade.

Casamentos políticos eram comuns entre a nobreza e a classe mais rica, mas, porra, lady Helen tinha dezesseis anos. Quem casava tão cedo?

O sorriso dela apenas aumentou.

— Sim, sim, mil vezes sim! — Gargalhou. — Ele é o solteiro mais cobiçado dessa temporada. Bonito, educado, de boa família, parlamentar. O pacote completo! Quase desmaiei quando meu pai disse que ele seria meu noivo. Minhas pernas estão bambas até hoje.

— E quem é esse homem?

— Oh, você deve conhecê-lo! Ele é um entusiasta do ramo artístico, lorde Daniel Desvalles. Diga, eu não tenho sorte?

Meu olhar disparou para a droga do abacaxi. Daniel estúpido Desvalles estava me assombrando!

Lady Helen continuou a rir para si mesma, sem sequer desconfiar do futuro miserável a aguardá-la ao lado de um homem que cortejava outras mulheres mesmo depois de firmar um noivado. No fim, ser usada por mim era o menor dos problemas dessa garota.

— Já escolheram uma data?

Os ombros dela despencaram.

— Ainda não, infelizmente. Meu pai insistiu em oficializar o noivado só depois de lorde Desvalles assumir a cadeira no parlamento. — Ela soltou um suspiro pesado, em seguida encolheu os ombros e voltou a sorrir. — Está tudo bem, lorde Desvalles logo se apresentará ao parlamento, então formaremos um casal lindo, amoroso e cheios das bençãos do Criador.

Em um gesto distraído, ela pousou a mão no enorme colar preso em seu pescoço. Os dedos magros delinearam a insígnia central, impressa em baixo-relevo com o busto da deusa Rose.

Rose.

— Imagino como seu pai deve estar ansioso — comentei, soando dispersa ao me inclinar para pegar um sanduíche. — Ele não é favorável às expedições da Tropa de Exploração, não é? A última votação foi um grande golpe.

Lady Helen franziu o rosto em desagrado.

— Tem razão, foi uma bagunça terrível. É triste perceber o quanto a Tropa de Exploração influencia o parlamento... Ah, mas tenho fé que a situação vai melhorar! Meu querido lorde Desvalles estará lá para apoiar meu pai no futuro. As heresias da Tropa de Exploração chegarão ao fim.

Detive-me no processo de cortar o sanduíche em pedaços menores.

— Também é contra as expedições?

— Com toda certeza! Elas são um atentado à santidade das Muralhas. Esses tolos atrairão a ira do Criador.

O fervor das palavras arrepiou os pelos dos meus braços. A crença inflexível de deter a verdade absoluta era a característica mais detestável dos seguidores da Fé das Muralhas. A religião em si nem era tão ruim. A ideia de haver um deus amoroso que criou as paredes divinas para livrar a humanidade do mal era um tanto... reconfortante, talvez?

Apoiei os cotovelos na mesa para descansar o queixo na palma da mão. O colar da lady segurou a minha atenção.

Ironicamente, o maior símbolo da religião era a principal razão dela ter perdido força nos últimos anos. Um plebeu médio precisava vender a casa e cinco anos de trabalho para comprar uma dessas monstruosidades de ouro — confeccionadas pela própria igreja, aliás. Até o fiel mais devoto pensava duas vezes antes de fazer esse “investimento”, como os pastores tanto gostavam de chamar. Também era uma merda de usar. O peso do metal deixava marcas na pele e dores nos ombros e pescoço.

Lady Helen usava o dela com muita naturalidade. Anos de costume, sem dúvida. Eu, no entanto, era inundada de desconforto só de olhar.

— E o Criador, em sua misericordiosa graça, confiou a humanidade à proteção de Sina, Rose e Maria. Pela santidade das grandes muralhas, viveremos.

O queixo da garota caiu, seus olhos se alargaram e reluziram.

— Conhece o Voto dos Esclarecidos?!

Confirmei com um aceno. Não importava quantos anos se passaram, os passos do ritual continuaram gravados a ferro na minha mente, assim como aquele velho cântico: Honra a Sina por sua glória, honra a Rose por sua força, honra a Maria por sua proteção. Seremos salvos, seremos salvos.

— Minha mãe era do sacerdócio — contei.

A boca e os olhos de Helen se abriram ainda mais.

— Eu nunca imaginaria!

Minha risada correu com o vento.

— Sim, bem, sou o completo oposto de uma figura religiosa, não é mesmo?

Lady Helen agitou a cabeça e as mãos em negação.

— Me desculpe, me desculpe, não foi isso o que quis dizer. As deusas nos protegem independente de como parecemos ou o que fazemos. Somos todos iguais para elas. — O sorriso dela poderia ofuscar o sol. — Estou feliz por você conhecer a mensagem.

Conhecer, sim; acreditar, nem um pouco. A Fé das Muralhas era um punhado de crenças vazias. Nem Sina, nem Rose, nem Maria me protegeram quando precisei. O Criador nunca respondeu minhas orações.

Se eu queria alguma coisa tinha que correr atrás.

Sozinha.

— Quais são os planos do seu pai para enfrentar a Tropa de Exploração? — questionei com um sorriso amigável, numa declaração silenciosa de “é só um pouco de curiosidade”.

Lady Helen permaneceu sorrindo, totalmente alheia.

— Na próxima sessão do parlamento ele solicitará o selamento dos portões da Muralha Maria. Lorde Desvalles estará do nosso lado, assim como seus aliados. — Ela ergueu o polegar em um gesto positivo. — Dessa vez, a Tropa de Exploração não terá chances!

Gargalhamos uma para a outra. Qualquer observador externo pensaria se tratar de duas boas amigas em um momento de cumplicidade. A percepção aumentaria ao ver como passamos o resto da tarde debruçadas sobre o piano, testando as inúmeras partituras compostas pela jovem lady.

As sombras do anoitecer espreitavam o céu quando acompanhei lady Helen para o saguão do hotel. Trocamos abraços e beijos de despedida, junto a uma promessa de repetir o encontro assim que minha agenda permitir. A garota entrou em sua carruagem e acenou da janela por todo o trajeto até virar a esquina.

Sustentei o sorriso até regressar à cobertura. Ali, estalei um sonoro tapa contra minha testa e ofeguei.

Puta merda.

Erwin partiu para a expedição sem agendar uma data de retorno. A próxima reunião do parlamento aconteceria em duas semanas. Um tempo apertadíssimo para impedir o avanço de lorde Silas Becker. No entanto, puta que pariu, havia algo que eu podia fazer.

Segui a passos pesados pelo largo corredor. Em vez de entrar na minha ala pessoal, virei à direita e toquei a sineta na lateral da porta envidraçada. Minutos se estenderam ao infinito antes da cabeça morena de Renzel surgir por uma fresta. Por algum motivo que eu não queria saber, ele estava sem camisa, a respiração ofegante.

Casual, ele se apoiou no batente e cruzou os braços, os músculos definidos ondularam sob a pele rosada.

— Em que posso ajudar?

— Mudei de ideia sobre o convite de lorde Desvalles — disparei. — Confirme minha presença.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Assim, do nada?

Cruzei os braços num reflexo da postura dele.

— Como você disse, será bom para os negócios — murmurei, e as marcas sugestivas no pescoço dele me levaram a prosseguir: — Além do mais, estou sendo muito inacessível, não é? Um lorde que me compra um abacaxi merece um pouco mais de... — Um ronronado sútil, uma lenta batida de cílios e um mundo de insinuações flutuou no espaço entre nós.

O maxilar de Renzel contraiu.

— Enviarei sua resposta — disse, então escorregou o corpo para trás da porta. — Se me dá licença, tenho uma convidada à espera.

A porta fechou com um clique suave e uma fisgada de raiva me acertou. Abafei o sentimento para me concentrar na questão mais urgente.

Fodeu. Eu teria que reencontrar lorde Daniel o-centro-do-universo-sou-eu Desvalles.


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