Eu sou... Scarlet Flawless escrita por lljj


Capítulo 2
Doces Sonhos




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 A chama da vela sobre a penteadeira oscilou quando a porta do camarim se abriu. Apertei as vistas para manter o foco no papel. O intruso se aproximou com passos pesados e espiou sobre meu ombro.

— Já está quase na hora, o que está fazendo?

— Escrevendo a última estrofe — resmunguei.

Renzel bufou e a chama voltou a agitar.

— Isso não pode esperar? A casa está cheia, os músicos estão a postos. Só falta você.

Continuei com a pena firme na mão. Era a última estrofe. Aquela letra assombrou minha mente desde que levantei da cama. Escrevê-la era a melhor forma de exorcizá-la. Talvez assim conseguisse expurgar o nervosismo que embrulhou meu estômago o dia inteiro.

— Mais cinco minutos. — Renzel se manteve ao meu lado, podia senti-lo esquadrinhando o papel. Empertigada, o encarei. — Pode dar licença?

O rosto de traços elegantes se apertou em concentração. Ignorando-me, apoiou uma das mãos na penteadeira e se inclinou mais perto. Perto demais. O calor de seu corpo alto atravessou as camadas de tecido e irradiou pelas minhas costas. Estreitei os olhos em advertência. Ele continuou a analisar os versos. A promessa de sorriso em seus lábios provou que estava sendo deliberadamente irritante.

— Está ficando boa — comentou. — Já pensou na melodia?

Mastiguei uma resposta ácida. Numa madrugada qualquer, oito anos atrás, Renzel surgiu no meu caminho e disse: “Você tem potencial, garota, me deixe moldá-lo”. Desde então era o meu autoproclamado empresário. Sua sagacidade marcou o ponto de virada entre a Scarlet que cantava na porta de bares e a Scarlet que se apresentaria no Grande Teatro de Stohess esta noite.

Apesar dos pesares, Renzel merecia certa consideração.

— Ainda não — respondi. — Nem sei se quero apresentá-la ao público. Só queria escrever.

— Não seja ridícula, essa letra ficou ótima. Toda noite eu corro para a cama esperando encontrar você nos meus sonhos. Segure a minha mão e não solte. Vamos atravessar esse pesadelo. A mulherada vai adorar! Vamos trabalhar nela no próximo ensaio.

Apertei a pena entre as mãos para resistir à vontade súbita e avassaladora de rasgar a folha em mil tiras. Não era uma música para a “mulherada”, era para distrair a minha mente do motivo de tantos sentimentos me assaltarem nessa enxurrada brutal.

Escrever não ajudou tanto quanto esperei.

E a presença de Renzel só piorou tudo.

— Quero cinco minutos. Sozinha.

Renzel, o idiota, se pôs a massagear os ombros que o meu vestido deixou a mostra — não bastou o vermelho vivo do tecido, a marca registrada de Scarlet, a porcaria possuía fendas e decotes suficientes para render uma acusação de atentado ao pudor.

— Você tem estado muito tensa — opinou ele. — Que tal assim: se acertar quantos ingressos vendemos essa noite, te compro um vestido novo.

Apoiei os cotovelos na penteadeira e o fitei pelo reflexo no espelho. Por uma trapaça do destino sua prepotência se comparou a sua beleza. Um incontável número de mulheres vacilou diante do contraste dos olhos azuis vibrantes e os cabelos cor de carvão. O desgraçado ainda tinha feições harmoniosas e a palidez típica dos aristocratas. Sua ascendência nobre era um atrativo a mais, embora há tempos não passar de um membro em ruína da baixa aristocracia. Floresceu no meio musical após torrar sua parte na herança da família.

— Você vai comprar um vestido novo eu acertando ou não. — Comprar roupas para mim era a desculpa preferida dele para encomendar ternos para si mesmo.

Renzel soltou uma risada borbulhante.

— Acertou! Trezentos e dezesseis ingressos vendidos. Amanhã mesmo vamos à modista.

Afastei as mãos dele com um sacudir de ombros e me foquei na folha.

— Saia.

Ele se encaminhou para a porta, um sorriso se desenhou em suas palavras:

— Volto em cinco minutos. Esteja pronta ou nossos trezentos e dezesseis espectadores ficarão impacientes.

Ele partiu e resmunguei um palavrão para o silêncio do cômodo. A plateia aumentou nos últimos meses. A fama de Scarlet Flawless cresceu proporcionalmente a minha insatisfação. A atenção do público, o dinheiro e a badalação eram um sonho de infância, porém nunca foi o meu sonho. Para mim, sempre bastou ter caneta e papel. A música nascia conforme os sentimentos se derramavam do meu peito.

No caderno, a última estrofe esperou seu último verso.

 

Grave seu nome no meu coração

O passar dos anos não poderá apagar

Você é o meu sonho mais doce

 

Passei a pena pelo meu queixo. Para variar, tive um sonho na noite passada. Um campo verde repleto de flores coloridas dançou ao vento. Uma casinha de pedras se ergueu ao fundo com raios solares surgindo por detrás. Uma visão pacífica. Recolhi margaridas e violetas enquanto andava em direção à casa. Um belo ramalhete encheu minhas mãos quando subi os degraus da varanda. A porta se abriu e uma voz familiar me cumprimentou: Seja bem-vinda, te esperei por tanto tempo... Então acordei, desejando mais do que tudo voltar ao reino dos sonhos. O quarto do hotel pareceu maior e mais impessoal do que quando adormeci. O vazio e a escuridão eram meus únicos companheiros.

Apertei a pena entre os dedos e deslizei a ponta pelo papel.

 

Não quero acordar de você

 

Pronto.

Juntei o máximo de ar nos pulmões, depois expirei lentamente pelos lábios. Faria uma prece ao Criador das Muralhas se lembrasse como fazia. Murmurei um simples me dê forças antes de ficar de pé. Os saltos do sapato clicaram no piso, o tecido vaporoso do vestido flutuou ao redor das minhas pernas. Abri uma brecha da porta e, como esperado, encontrei Hick, meu assistente, parado do lado de fora.

Os olhos castanho-claros, grandes e expressivos, me encararam com suavidade. O complexo por uma desconcertante gagueira o forçou a um voto de silêncio autoimposto. Três anos de convivência me ensinaram a interpretar seus olhares antes dele ter a chance de pegar o bloquinho de papel sempre presente em seu bolso. Nenhuma palavra era necessária para entender o que ele queria dizer quando me fitou fixamente.

Meu estômago realizou uma pirueta completa. Foram dias de planejamento, mas nada me preparou para as garras afiadas da ansiedade. E eu ainda teria que passar uma hora e meia na frente de três centenas de pessoas.

— Faça como combinamos — murmurei. — Ninguém deve entrar no camarim durante a apresentação, entendeu?

Hick assentiu, e suas feições ganharam um enrijecer impassível. O cabelo castanho e cacheado, aliado a um porte pequeno demais para seus dezessete anos, lhe conferiram uma aparência macia e ingênua; no entanto, seu comportamento era digno de um homem com o triplo da idade.

Uma vida na periferia de Sina, de onde ele viera, valia por três.

Vozes ecoaram pelo corredor. Renzel virou a esquina e lançou um olhar pesado para Hick antes de se concentrar em mim. A antipatia entre os dois era antiga e mútua; compreensível diante de suas óbvias diferenças.

— Vamos — declarou Renzel, num tom forjado para transparecer sua linhagem.

Alisei as mechas do cabelo ao seguir pelos bastidores. Um pandemônio se instalou com a minha passagem. Os membros da banda eram um grupo experiente, agitado e barulhento. Os minutos anteriores ao início de uma apresentação potencializavam essas três características. O frenesi exterior suprimiu o meu interior conturbado. Por hora, tudo se resumiu ao palco, aos acordes de um violino, aos arranjos do coral, aos acenos da plateia.

Por hora, eu era única e exclusivamente Scarlet Flawless.

 

*

 

Um buquê de rosas vermelhas caiu aos meus pés, espalhando pétalas pelo chão do palco. A adrenalina estalou em minhas veias no ritmo dos tambores e aplausos. A música de encerramento colocou o público de pé, cantando e vibrando, gritando Scarlet como uma invocação.

Com um suave floreio, apanhei o buquê e acenei uma despedida sorridente. As cortinas se fecharam, o cansaço tentou fazer o mesmo com meu sorriso. Ainda não. Os membros da banda e funcionários do teatro se agitaram ao meu redor, felizes e orgulhosos por uma performance bem executada. O centro das atenções era um lugar desconfortável, mas a incrível Scarlet podia lidar.

Ela tinha que lidar.

Distribuí as rosas do buquê entre as coristas e os músicos. Eles gostavam dessas porcarias elitistas mais do que eu. Renzel lançou olhares de soslaio, mas não reclamou. Pastorear a desmontagem do palco exigiu mais de sua atenção do que minhas “tendências de pobre”. Após muitas parabenizações e estardalhaço, avancei pelos bastidores rumo ao andar inferior. Agora, não havia escapatória além de lidar com as consequências das minhas decisões.

Eu me prontifiquei a fazer o primeiro contato, depois responder as mensagens e então concordar com o encontro. Contudo, a cada passo meu estômago encolheu mais um centímetro dentro da barriga. Hick, parado em frente a porta do camarim, acompanhou a minha aproximação com seus olhos de coruja campestre. A expressão dele ganhou um contorno incerto, preocupado, e eu só queria que ele não se importasse tanto comigo, assim poderia não me importar tanto com ele.

— Qualquer coisa, bata três vezes — orientei e, sem dar tempo para a hesitação enraizar, entrei no camarim.

Um empurrão com o pé bateu a porta fechada. O tumulto de vozes e movimentos se transformou num suave murmúrio. A mudança por si só era um choque aos sentidos. Meu cérebro também aquietou, como se uma das engrenagens tivesse parado de girar. O tempo ficou suspenso enquanto encarei um dos inúmeros fantasmas do meu passado. Esse aqui, no entanto, era feito de carne e osso e prometeu revirar o meu presente.

— Olá, Erwin.

Na outra ponta do cômodo, ele se ergueu da poltrona.

Uma avalanche de lembranças sufocou qualquer outra palavra que eu poderia dizer. Lembrei de uma adolescente assustada, tentando voltar para casa, e um jovem soldado que só queria desvendar os segredos do mundo. Objetivos diferentes, caminhos diferentes. Os dois se encontraram ao acaso; sete dias depois, se despediram. Um tempo curto demais para ser tão significativo.

Mas era.

Para mim.

O homem à minha frente agora era uma perfeita incógnita. Sua aparência não mudou muito ao longo da última década. O rosto assumiu linhas mais duras e angulosas, mas ainda era o rosto de Erwin. Cresceu alguns bons centímetros e, sem dúvida, ganhou mais músculos, porém alto e forte já eram suas principais características no passado. O corte dos fios dourados permaneceu idêntico, assim como o formato interessante das sobrancelhas grossas. A maior diferença estava no olhar.

O azul-celeste, outrora brilhante e sonhador, se tornou escuro e severo.

Por mais parecidos que fossem, este não era o meu Erwin. E isso incomodou. Após tantas perdas nessa vida miserável, não queria me desfazer da imagem do garoto gentil e caloroso que estendeu a mão para uma desconhecida sem pedir nada em troca.

Cruzei os braços diante do corpo e me aproximei dele lentamente. Queria mandá-lo embora antes dele ter a chance de destruir o que restou das minhas tolas ilusões da adolescência. Ao mesmo tempo, queria fazê-lo ficar para conhecer os novos aspectos que formavam sua pessoa. Parei a poucos passos de distância, sem saber se o empurrava ou puxava.

— Olha só para você — murmurei e odiei o tremor em minha voz. — Devo chamá-lo de capitão Smith?

O olhar dele buscou o meu, um sorriso contido curvou seus lábios.

— Erwin é suficiente — disse ele, e sua voz era baixa e encorpada como as notas de um violoncelo. — Obrigado por aceitar meu convite. Ouvi dizer que sua agenda é disputada.

Meus ombros enrijeceram.

— Ouviu muitas coisas a meu respeito? — indaguei, mirando um tom casual, mas acertando em cheio em um defensivo. — Sou obrigada a dizer que nem tudo o que dizem sobre mim é baseado na realidade.

Scarlet Flawless andava na boca do povo como licor: doce e viciante. Os jornais estamparam seu nome nas primeiras páginas, esperando atrair o público com artigos que garantiram entretenimento, não veracidade. Sempre os encarei com indiferença, tanto os lisonjeiros quanto os insultuosos. Nunca considerei o que alguém como Erwin pensaria ao ler essas histórias.

— São muitos boatos, a maioria bem sensacionalista — afirmou. — Apenas um me chamou atenção.

— Qual? — perguntei, com um sorriso que ostentou todo o relaxamento e petulância que não senti. — O que diz que fiz um pacto satânico para conseguir sucesso? Ou sobre os dois filhos bastardos que escondo no porão de casa? Meu preferido é o que me aponta como terceiro elemento num triângulo amoroso envolvendo o príncipe herdeiro e um sapateiro de Hermina.

Os lábios de Erwin contraíram como se um sorriso lutasse para florescer.

— Me refiro ao apelido de queridinha da nobreza — esclareceu. — Você é a artista mais requisitada pela nata da sociedade.

Queridinha da nobreza. Lutei contra um revirar de olhos.

— É, isso é verdade. Os nobres sempre querem um pedaço de mim.

— Você assumiu de vez a personalidade de Scarlet. É assim que devo chamá-la?

Minha respiração engatou na garganta. Claro, Erwin também conservava lembranças do antigo eu. Uma garota de dezesseis anos, faminta e desesperada. Ele viu alguma coisa dela em mim? Por favor, não. Ela era tão fraca, tão suscetível aos males do mundo. Eu era uma versão madura, melhor. Eu era...

— Scarlet. Sim. É o nome que uso agora.

— Entendo o apelo da coisa. — Ele olhou para os figurinos provocantes pendurados nos cabides ao lado. — Scarlet é um nome chamativo, combina com a personagem.

A afirmação trouxe um gosto amargo à minha língua. Estava tudo bem eu saber que Scarlet era uma personagem; ouvir outra pessoa dizer isso com tanta certeza era como ter as roupas arrancadas do corpo. O decote profundo do vestido, o vestido de Scarlet, me deixou ainda mais exposta.

Apertei os braços ao meu redor.

— Por que queria me encontrar? Sinceramente, não pega bem para minha imagem ser vista com o terror noturno de lorde Nicholas Lobov.

Uma das sobrancelhas dele se arqueou. Encolhi os ombros com desdém. Já era de conhecimento público o embate entre a Tropa de Exploração e o parlamento, aonde lorde Lobov liderava uma campanha pró-extinção das expedições ao exterior. O que correu em sigilo, nos seletos redutos da nobreza, era a pressão que o lorde estava sofrendo. As palavras escândalo, corrupção e polícia pairaram como uma ameaçadora nuvem sobre a cabeça dele.

Tudo graças a Erwin.

Levei poucos dias para rastrear o fio que conectava a conversa no jardim escuro ao homem em minha frente. Os boatos disseram que Erwin possuía provas incriminatórias contra o nobre. Algo tão pesado que obrigou lorde Lobov a diminuir o tom de seus discursos contra a Tropa de Exploração. Uma semana atrás enviei uma carta anônima para Erwin sobre a trama assassina. Três dias depois, recebi o convite do próprio Erwin para “conversar”.

O fato dele descobrir tão rapidamente quem enviou a carta ainda me encheu de calafrios.

— Fiquei surpreso quando recebi seu aviso — contou ele. — Não só pelo conteúdo, mas por vir de você. — Um sorriso meio incrédulo abrilhantou seu rosto. — Você chegou tão longe. Estou impressionado.

Desviei o olhar para a barra do vestido. Não por timidez, mas por... bem, não era timidez!

— Vamos logo ao que interessa — resmunguei, e larguei meu corpo cansado na cadeira da penteadeira. Acenei para Erwin voltar à poltrona. — Sabe no que está se metendo? Não tenho conhecimento prático, admito, mas sinto que enfrentar titãs é bem diferente de lidar com a nobreza.

— Assumir riscos é parte do meu trabalho — disse ele ao se sentar. — Existem coisas maiores com as quais se preocupar.

— Tipo o que?

As linhas da face dele endureceram.

— A humanidade.

Pestanejei, indecisa entre taxá-lo de altruísta ou louco. Talvez ambos.

— A humanidade não vale sua dedicação.

Conheci em primeira mão a face mais sombria deste mundo. Aprendi cedo como as pessoas podiam ser monstros ainda piores do que aqueles que vagavam além das muralhas.

— A humanidade é tudo o que temos — argumentou Erwin. — Lutar por ela é mais que um dever, é uma necessidade. Essa é a razão para eu estar aqui. — Ele se inclinou mais perto, os olhos fixos em mim. — Una-se a essa batalha. Trabalhe em prol da Tropa de Exploração, pelo bem da humanidade.

A força presente em sua voz arrepiou minha pele antes mesmo de compreender o significado do pedido.

— Trabalhar para a Tropa de Exploração! Ficou maluco?!

— Sofremos inúmeros ataques no parlamento — continuou, como se eu não tivesse dito nada. — Muitos nobres como Lobov colocam suas ambições acima da esperança de um mundo livre de titãs, de muralhas.

— Erwin, eu não...

— Sua carta sobre Lobov é a prova da sua proximidade com a nobreza — interrompeu. — Você está em lugares onde meus homens não podem chegar.

— Não quer dizer que vou me tornar o seu pau-mandado. Isso aqui... — fiz um gesto amplo com as mãos para indicar o camarim — ... tudo isso é um cenário criado para atingir os meus objetivos.

— E quais são?

— O que?

— Seus objetivos. Quais são? Quando nos conhecemos você queria voltar para Sina e encontrar a sua irmã. E agora?

Devia estar preparada para essa questão, mas nutri a vaga esperança da conversa não evoluir tanto. Aqui estava, porém, e algo se partiu no meu interior. Vergonha resplandeceu na minha pele, a culpa ameaçou me consumir. A lembrança do sonho da noite passada me atingiu novamente. O campo verdejante, as flores, a casinha, o sol... Rose abrindo a porta para me receber.

Te esperei por tanto tempo.

O buraco no meu peito aumentou.

— Se importa se eu fumar? — Sem aguardar o consentimento, peguei a cigarreira metálica na penteadeira e acendi o finíssimo cigarro na chama da vela. O amargor da nicotina varreu parte dos nós em meus músculos. Uma droga necessária para aturar a constante frustração que era a merda da minha vida.

Dessa vez, Erwin esperou até eu falar.

— Não a encontrei — admiti em voz baixa. — Ainda estou a procura da minha irmã.

O calor dos olhos dele repousou em meu rosto. Em vez de retornar o olhar, concentrei minha atenção na ponta do cigarro. Rever Erwin era bater de frente com a minha incompetência. Dez anos se passaram. Dez anos. E não tinha nenhuma pista sobre o paradeiro de Rose.

— Eu não desisti. Ela está em algum lugar e vou encontrá-la. Não importa quanto tempo passe, eu vou encontrá-la e o responsável por tirá-la de mim vai se arrepender.

— Acredito em você — disse Erwin, e as palavras afundaram até os meus ossos. — Pessoas com a sua determinação são capazes de coisas extraordinárias. Você pode encontrar a sua irmã, assim como pode me ajudar a preservar a Tropa de Exploração.

Levantei da cadeira, incapaz de continuar parada.

— Não tenho interesse em ser uma ponte para os seus jogos políticos, capitão.

Erwin também se ergueu, agigantando-se sobre mim. Sua altura não me intimidou; a autoridade a emanar de sua postura, no entanto, quase me sufocou.

— Vamos fazer um acordo — declarou, impassível. — Atue como minha informante contra a repressão da nobreza e eu ajudarei a encontrar a sua irmã.

O ar fugiu dos meus pulmões, minha mente rodopiou. Tropa de Exploração, nobres, muralhas, informante... era muito para processar. Caminhei pelo camarim, o cigarro de volta aos lábios.

O mais importante primeiro.

— Como faria isso? — perguntei. — Como ajudaria a encontrar Rose? Já recorri a todas as esferas da polícia, dos detetives e até dos bandidos. Todos só me fizeram perder tempo e dinheiro.

Eles me fizeram entender que a única a sentir a ausência de Rose era eu. Ninguém além de mim se importava. Erwin se mostrou um homem íntegro outrora, mas confiar a busca de Rose em suas mãos? Difícil, muito difícil.

— Não desistirei até localizá-la — garantiu ele. — Fique com seu dinheiro, só preciso do seu tempo. E de informações.

Maldição, ele soou exatamente como no passado. Impetuoso, firme e tão fodidamente seguro. Isso sempre me fascinou em sua personalidade. As lembranças dos nossos pouquíssimos dias juntos eram permeadas por uma sensação de segurança, como se Erwin pudesse resolver qualquer problema. Só que eu não era a mesma garota. Aprendi a duras penas que confiança cega era um passaporte direto para a decepção.

— Se eu concordar em te ajudar e você me deixar na mão, eu te mato, Erwin — ameacei entre dentes. — Não hesitarei um segundo em entregar o que sei sobre você nas mãos dos seus inimigos.

Erwin permaneceu imperturbável.

— Isso não será necessário. Apenas diga se concorda ou não.

Respirei fundo para organizar os pensamentos. Erwin era o plebeu capaz de acuar um poderoso nobre. Em nenhum outro lugar encontraria um aliado desse nível. Mas trabalhar para a Tropa de Exploração? Por Sina, eles eram um bando de malucos.

— Concordo. — Acenei a cabeça para confirmar. — Você localiza a minha irmã e, em troca, ofereço um ano de informações.

— Um ano?

— Não vou me comprometer com os seus problemas pelo resto da vida, capitão. Um ano é o prazo. Se não encontrar Rose até lá, o acordo acaba.

— E se encontrá-la?

Meu coração palpitou. Rose e eu, juntas outra vez.

— Com Rose ao meu lado Scarlet Flawless é desnecessária. Partiremos para uma vila remota da Muralha Maria e nunca mais olharemos para trás.

Erwin não contrariou, mas uma ruga em sua testa evidenciou uma dúvida.

— O que acontece caso descobrir que sua irmã não está viva?

Rose morta? Impossível. Eu sentiria na minha alma.

— Ela está viva — declarei, e não admitiria discordância. — Aceita os meus termos ou não?

Ele assentiu e estendeu a mão.

— Aceito.

Fitei a mão grande e calejada. Um pacto com o demônio seria mais fácil de manejar... ainda assim, estendi minha própria mão.

— Acordo fechado.


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Notas finais do capítulo

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