Os Sem Nome escrita por Trashcan Bin


Capítulo 7
Entre pesadelos e pesadelos




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Tóquio, Japão, 1979

— Eu não quero dormir com ela!

— Você vai dormir com ela, Fernando.

— Mas, mãe, eu não gosto dela! Quero ficar longe dela.

— Fernando, a senhorita Kido tem tido muitos pesadelos…

— E o que eu tenho a ver com isso?

— Tem a ver que o senhor Kido quer ver se um de vocês, as crianças, dormindo com ela ajuda alguma coisa, e eu disse que você poderia ir.

— Por que ele não dorme com ela?! É a neta dele! Agora eu sou empregado dele também?!

— O senhor Kido é muito ocupado e…

— Eu também tenho mais o que fazer! Por que não pedem pro Tokumaru?

— O senhor Kido acha que alguém com idade mais próxima, mais íntimo dela, poderia ser melhor. E ela gosta de brincar com você.

— Se eu sou íntimo dela, é contra a minha vontade! Quem vai ter pesadelo sou eu!

— Fernando, você vai calar essa boca e vai dormir no futon que colocamos pra você lá — Karen perdeu totalmente a paciência com o filho — E vai amanhã agradecer quando acordar.

— Hideki… — Hikari se intrometeu com uma voz mais suave — Vai, não vai ser tão ruim. Você nem precisa interagir mesmo com ela, é só dormir.

— Argh, você fala isso porque não é você que tá indo dormir lá. Tá. Que saco. Eu vou. Mas espero que não vire rotina.

— Tá bom, filho, depois a gente conversa.

Hideki colocou o pijama e mais alguns itens em uma malinha, e saiu da casa onde ficavam os empregados em direção à parte do terreno onde Saori e seu avô viviam. Subindo as escadas, em direção ao quarto dela, ele encontrou Yoshiko.

— Ah, Hideki, você veio mesmo. Sei que deve ser chato pra você, mas, ó, o quarto é grande e deixei seu futon meio afastado.

— Tá. Obrigado.

— Boa noite.

— Boa noite…

Hideki estava começando a absorver a situação até que uma voz tirou qualquer possibilidade de paz momentânea em seu espírito.

— Moleque, vê bem o que você vai fazer essa noite. Se a senhorita Saori reclamar de alguma coisa…

— Não se preocupe, Tokumaru, eu vou tratar ela tão bem. Vai ser uma noite inesquecível, você vai ver amanhã. Mal posso esperar!

— Quer me provocar, é? Vocês têm sorte que o senhor Kido fica protegendo vocês.

Que piada de mau gosto. Pff, o que aquele velho já tinha feito por eles de verdade?

— Bom, tenho que ir, né? Não quer deixar a senhorita Saori dormindo sozinha, né?

— Moleque, se ela falar um “a” de você amanhã, você está morto.

— Boa noite pra você também.

Hideki bateu na porta do quarto de Saori e logo depois entrou. Não era a primeira vez que ele entrava lá, ainda mais a contragosto, mas sempre se impressionava com o tamanho do lugar. Daria para morar uma família inteira naquele espaço. A dona do quarto, que estava em uma mesinha decorada com uma toalha e um vaso, desenhando algo em um papel, se virou para ele:

— Hideki.

— Oi, acho que já te avisaram que eu vou dormir aqui hoje… — ele disse sem fazer muita cerimônia. Gostava dos momentos longe de Tokumaru, quando ele podia falar com ela de um jeito mais informal.

— Sim, colocaram um futon ali.

— Certo. Obrigado. Você tem que dormir daqui a pouco, né? Eu só vou me ajeitar e aí podemos dormir. Posso usar o banheiro? — é claro que ela dormia em uma suíte.

— Pode.

O menino então começou a caminhar até o banheiro, onde iria se trocar, escovar os dentes, quando foi chamado pela garota:

— Hideki…

— O quê? — ele se virou na direção dela.

— Será que você pode… sentar perto da minha cama antes de dormir? É que colocaram o seu futon meio longe e…

“Não” era a resposta que ele queria dar, mas não foi isso que saiu de sua boca.

— É só uma noite, é só uma noite. — De porta fechada, dentro do banheiro, ele esperava que ninguém fosse capaz de ouvir suas palavras.

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— Então, como fazem? É pra ler alguma coisa pra você? — Hideki estava sentado em uma cadeira que ele mesmo colocou perto da cama dela.

— Não… eu só queria alguém por perto… mas, você pode ler alguma coisa se quiser.

— Não trouxe nada pra ler. — Que inferno.

— Tem um monte de livros nas estantes.

— O Tokumaru vai ficar bravo se eu mexer na sua estante.

Eu deixei.

— Tá.

As estantes dela tinham livros que não pareciam ser para crianças, coletâneas que iam desde Grécia Antiga até não se sabe o que, misturadas em meio a mangás e obras infantis. Garasu no Kamen, hum, mangá de menina. Mas não parece ter coisa melhor.

— Então posso deixar a luz ligada? — Ele senta novamente, mas ler naquela cadeira não era muito confortável. Hideki senta no chão, se encostando na cama dela. Melhor, assim nem precisava olhar para a garota.

— Eles sempre deixam pelo menos a do abajur ligada…

— Tá, eu desligo depois que você dormir.

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Aquele Garasu no Kamen até que não era ruim, mas, ao terminar o primeiro volume, Hideki já estava com sono. Levantou-se e olhou para Saori.

— Olhando assim, até entendo que a Hikari diga que “ela é só uma garota de seis anos”. — A menina já parecia dormir profundamente, e havia algo de sereno em vê-la deitada daquela forma.

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— AAAAAAAAAAAAAAAAH! AAAAAAH! AAAAAAAAAAAAH!

A cena naquele quarto parecia parte de um sonho. As janelas estavam fechadas, mas as cortinas balançavam. Parecia um terremoto, mas o chão não tremia. Hideki foi acordado com os berros, com um susto, mas tudo que conseguia fazer era direcionar seu olhar para a menina.

— Não mexe, parece que eu não tenho controle das minhas pernas.

O tempo parecia ter parado. Ele estava imóvel, como se não existisse ali, sem saber de que forma ainda era capaz de respirar.

Se alguém abrisse aquela porta, ele estava morto. A senhorita Kido gritava, se agitava na cama, e ele estava sentado em seu futon, com o som do silêncio que ele lutava para interromper e duas pedras no lugar de suas pernas. 

— É um sonho? Um pesadelo? É real? — sentiu leves lágrimas pelo seu rosto, ironicamente a única coisa que ele queria poder ser incapaz de fazer naquele momento.

De repente, tudo parou. A menina acordou de sobressalto, ele pode ver que não era o único chorando naquele quarto. De volta a si, Hideki levantou e foi até a garota.

— Tá tudo bem?

— Foi só um sonho…

— Tem certeza?

— … Você pode ficar aqui um pouco?

— Posso. Você prefere que eu ligue a luz?

Ela assentiu com a cabeça. Hideki ligou a luz, foi novamente na estante, e voltou para ler mais um volume de Garasu no Kamen encostado na cama. Aquela história até que era boa, vai.

— Se você precisar de alguma, é só falar.

— Tá.

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O quarto estava novamente quieto quando Hideki se levantou. Ele olhou de novo para Saori e, apesar de dormindo, ela estava longe daquela aparência serena do começo da noite. 

Perdeu a contagem do tempo enquanto a fitava pensando no que havia acontecido, como se quisesse se convencer de que foi parte de um sonho. Sua mãe havia dito que às vezes as pessoas podem ter alucinações logo ao acordar (1), então podia ser isso.

Deu se vencido pelo cansaço. Voltou ao seu futon, mas não sem antes checar que já passavam das duas da manhã.

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— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃO!

Hideki acordou novamente com os gritos ecoavam pelo quarto, mas dessa vez ele conseguiu levantar e ir até a menina. As janelas tremiam, as cortinas se balançavam, e o vaso da escravinha estava caído em pedaços no chão. Nenhum desses sons se sobrepunham à voz dela, que parecia sair da alma da garota, e não de sua boca.

— Saori. Saori. Acorda. — ele tentava sacudi-la de leve, mas a garota já se mexia sozinha na cama.

Ela abriu os olhos, com um rosto assustado que Hideki conhecia bem, e ficou olhando-o nos olhos, sem dizer nada.

— O que foi? Você teve um pesadelo? — ele quebrou o silêncio.

— Não foi nada. — ela sentou-se na cama, e afastou o rosto.

Hideki sentou-se na borda da cama.

— Essa é a segunda vez que você fica aos prantos dormindo.

Saori seguia desviando o olhar dele.

— Tem certeza que não quer falar?

A respiração dos dois era a única coisa que se ouvia ali.

— É sempre na Grécia.

— Grécia?

— Esses sonhos.

— Você sonha com a Grécia?

— São construções iguais às das ruínas gregas em arquitetura, mas não estão em nenhuma foto. Eu já olhei em vários livros.

— Não é por que você tem que ficar estudando demais essas coisas?

— Eu pensava que esses estudos podiam me ajudar, mas eu fico mais confusa.

— Confusa com o quê?

— Esses lugares não existem no mundo real, mas eu sonho com eles todos os dias. É tudo real. As construções, as paisagens, os templos… e o cheiro de sangue, de morte, os incontáveis cadáveres empilhados. — ela falava rápido, e lágrimas corriam como rios em seus olhos — Todos trajando armaduras, com rostos cobertos de sangue. Os que não estão mortos, lutam. Lutam sem parar, até serem alvejados. E eles olham para mim, me pedem ajuda, desesperados. Então eu percebo que eu também estou lutando.

— Lutando? Contra quem?

— Eu não sei. Não sei quem é. Parecem sempre os mesmos inimigos. E nós lutamos. Sem parar. Todos caem ao meu lado, os escombros e os mortos, mas eu tenho que continuar. Sozinha. — no que parecia ser um impulso, Saori se aproximou de Hideki, apertando a camiseta dele — Eu… eu tenho… eu tenho que lutar. Não sei contra o quê, ou contra quem, mas isso não acaba! Nunca!! O cheiro de sangue, eu não sei de quem é, se é meu, se é deles. Eu não entendo nada, mas esse sonho se repete!!

Hideki colocou as mãos nos ombros dela, enquanto ela se agarrava, em prantos, nele. Não havia nada para ser dito ali. Ela descrevia uma cena de guerra que ele que uma garota como ela jamais precisaria presenciar na vida.

Ele estava consternado. Saori e seu avô eram dois alvos do seu desgosto, duas pessoas que ele desprezava e com quem detestava ter que interagir praticamente todos os dias. Mas aquilo? Aquela era apenas uma menina de seis anos desesperada. 

Não devia ser ele ali, eles nem eram próximos de verdade. Mas era ele ali.

— Vai ficar tudo bem, tá? É só um sonho. — Hideki não estava convencido do que dizia, mas eram as palavras que ele tinha para dizer. Ele abraçou ela, provavelmente pela primeira vez na vida.

— Obrigada. Será que você pode… não contar pra ninguém?

— Claro.

— Desculpa, por tudo.

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— E aí, Hideki, como foi?

— Ah, Hikari, cê sabe. Ela tem uns probleminhas pra dormir, mas deu tudo certo. — ele fez um cara meio marota — Pelo menos eu tomei café da manhã naquele quarto, devia ter visto a cara daquele careca do Tokumaru! Ainda mais que foi ela que insistiu.

— Nossa… achei que você ia morrer passando uma noite lá. Tá vendo? Não dói.

— É… é… aliás, a gente pode pegar aqueles livros de Grécia Antiga que tão na biblioteca do senhor Kido?

— Huum, não sei. O que os olhos não veem… mas, desde quando você se interessa por isso?!

— Ah, eu li umas coisas por aí.

— Huum.

— Você gosta de Garasu no Kamen?

— Eu adoro esse mangá! Por que?

— Podia me emprestar uns volumes?

— Mas não era você que não gostava de “mangá de menininha”?

— Mas esse é bom, ué!


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Notas finais do capítulo

(1) Seria paralisia do sono, nesse caso.

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