O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 5
Sangue se paga com sangue




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— Ao amanhecer do dia anterior. Extremo Sul de Eastgreen –

Sentados próximos a uma enorme estrutura repleta de escrituras que em muito diferem da língua dos homens, dois soldados com brasões de flores em seus peitorais bebiam e tagarelavam sem a disciplina esperada dos militares. Eram jovens, bem afeiçoados, um com cabelos lisos, pretos e cumpridos, o outro loiro e de sorriso bonito. O sol já havia se mostrado, revelando completamente toda a imensurável extensão de água do mar, cujas ondas se chocavam contra as pedras lá embaixo. O despenhadeiro tinha por volta de cem metros de altura e não possuía nenhum acesso ao mar, exceto o óbvio e mortal.

—Esse lugar é um verdadeiro tédio. Quantas vezes já disse isso mesmo? – perguntou o loiro.

—Umas trinta e tantas. Não importa, eu sempre vou concordar. – respondeu o outro e gargalharam juntos, realmente embriagados.

—Ficar sentado a beira mar, olhando para uma droga de totem gigante e bebendo água de dragão. Olha mãe, seu filho venceu na vida!

—Bem que poderiam deixar a gente trazer umas donzelas da Cidade Sombria. – suspirou o homem, sacudindo seus cabelos pretos – Ouvi dizer que são perigosas.

—Essas que são boas!

—Com certeza! – e brindaram.

Nuvens começaram a surgir do Sul a uma velocidade sobrenatural. E da mesma direção, sons de trovões poderiam ser ouvidos por qualquer um, exceto pelos dois bêbados.

—Já imaginou ter um filho mestiço? Metade calendrino, metade emberlano.

—Está louco?! – disse o loiro – Matariam seu filho e sua mulher. Ou transformariam eles em escravos na capital.

—Mas se casamentos entre calendrinos e emberlanos são proibidos, isso não me faria viúvo, né?

—Ahn... Deixa eu pensar... Sei lá! Pega a garrafa pra mim, por fav... – suas palavras acabaram no instante em que viu atrás do moreno o clima sinistro que estava se formando – Bertoldo, olha! Olha ali!

Uma escuridão assustadora deslizava por sobre as águas, coberta por densas nuvens escuras e carregadas de trovões. De leste a oeste, não se via o final daquela parede sombria. De cima a baixo, tudo era terrivelmente consumido pelas trevas, como se o dia e a noite estivessem ali divididos.

—Precisamos avisar os outros, Bertoldo!

—Então essa é a famosa Escuridão do Sul? – questionou o soldado, completamente admirado – É a nossa chance, Oliver. Vamos fazer história aqui!

—Enlouqueceu?! Quanta água de dragão você tomou, seu bastardo? É a Escuridão do Sul! Nosso trabalho é relatar isso ao tenente Corse!

As trevas avançaram impetuosamente contra Eastgreen, mas no momento em que tocaram a enorme estrutura de pedra, as escrituras brilharam e uma quantidade incomensurável de magia começou a irradiar do conflito entre ambos. Uma espécie de parede dourada e quase transparente surgiu vinda do oeste, até que por fim se completou por ambos os lados da estrutura, bloqueando a Escuridão do Sul. Urros muito altos, mais altos que qualquer criatura seria capaz de urrar, vieram de dentro dela e os soldados assistiram a isso cheios de pavor, quase sendo levados pela intensa ventania.

—Vamos, Bertoldo! Anda, caralho! - gritou Oliver, tentando se sobrepor aos assustadores barulhos daquela intensa batalha – Deixa o Escudo do Mundo fazer o trabalho dele! Temos que reportar isso!

Bertoldo, porém, foi vencido pela curiosidade e começou a se arrastar em direção ao poderoso escudo dourado. Oliver tentou segurá-lo, mas o companheiro se desvencilhou e prosseguiu.

—Não deve ser tão assustador assim! Além do mais, somos soldados de Calendria, não deveríamos ter medo de nada!

—Bertoldo! Volta, caralho!

Os gritos foram em vão. Ele ergueu a mão e cruzou o escudo, que de bom grado permitiu sua passagem, se fechando logo em seguida. Estava menos barulhento, exceto pelos urros longínquos e os sons de algo pesado se chocando contra o chão, que tremia levemente. Ali, Bertoldo estava no interior das cortinas negras. Pensou estar de olhos fechados, então os esfregou com as mãos. Não havia mais ventania para lhe atrapalhar, porém quando seus olhos se adaptaram, ficaram arregalados ao máximo. Ele gritou até sua garganta arranhar, tentou voltar e romper pelo escudo cuja luz era quase impossível de se ver, como se nuvens negras a cobrissem. Ao perceber que não conseguiria retroceder, voltou a olhar para frente e para o alto, então começou a rir desesperadamente, a chorar desesperadamente, até que de joelhos sucumbiu. Seu corpo flutuou, inerte... Vencido.

—Onde está ele? Bertoldo! Será que caiu? – precipitou-se Oliver para conferir no limite do despenhadeiro, mirando as pedras e as águas em busca de qualquer vestígio.

O céu estava novamente limpo e ensolarado, assim como o bonito horizonte do Sul. Já o Escudo do Mundo brilhava em suas inscrições. Diante de tudo isso, um assustado soldado de Calendria deixou seu posto para ir relatar ao tenente tudo o que tinha acontecido, inclusive o desaparecimento do seu companheiro.

— Agora. Em algum lugar nos arredores de Calendria. –

O cavalo de Alabas troteava em meio ao difícil terreno da floresta. Gabriel sentiu pena do animal que os carregava sem parar desde a casa velha e com certeza estava sofrendo com o peso de dois homens, sem falar nos inúmeros obstáculos daquele lugar repleto de árvores, troncos caídos e pedras.

—Ei, Bigodão. – chamou o rapaz.

—Bigodão? – estranhou o velho, encarando de esguelha.

—Não sei como chama-lo, se recusa a me dizer seu nome.

—Tsc. Alabas! Me chamo Alabas! “Bigodão”, vê se pode... – resmungou, tornando a olhar para frente.

—Senhor Alabas, o cavalo não está cansado? Talvez fosse bom que parássemos e...

—E morrêssemos, você quer dizer. – cortou com rispidez – Além do mais, é uma égua. Julith é o nome dela.

Ele sentiu que precisava se acostumar aos nomes estranhos que até mesmo os animais daquele mundo possuíam.

—Precisamos nos afastar de Calendria o mais rápido possível. Somos procurados. Vão mandar muita gente atrás de nós e é possível que ofereçam recompensas pelas nossas cabeças, então não confie em ninguém.

—Para onde estamos indo?

—Para Aurora, o reino dos elfos de Eastgreen.

Elfos? A cabeça de Gabriel começou a girar quando tentou assimilar que elfos realmente existiam. Primeiro os magos, agora os elfos. Não sabia como reagir a ideia de que pudesse ver magia e, nesse momento, se lembrou que já tinha presenciado algo inexplicável, além do fato de estar naquele mundo misteriosamente. Quando foi torturado por Decarlo, viu claramente as lâminas do capitão brilharem e perfurarem seu corpo, mas sem rasgar a carne. Como isso era possível?

—O senhor faz magia?

Alabas tornou a encarar de esguelha. Por alguns instantes, ficou em silêncio e o rapaz não foi capaz de sequer cogitar no que aquele homem estava pensando.

—Todos podemos fazer algo especial, moleque. É sobre dedicação. Se você quer ser um bom pescador, precisa se dedicar a pesca.

—E a que se dedicou?

O homem olhou para frente, escondendo a face do mais jovem ao dizer sem emoção:

—A guerra.

O garoto ficou curioso a respeito daquela resposta. Então começou a se perguntar como um único homem tinha lhe salvado de cinco militares e um duque. Só viu o cadáver de Sir Erick, além disso Alabas tinha dito que já teriam notado a ausência de um soldado. O que houve com os outros? Decarlo, Louzada e o maldito duque Walther?

—Como conseguiu me salvar? Sou muito grato e acho que não vou poder retribuir nunca. Só que eu preciso saber.

—Você faz muitas perguntas, seu merdinha. – queixou-se o velho ainda olhando para frente – Fui militar de Calendria no passado. Conheço cada esgoto daquele reino como a palma da minha mão murcha. Digamos que usei minha última ficha de credibilidade para livrar você da morte. Só que agora, minha reputação está manchada e eles não me darão ouvidos outra vez. E para piorar, o que fiz só vai confirmar as suspeitas daquele desgraçado do Walther Di Blanco.

Como imaginava, aquele velho não era uma pessoa qualquer. E era bem desagradável saber que justamente alguém do exército de Calendria, responsável por lhe infligir tanta dor, estava ali, salvando sua vida. Precisou digerir toda aquela informação, o que provocou seu silêncio por alguns minutos. Alabas não se preocupou, ao contrário, deu ao rapaz o tempo que precisava para pensar.

—As suspeitas do Walther, o senhor disse. É sobre mim, não é?

O velho não respondeu, apenas continuava olhando para frente.

—Ele suspeita que eu seja o Rei Negro...

—É por aí.

—E eu sou? – indagou Gabriel, sentindo uma angústia rasgando seu peito.

—O Rei Negro sabia empunhar uma espada. Você se treme todo só de segurar esse lixo que te dei. – zombou com um sorriso de canto.

Julith parou bruscamente e ergueu as patas dianteiras, relinchando alto diante de um obstáculo que surgira em seu caminho. Alabas se segurou nas rédeas, enquanto o garoto escorregou e foi ao chão, caindo de costas em meio a um amontoado de folhas secas.

—Wow! Wow! Calma, Julith! – disse afrouxando as rédeas aos poucos e já encarando o responsável pela reação inesperada da égua.

—Eu nunca imaginaria que alguém do seu nível desceria tanto, ex-comandante Alabas.

—Você fala como se fosse muito melhor do que eu, Decarlo. Meus parabéns! Como soube que nos encontraria nesse trajeto?

—E para onde mais iria o amiguinho dos elfos?

Gabriel se recompôs e viu outra vez o rosto daquele sujeito que lhe revirava as entranhas. A cicatriz transversal em seu rosto, calvo e as malditas duas espadas na cintura. Ao olhar para elas, sacou sua própria espada e tentou imitar um guerreiro da maneira como se lembrava. Diante disso, Decarlo riu em zombaria.

—Guarda essa merda aí, garoto! – ordenou Alabas, descendo do cavalo ao mesmo tempo que Decarlo – Não é hoje que você terá alguma chance contra esse inútil pau mandado do Di Blanco.

—Você tem a língua bem soltinha, não é, ex-comandante?! Talvez eu devesse arrancá-la e fazer um bem a Calendria. – ameaçou ao sacar suas espadas.

Gabriel teimou e se manteve empunhando a arma. Alabas também desembainhou a sua e esta tinha uma empunhadura realmente bonita, dourada e com uma flor de mesmo tom gravada em relevo.

Um vento forte soprou e sacudiu os galhos das árvores pela floresta, derrubando muitas folhas secas. Quando sua força diminuiu e o silêncio predominou, Alabas e Decarlo avançaram ferozmente um contra o outro. Tinidos altos de lâminas colidindo ecoaram por toda parte e os cavalos ficaram agitados. O velho bloqueava as duas lâminas do seu adversário com maestria, sempre mantendo distância e nunca baixando a guarda para ser atingido pelos lados. Também não se permitia ficar preso e deixar o capitão com uma lâmina livre para ataca-lo. Gabriel notou algo peculiar em Alabas. Enquanto usava a espada com uma mão, gesticulava contra o vento com a outra e a cada vez que fazia isso, era como se algo atingisse Decarlo, similar a um soco. Eles se moviam de um lado a outro, mas era fácil perceber que o velho estava recuando, ou melhor, sendo pressionado a recuar por causa da velocidade do inimigo, que mesmo manuseando duas espadas e usando uma armadura, fazia valer os anos de diferença entre eles.

—Preciso fazer alguma coisa. – murmurou Gabriel, tentando se aproximar por trás do capitão de maneira sorrateira.

Alabas percebeu as intenções do garoto e começou a usar mais daqueles estranhos movimentos com a mão para desestabilizar o capitão, o forçando a recuar alguns passos. Quando ficou perto o suficiente, Gabriel mirou a brecha na armadura, especificamente na coxa e ali perfurou até atravessar, arrancando um berro do homem que cambaleou para o lado.

—Aah! Merda! Seu filho da puta! – praguejou ao fuzilar o rapaz com um olhar mortal.

—Boa, moleque! Puta que me pariu! Isso foi realmente bom! – comemorou Alabas com sorrisos abafados pela bigodeira.

Estava assustado demais para reagir tão animadamente como o velho, porém conseguiu deixar um sorriso fraco aparecer. Nunca tinha usado uma espada e tampouco ferido alguém daquele jeito. Seu coração batia tão rápido que conseguia senti-lo na garganta. Quando olhou para Decarlo esperando encontrar uma expressão de medo ou qualquer coisa próxima a rendição, se surpreendeu.

—Eu realmente não queria ter que chegar a esse ponto, mas é pelo bem de Calendria. – murmurou de um jeito estranho, diferente do homem cruel e seguro que era. Parecia mais alguém no precipício entre sanidade e a loucura – Você vai morrer aqui, regicida! – decretou ao olhar para Gabriel - *********!

O garoto não entendeu a última palavra, mas se assustou com o berro desesperado de Alabas:

—MISERÁVEL! MALDITO TRAIDOR! COMO SE ATREVE A FAZER ALGO TAÕ ABOMINÁVEL? COVARDE!

As lâminas de Decarlo assumiram um intenso brilho arroxeado, bem mais forte do que da última vez durante a tortura. Alabas avançou vorazmente contra o capitão, mas agora exalava uma aura tão densa que sua pele assumiu um tom avermelhado. As três lâminas colidiram e uma onda de choque foi irradiada para todas as direções, provocando uma temporária, mas intensa ventania. Nessa disputa de forças, o velho começou a perder lentamente, até que foi cortado pelas espadas de Decarlo num formato de xis que se estendeu dos ombros até a pelve. Sangue jorrou para cima, manchando também o rosto do capitão que sorria em pura insanidade.

—ALABAS! – desesperou-se Gabriel.

Mas antes que pudesse intervir de alguma forma, viu o velho homem se apoiar firme nos calcanhares e transferir toda a aura do seu corpo para a lâmina, fazendo-a esfumaçar.

—Pegue Julith e fuja, garoto! – berrou o ex-comandante – Eu seguro ele! Vá!

—Nada disso, Alabas!

—Por favor... – implorou o ex-comandante de Calendria com lágrimas escorrendo pelo rosto cansado enquanto outra vez bloqueava as espadas do inimigo enfurecido – E me perdoe! Me perdoe algum dia! Eu não queria... Eu fui um tolo... Mas agora estou entregando o que tenho de mais valioso para pagar pelo meu pecado. Porque sangue... Se paga com sangue! – olhou uma última vez para Gabriel e então encarou irado o capitão enlouquecido – Eradio Tormenta!

A espada de Alabas ficou sobrecarregada de eletricidade e atingiu Decarlo em cheio, que tremeu ao ser fortemente eletrocutado. Ao subir em Julith e se agarrar desajeitadamente nas rédeas, Gabriel deu um tapa no lombo do animal que começou a correr para longe. Ao olhar para trás, viu quando o maldito militar de duas espadas decapitou aquele que salvara sua vida. Em seguida, o capitão caiu de joelhos, o encarando antes de finalmente desmaiar. A luta tinha acabado, mas estava longe de se sentir seguro. E agora, carregava o peso do sacrifício de Alabas, o homem que por duas vezes salvou sua vida.

 


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