O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 1
Este Gabriel não é aquele Gabriel




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É difícil entender o que realmente aconteceu. Tudo o que fez foi dormir normalmente em sua cama dentro do seu pequeno quarto em um modesto apartamento, convenientemente perto da faculdade, porque depois de um dia cansativo entre trabalho e estudos, precisava se dar esse direito. Então, ele acordou no meio de uma floresta escura e assustadora. Acordou por causa dos sons de galopes e berros, como várias vezes tinha assistido em filmes onde cavaleiros apareciam sempre agressivos e barulhentos. Sua primeira reação e com certeza a mais lógica foi se esconder atrás de uma árvore grande, olhando em todas as direções para se certificar de que não fora visto. “Se estou dormindo, quero acordar. Que frio, com certeza derrubei o cobertor e o ar está ligado em dezoito.” Embora pensasse assim, ele sentia em seu íntimo que tudo aquilo era real.

—Aqueles ratos emberlanos estão causando problemas de novo na Cidade Sombria. Vamos! Vamos! – berrou um dos cavaleiros.

—Eeeeh! Vamos matar todos eles em nome de Calendria! – berrou outro deles.

Ele não entendia absolutamente nada do que estava acontecendo. Emberlanos? Calendria? Não se lembrava destes nomes nos filmes e livros. Mas refletiu rápido que ser visto por aqueles cavaleiros poderia lhe render sérios problemas, afinal estavam armados, enquanto ele sabia manejar apenas uma faca de cozinha e nem isso tinha consigo. Estava em roupas inapropriadas para um lugar tão frio, até porque sua cidade tinha clima quente e dormir sem camisa soava convidativo. Então, a urgência em conseguir se aquecer falou mais alto e assim que os cavaleiros se afastaram, ele tomou a trilha de onde eles vieram.

Após uma hora de caminhada, seus pés descalços estavam latejando pelos ferimentos adquiridos ao pisar em galhos, pedras e alguns espinhos que vez ou outra o obrigavam a parar para retirar. Seu pulmão incomodava, seu corpo pendia involuntariamente para os lados e já tremia tanto ao ponto de confundir sua mente sobre a direção certa. Ele se abraçava e se esfregava na vã expectativa de fugir daquele tormento, esperando apenas que uma luz no fim daquela trilha pudesse salvá-lo. Quando a viu, entretanto, não acreditou e precisou esfregar os olhos, estapear as bochechas e sacudir o rosto para recobrar a lucidez. Não avistou um reino como imaginava, mas uma pequena vila muito simples. Haviam casinhas feitas de madeira e pedra, com telhados altos e alguns com chaminés esfumaçando. O cheiro era uma mistura de lenha queimada e comida, talvez algo parecido com um ensopado; o apetite abriu. No centro, uma fonte que parecia estar em desuso há muito tempo. Tochas iluminavam o lugar, fosse nas paredes das construções ou nos troncos secos que delimitavam a entrada do lugar, cercado por uma inofensiva e torta cerquinha de ferro que continha várias aberturas. Nas ruas ladrilhadas de pedras não passava ninguém, ainda assim ele teve cuidado ao se aproximar.

Quando se escondeu atrás de um barril que fedia a álcool, esticou o pescoço para ver o único lugar que ainda tinha suas portas abertas. Era maior, certamente um comércio e dali chegavam vozes de inúmeras pessoas cantando ou conversando. Ele notou que acima das portas havia uma placa de madeira pendurada por um par de correntes enferrujadas de cada lado. Notou também que os dizeres na placa eram estranhos e não lembravam em nada o alfabeto que conhecia. Mas por alguma razão ainda desconhecida, conseguiu ler o que estava escrito ali. A placa dizia: Taverna do Pançudo. Desde 2450 d.N.

—Era só o que nos faltava, um tarado. – disse baixinho uma voz feminina atrás dele.

Ele deu um pulo e virou-se para ela muito rápido, visivelmente assustado e com os olhos verdes arregalados. Entre tomar fôlego e se explicar, acabou se atrapalhando.

—E-eu... N-não é o que... Você... Por f-f...

Foi então que notou na mão dela uma lâmina bem artesanal, cujo cabo era de madeira e enrolado por uma faixa de pano encardido, mas ainda perigosa e ameaçadora.

—Eu grito, daí todos vão vir correndo até aqui, vão pegar você e te dar o que merece, seu tarado maldito. – ameaçou com extrema frieza, o encarando cheia de desprezo.

—Por favor! – disse baixinho e desesperado – Não é o que está pensando! – sua mente entrou em um rápido trabalho para buscar algo que pudesse ser convincente diante de uma situação tão desagradável. Estava quase nu e realmente parecia um tarado espreitando – Fui roubado na floresta. Levaram tudo e me deixaram largado lá. Agora preciso me esconder ou vão pensar exatamente o que você está pensando, moça. – foi o que conseguiu inventar. Seria melhor do que dizer a verdade e, ainda se tentasse explicar o que de fato aconteceu, ele próprio tinha muitas dúvidas.

—Roubado, é? Você devia estar vestindo roupas muito caras para que lhe fossem tomadas também.

—Eu... Certamente, moça. Se me ajudar, juro que retribuirei da maneira que desejar. Por favor... – ele se prostrou diante dela ao implorar.

—Pare com isso, levante! Ora! – protestou ela, o puxando pelo braço – Conheço a região, mas nunca o vi. Qual é o seu nome, forasteiro?

Ele notou que ela não mais lhe apontava a lâmina. Aliviado, abriu um sorriso gentil e encarou seus olhos pela primeira vez, notando que eram castanhos.

—Me chamo Gabriel.

O vento soprou mais forte e sacudiu os longos cabelos negros da moça, que ficou boquiaberta e arregalava os olhos tal como ele próprio fizera minutos atrás ao ser surpreendido atrás do barril. Com um passo e meio para trás, ela parecia estar em negação diante do que acabara de ouvir, gesticulava com a mão portadora da lâmina e isso instantaneamente o fez erguer as mãos em rendição. “Será que eu disse alguma besteira?”, indagou-se em pensamento. “Droga! Estou perdido! Preciso fugir daqui!”

—Gabriel... Eichen... – proferiu a moça atônita.

—Eichen? Não, não. Meu sobrenome é...

—Só existe um Gabriel! – disse ela recuperando a força de sua voz – E ele está morto! Como se atreve a usurpar esse nome? Você é de Calendria, não é? Está debochando de mim? Responda! – ela avançou sobre ele e encostou a lâmina contra o seu pescoço, cerrando os dentes como uma fera furiosa.

—Do que está falando? – indagou ele, ainda com as mãos levantadas em rendição. Sua cabeça estava erguida instintivamente para evitar que aquela lâmina lhe cortasse – Esse é o meu nome. Aliás, como assim só existe um Gabriel? É um nome tão comum e eu...

—Comum... – rosnou ela, fechando o semblante e reunindo ao redor de si uma aura inegavelmente assassina.

“Merda! Tudo o que eu falo só me ferra! Essa garota vai me matar... Eu não... O que?”. Seus pensamentos embranqueceram quando ele viu nos olhos dela um mar de lágrimas que ressaltavam sua raiva. Por que estava chorando? Estavam falando sobre um nome! “Só existe um Gabriel e ele está morto... Como sou imbecil! É alguém importante pra ela. Talvez um namorado ou marido que morreu. Talvez seu irmão ou pai.”

—Olha, me desculpa. Eu não disse nada com a intenção de provocar você. Peço que seja compreensiva comigo, estou confuso. De repente eu digo meu nome e você reage assim, juro que não consigo entender.

—Você disse que é um nome comum, está mentindo! Ninguém em Eastgreen possui esse nome, é um tabu!

—Eastgreen? É o nome dessa vila?

—O que? – afastou-se ela, que agora também estava confusa – De onde você é?

“Desgraça! Olha a merda que eu estou fazendo! Por que não consigo controlar minha boca?!”

—De... Ahn... – suspirou, sem conseguir pensar em nada.

—É melhor me dizer a verdade. Vai pagar caro se tentar me enganar outra vez. Você não foi roubado e seu nome não é Gabriel. Também não é de Calendria e estou certa de que não pertence a nenhum reino deste continente, o qual sequer conhece. Quem é você?

Ele fechou os olhos e deu um longo suspiro, então se jogou sentado no chão, recostado a parede da casinha e ao lado do barril que fedia a álcool. Depois, encarou a moça de cima a baixo. Usava botas marrons e surradas, uma calça que não lhe servia e ficava ligeiramente frouxa, além de uma camisa de mangas longas que tinha sido branca em algum momento. Seu rosto era bonito, embora com algumas cicatrizes e marcas. A verdade é que já estava exausto, machucado e congelando. Poderia tentar correr dali, mas sem saber para onde ir ou como voltar para o seu aconchegante quartinho, só acabaria enfiado em mais problemas.

—Eu estava dormindo no meu quarto depois de um dia cansativo. Trabalhar e estudar não é muito fácil, embora seja recompensador. Quando acordei, me vi naquela floresta esquisita e escura. Vários cavaleiros passaram por lá berrando alguma coisa sobre ember-sei-lá-o-que e sobre Calindria ou Calêndula, seja lá como chamem, não me importo. Minha cidade é quente, por isso sempre durmo de calção, então não tive tempo de me trocar. Procurei abrigo e aqui estou, sendo ameaçado por uma garota que eu não conheço, num lugar em que nunca estive e até meu nome se tornou um problema. – nesse momento ele a encarou. Embora estivesse fragilizado, seus olhos ardiam em indignação – Eu me chamo Gabriel Fernandes. Sou órfão e o juiz achou por bem me dar este sobrenome, sugerido pela coordenadora do orfanato de onde vim. Achei que tinha superado aquela fase, que estava finalmente progredindo na vida, que poderia ganhar dinheiro e formar uma família, viver como uma pessoa normal, sabe?! Agora estou aqui! – esmurrou o chão, cabisbaixo – Faça o que quiser. Não vou mais implorar sua compreensão, moça.

Ela o encarou com o rosto mesclado em confusão e desconfiança. Apesar de permanecer com a lâmina na mão, procurou nele quaisquer brechas, qualquer coisa para acusa-lo e, no entanto, nada encontrou. Aquela vestimenta inadequada possuía inscrições que ela desconhecia. Os pés estavam feridos e ele não aguentaria mais tempo exposto ao frio da noite sem se agasalhar. Não portava armas, seu cabelo estava cortado de uma maneira muito diferente de qualquer homem que já vira e parecia muito bem cuidado, como se fosse um nobre.

—Isso na sua roupa, o que diz?

—Ah, isso. É a marca do meu calção, bem famosa de onde eu venho. Eles também fabricam calçados, tenho dois pares bem legais.

—Você é de alguma casa nobre, não é?

—Casa nobre? – riu-se Gabriel – Essa foi ótima. Com o salário que eu ganho, conseguir pagar a conta de luz e a faculdade já é algo nobre.

—Conta de luz? – indagou ela de cenho franzido.

—Vamos supor que eu esteja em outro mundo. Odeio clichês, mas acho que este é o caso. Ou em outra época, não importa. “No meu mundo” existe uma coisa chamada eletricidade. Vocês usam tochas aqui e com elas iluminam tudo. No meu mundo, usamos coisas parecidas, mas que são alimentadas por eletricidade. Eu... Ahn... Não está entendendo nada, não é?

A jovem meneou a cabeça.

—Não sou rico, tá legal?! E o que eu te disse é verdade. Não precisa acreditar em mim se não quiser. Tudo o que eu te peço são roupas, um pouco de comida e água para que eu não morra naquela floresta. Mas se ainda assim não quiser dar nada, apenas me deixe ir.

Ela cruzou os braços, pensativa. Então ouviu-se sons de galopes; mais cavaleiros estavam cruzando a vila.

—Rápido, vem comigo! – disse ela o puxando pela mão.

Às pressas eles entraram em um estábulo escuro, onde poucos feixes de luz lunar invadiam pelas frestas de madeira. O aroma não era dos melhores, fora que estava abafado e a cada passo dado aumentava o risco de tropeçar no feno. Para Gabriel, porém, foi o melhor lugar em que esteve desde que acordou, pois a tortura do frio noturno tinha diminuído um pouco.

—Eu vou ajudar você, usurpador. Mas se estiver mentindo para mim, vou descobrir e eu mesma te mato, entendeu?

—Entendi. Mas o que pretende... Eh... Qual o seu nome?

—Heler. Pegarei umas roupas, espere aqui.

—Mas...

—Aqui! – rosnou ela, saindo do estábulo.

Enquanto esperava, deitado num monte de feno, Gabriel refletia a respeito de tudo o que tinha acontecido nas últimas horas. Não entendia o que estava fazendo ali, nem em que época ou mundo estava. Se lembrou dos dizeres na placa da taverna, “Desde 2450 d.N”. 2450 deveria ser o futuro, mas tudo o que tinha visto remetia aos tempos medievais. Não estava no futuro ou no passado terrestre, mas em outro mundo ou em outra dimensão. Além disso, o que significava “d.N.”? Depois de... O que? O cansaço foi vencendo as forças em suas pálpebras, até que se sentiu leve e despreocupado, como se tudo desaparecesse.

—Usurpador! Ei, Usurpador! Acorda! – disse Heler o sacudindo.

Gabriel se levantou, olhou em volta e viu que a jovem tinha trazido roupas.

—Também trouxe esse queijo e um copo de suco de odela.

—Suco de ode... o que?

—Odela. Não me diga que não conhece!

Ele negou com a cabeça.

—Como eu explico?! Acho melhor você beber para entender. Mas primeiro vai se vestir, seu tarado idiota!

—Também não precisa esculachar. – reclamou ele enquanto pegava as roupas e as vestia.

Heler se virou para o outro lado, mantendo a lâmina bem firme na mão. Estava concentrada, pronta para reagir caso o rapaz tentasse alguma coisa. Por um instante sentiu-se ameaçada, até que ele apenas disse:

—Pronto, Heler. Até que serviu bem. Seu gosto pra roupa é bem peculiar, sabia?!

—Idiota. São do meu irmão, mas ele não vai mais precisar delas, afinal se casou e foi morar em Calendria. Vocês tem mais ou menos o mesmo tamanho, apesar dele ser mais forte.

Agora Gabriel não estava muito diferente de Heler. Botas marrons, calça um pouco mais larga do que deveria, camisa de manga longa e um...

—Chapéu. Por que eu preciso usar um chapéu?

—Porque esse seu cabelo ridículo seria notado em qualquer canto de Eastgreen.

—Qual é... Não implica com o meu moicano.

—Cale a boca e coma! – disse ela revirando os olhos e pela primeira vez guardando a lâmina, algo que ele notou e sorriu – O que foi?

—Nada. Mal posso esperar para beber esse suco de amela.

—Odela! – vociferou ela irritada, imediatamente tapando a boca com as mãos e por fim sussurrando – Se alguém nos encontrar, será culpa sua! Usurpador idiota!

Gabriel mordeu alguns pedaços do queijo seco e bebeu o tal suco de odela. Viu que ambos combinavam muito bem, mas separados eram sem graça. Odela não lembrava nenhum sabor conhecido, era meio ácido e meio doce. Enquanto fazia seu lanche, Heler o observava meticulosamente. Não aceitava a ideia daquele rapaz se chamar Gabriel, mas algo nele com certeza a deixava inquieta. Os olhos verdes e intensos, numa tonalidade diferente e rara; era como se estivesse de volta naqueles dias. “Muitos tem olhos verdes, isso não prova nada”, teimou ela em pensamento.

—Você me ajudou, mesmo eu sendo um estranho. Obrigado, Heler.

—Devo estar louca por ajudar alguém tão suspeito. Acho que talvez eu... Talvez eu esteja apenas curiosa a respeito de tudo isso. Nunca ouvi falar de viagem entre mundos e você com certeza não é daqui. Cara, tudo isso parece loucura!

—Nem me fala. Minha cabeça está pesada.

—É melhor descansar. Vai que você volta para o seu mundo quando acordar. – disse levemente divertida, mas fechou rapidamente o semblante ao perceber que estava facilitando demais para um desconhecido suspeito e que se atrevia a usar o nome dele.

—Seria ótimo. – concordou Gabriel ao se jogar no feno, enquanto Heler saía e trancava o estábulo.

Os cacarejos lhe despertaram, embora tivesse resistido a eles durante algumas horas desde que o primeiro galo cantou. Somado a isso, havia um feixe forte de luz sobre seu rosto. Quando abriu os olhos, percebeu que ainda estava no estábulo e isso lhe causou uma sensação de angústia. Como conseguirei voltar para casa? Essa era a maior pergunta em sua mente. Agora conseguia ver claramente os três cavalos que estavam por ali. Nunca tinha chegado perto desses animais, mas os apreciava. Embora frustrado, olhar para eles tirou de seus lábios um singelo sorriso.

Um barulho vindo de fora fez Gabriel se apressar a procurar um esconderijo. Quando as correntes caíram e o lugar clareou, uma figura feminina adentrou.

—Usurpador? – chamou quase sussurrando.

—Dá pra parar de me chamar assim? Você sabe meu nome. – reclamou ele, surgindo diante de Heler.

—Pelo visto não conseguiu voltar para o seu mundo. Hum, vou chama-lo de Tral. Agora se apresse e pegue seu chapéu, precisamos sair daqui.

—Tral? Não, por favor!

—Anda logo!

Ambos deixaram o estábulo e foram caminhar fora da vila, nas estreitas trilhas da floresta. O rapaz notou que aquele lugar não era tão assustador de dia, pelo contrário, a vista era muito bonita. O céu azul predominava juntamente com o forte sol matinal, porém o vento frio e a companhia das árvores tornavam o clima agradável. As aves voavam de um lado a outro, cantando e se exibindo. Os mugidos revelavam uma criação de gado vinda de alguma parte não explorada da vila.

—Não tem problema? Aqueles cavaleiros podem aparecer de novo. – perguntou ele, olhando para os lados.

—Você é um morador da vila e se chama Tral. Trabalha como ajudante da taverna e eu sou sua chefe. É isso que vai dizer caso eles ou qualquer outro apareça. – explicou Heler eficiente.

—Espera, você é a dona da Taverna do Pançudo?

—Aquela que você estava espiando ontem? Quase isso. Ela pertence ao meu pai. – disse divertida, não lembrando em nada a irredutível mulher da noite passada – Estive pensando sobre tudo o que você me falou. Realmente achei que conseguiria voltar para casa se dormisse, por mais absurdo que isso pareça. Ainda não estou totalmente crédula nessa história. Talvez você seja de alguma terra bem distante, do outro lado do mar. Agora me ocorreu que... – parou de repente, franzindo o cenho e o encarando – Se você pertence a outro mundo e seu idioma é diferente do nosso como consta na sua roupa, o que explica o fato de conseguir ler e falar o idioma daqui?

—Sinceramente? Eu não faço ideia. – respondeu simplesmente – Estranhei as inscrições na placa da taverna, mas ainda assim conseguia ler perfeitamente. E eu com certeza não estou falando meu idioma nativo.

—Tudo em você é estranho. – ela semicerrou os olhos, fechando o semblante.

—Ah, não. De novo isso?! Olha, se vai ficar me chamando de mentiroso a cada cinco minutos, é melhor eu ir andando. – precipitou-se Gabriel zangado, mas ela o segurou pelo braço.

—Talvez seja um espião!

—Uhum, com certeza. Sou o espião de algum reino do outro lado do mar que veio apanhar informações muito importantes na taverna de uma vila no meio do nada! – cantarolou com muito sarcasmo – Me solta, Heler! Obrigado pelas roupas e pela comida, prometo retribuir algum dia. Só me deixa ir.

—Espera. – deu um puxãozinho de leve em seu braço, o soltando – Tá, desculpa. Mas vê se me entende, isso tudo é um absurdo!

—Acha que eu não sei?! – soltou o ar dos pulmões, visivelmente frustrado – Estou preso a um mundo completamente desconhecido e agora não sei como faço para voltar. Isso é tão ridículo, não acredito que está acontecendo comigo. Onde está o mestre dos magos?

—O mago chefe, você quer dizer.

—Eu... O que?

—Se diz mago chefe, não mestre dos magos, apesar de na prática ser a mesma coisa.

—Espera aí! Está me dizendo que existem magos nesse lugar?

—Aqui não. Em Calendria, naquela direção. – respondeu ela apontando para o Norte.

—Calendria... É um reino?

—Sim. O mais poderoso reino de Eastgreen. Está cheia de...

—Eastgreen seria...? – cortou ele, super interessado.

—Nosso continente. Tenho um mapa, posso te mostrar depois.

Gabriel começou a pensar sobre Calendria e os cavaleiros da noite passada. Eles pareciam interessados em atacar alguém, mas o nome lhe fugiu da memória. Já Heler subiu em uma das árvores com muita facilidade, apoiando os pés nos mais altos galhos até conseguir apanhar uma fruta que lembrava a maçã na cor e no tamanho, porém era como se estivesse embrulhada. Com sua lâmina, cortou ao meio e jogou metade para o rapaz que quase deixou cair.

—Odela. – exclamou Heler, mordendo um pedaço – Experimenta.

Ele mordeu e se recordou do gosto daquele suco da noite anterior. Porém, mastigar odela era uma experiência peculiar. Além de ser muito macia, desmanchava na boca e preenchia o paladar com seu sabor e frescor. Após comer toda a sua metade, Gabriel subiu na árvore, embora não com a mesma destreza da garota e ao perceber que não conseguiria alcança-la, se acomodou em um galho mais baixo.

—Os cavaleiros que passaram por mim na noite passada. Eles estavam gritando alguma coisa, como se quisessem caçar e punir alguém.

—Provavelmente estavam indo para a Cidade Sombria. Os calendrinos nunca deixarão os emberlanos em paz. – suspirou ela, ao mesmo tempo em que esmagava uma odela e lambuzava a mão – Miseráveis!

—Então Calendria tem uma rixa com os emberlanos. E os emberlanos estão na Cidade Sombria. Desculpa, Heler, é muito confuso pra mim.

Ela não conseguiu conter uma gargalhada.

—É como eu me sinto quando você fala sobre viagem entre mundos, faculdade e não sei mais o que. Calendria é um dos maiores reinos dos humanos. Seu território é bem vasto e, diga-se de passagem, estamos dentro dele. A Cidade Sombria fica naquela direção. – apontou para o Sul – Lá, os últimos emberlanos sobreviventes se refugiam e resistem a opressão dos calendrinos. Meu pai me contou que nem sempre foi assim. Houve um tempo em que ambos os povos se davam muito bem, mas algo horrível aconteceu. Contam as histórias que o último rei de Emberlyn, Magaroth Ulrich, traiu a humanidade e conspirou para que a Escuridão do Sul avançasse sobre Eastgreen. Então o rei de Calendria da época, Ederith I Valthor, marchou contra os traidores e dizimou aquele reino.

—O que é essa tal Escuridão do Sul? – perguntou enquanto se esticava para alcançar uma odela na ponta de um galho fino.

—É o que o próprio nome diz. Vindo do Sul, um terror inimaginável cobre os mares e os céus. É como estar diante da mais terrível noite, sem lua, sem qualquer luz ou esperança. Ouvi dizer que todos os que enfrentaram essa cortina escura morreram ou enlouqueceram. – explicou enquanto chupava os dedos para tirar a odela estraçalhada.

Gabriel sentiu arrepios ao imaginar como seria a Escuridão do Sul. Sem querer continuar explanando sobre isso, reuniu coragem para tocar em um assunto delicado.

—Você me chama de Usurpador e fala sobre o nome Gabriel com muito apreço. – começou em tom doce, olhando-a de esguelha e percebendo que tinha capturado sua atenção; estava séria, apenas o encarando – Quem é esse Gabriel?

Os galhos da odeleira e das outras árvores balançaram com o vento forte e o barulho das folhas preencheu a floresta. No céu, a luz do sol tentava invadir pelas brechas das nuvens, mas sem sucesso. Heler ficou em silêncio, encarando o rapaz por algum tempo, até que desceu até onde ele estava e ficou frente a frente, indubitavelmente séria.

—Desculpa, eu não quero te magoar nem nada. – disse rápido, gesticulando com as mãos como se esfregasse o ar.

—Não magoa. – retrucou seca – Se tudo o que você me disse é verdade, te escolheram um nome bem peculiar. Por aqui, não é comum como você disse. Se algum calendrino além de mim te escutar dizendo que se chama Gabriel, você provavelmente será atacado e morto.

Ele engoliu em seco.

—Gabriel Eichen, o Rei Negro, foi um homem que colocou medo em toda Calendria. Meu pai disse que seu poder era descomunal e que sua fúria era como uma assustadora tempestade repleta de raios. Não sei realmente, pois não conheci esse seu lado. – ela desviou o olhar, como se estivesse enxergando algo distante – Quando eu era apenas uma criança, a vila foi atacada por um grupo grande de emberlanos com sede de vingança por causa de todo o sofrimento causado por Calendria. Meu pai foi amarrado e espancado, enquanto eu acabei raptada. Me amordaçaram e me vendaram, depois me jogaram no fundo de uma carroça. Eu era pequena demais para entender o porquê de tudo aquilo, só conseguia sentir medo e preocupação pelo meu pai. Queria voltar, ajuda-lo, abraça-lo e ficar em seu colo. – sem se dar conta, Heler começou a abraçar o próprio corpo como se o clima tivesse esfriado – Em algum momento, a carroça parou. Ouvi vozes, pareciam estar discutindo. De repente, a venda e a mordaça me foram tiradas. Vi o rosto de um homem grande, com olhos verdes, sorrindo para mim e dizendo “vai ficar tudo bem, senhorita”. Ele me levou em seu cavalo de volta para a vila. Me lembro da armadura que usava, negra e imponente, bonita e ao mesmo tempo assustadora. “Isso não deveria ter acontecido”, disse ele me encarando enquanto cavalgávamos.

—Era ele, não era?

—Sim. – confirmou a jovem, sorrindo em admiração – Depois que voltamos, ele fez questão de que tratassem meu pai. Ordenou a reconstrução da vila e a entrega de suprimentos. Sempre que aparecia, me trazia uma flor diferente e explicava seu significado. Eu ficava ansiosa, esperando que ele voltasse. Gabriel se tornou para mim um grande amigo, que apesar de ser rei, nos tratava com muito respeito e simplicidade. Só que um dia, ele não veio. – seus olhos ganharam um tom inconfundível de tristeza, enquanto se apoiava firme no galho com as mãos como se tivesse perdendo a capacidade de se equilibrar na odeleira – Ficamos sabendo que ele tinha sido derrotado pelo grande mago Merlin na Cidade Sombria. As pessoas sempre falam muito mal dele, Usurpador. O chamam de coisas terríveis e eu não entendo nem a metade de tudo o que aconteceu. Só o que sei é que, para mim, o rei Gabriel Eichen foi um bom homem, meu amigo e protetor.

O rapaz ficou em silêncio. Agora entendia o significado por trás de toda a raiva e dor que tinha visto nos olhos de Heler quando se apresentou na noite passada. Embora seu nome fosse comum na Terra, naquele mundo a história era bem diferente. Isso só mostrava o quão perigoso seria sair por aí sem entender no que estava se metendo.

—Tudo bem me chamar de Tral. É melhor do que Usurpador. – riu baixinho – Esse tal mago, de onde é? Ainda está vivo?

—Sim, está vivo. Ele é o atual regente de Calendria e mago chefe do Conselho dos Magos. – respondeu ela sem dar muita importância.

—Você não sabe o porquê dele ter matado o rei Gabriel, né?

—Só sei o que contam por aí. Dizem que o rei enlouqueceu, que sua tirania estava se estendendo por toda Eastgreen e ameaçando outros reinos. Também circulam boatos de que ele conspirava para enfraquecer o Escudo do Mundo e facilitar a entrada da Escuridão do Sul, o que eu não acho que seja verdade. Dizem o mesmo sobre o rei Magaroth e ainda assim os emberlanos se negam a acreditar. Ficam furiosos quando alguém diz essas coisas.

Ele ficou em dúvida sobre o que seria esse tal Escudo do Mundo, mas preferiu não perguntar. Toda aquela história era complexa até mesmo para Heler, uma nativa. Com certeza levaria um tempo para compreender como funcionavam as coisas naquele lugar.

—Falando nisso... Merlin é um mago poderoso. Talvez o mais poderoso atualmente. Você bem que poderia tentar se aproximar. Quem sabe ele não tem a resposta que pode te levar de volta pra casa?!

—Estranho.

—O que é estranho?

—Você não fala de Merlin como se o odiasse, mesmo ele tendo matado seu amigo.

Heler deu um sorriso fraco e balançou os ombros.

—Embora ele tenha me causado uma ferida que nunca irá cicatrizar, o mago Merlin não permitiu que a vila fosse atacada. E quando uma praga assolou nossas plantações, ele enviou ajuda. Não posso odiar alguém assim, né...

Ambos desceram da árvore, primeiro Heler que o fez com extrema facilidade. O sol do meio dia surgia atrás das já dispersas nuvens e algumas pessoas transitavam nas proximidades, uns conduzindo carroças, outros levando ferramentas nos ombros, como enxadas e rastelos.

—Não vai ser fácil chegar até o mago Merlin, Tral. Sem falar que não há nenhuma garantia de que ele tenha alguma resposta ou que vá querer te ajudar. Por outro lado, é a melhor chance que você tem. Conheço uma pessoa que pode te levar a Calendria.  


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