Ochako se ergue do tatame e ajusta o rabo de cavalo, observando a oponente se levantando e fazendo o mesmo. As duas acenam com a cabeça em reconhecimento e se curvam logo depois.

A sensação é familiar, e ao mesmo tempo um tanto estranha. Já faz meses que ela não pratica apropriadamente, mas não está exatamente enferrujada. Havia uma parte sua que só conseguia fantasiar com seu retorno ao clube de judô de maneira triunfal: ela voltaria, e seria como se nunca tivesse saído, vencendo seus primeiros embates com facilidade. Outra parte sua sabia que não seria assim tão fácil, as meninas do clube sempre foram ótimas e com certeza continuaram evoluindo nesses meses, e Ochako sentiria na hora o abismo na diferença entre as técnicas e capacidades dela e das outras garotas.

No fim, as duas partes estavam parcialmente certas. Não, ela não chegou vencendo todas as oponentes, mas suas técnicas não estão assim tão atrás das meninas, Ochako deu canseira em muitas lutas, e acabou vencendo somente uma. Longe do ideal, mas ainda assim um bom desempenho considerando todas as circunstâncias dos últimos meses.

Mesmo sentindo um pouquinho de frustração por não ter feito melhor, ela ainda está feliz por estar de volta. Muito feliz, na verdade. Não só porque é algo que Ochako genuinamente adora e sempre adorou desde quando viu que havia um clube de judô nessa escola, mas também porque é infinitamente melhor que se desdobrar em dois empregos de meio período, sendo um deles o terrível trabalho na lojinha de conveniência.

Que… talvez não tenha sido tão terrível assim, pois lhe trouxe coisas boas, mesmo que por caminhos tortuosos. Ochako se apaixonou praticamente à primeira vista pelo rapaz mais encantador que já viu na vida e, depois de um incidente lamentável em muitos níveis, teve a chance de conhecer esse rapaz e só confirmar o que já sabia: Todoroki Natsuo é gentil, doce, praticamente perfeito.

E bem, é importante lembrar que conhecê-lo de fato só foi possível graças ao irmão mais novo dele. Todoroki Shouto é… estranho, diz umas coisas que ela não entende muito bem e lhe pega de surpresa praticamente em todas as interações que tem, mas ele… também é gentil do seu próprio jeito, conseguiu um emprego pra ela que paga quase o mesmo que Ochako ganharia se matando em dois empregos, e vem fazendo tudo em seu alcance para ajudá-la a se aproximar do homem de seus sonhos, o irmão dele.

Então, olhando pra trás, se Ochako está aqui hoje podendo retornar ao clube que tanto gosta, é graças ao Todoroki de maneira indireta. Ou talvez até direta. Ela deve bastante a ele, e precisa pensar numa maneira de retribuir, mesmo que ele talvez não ache que haja necessidade ou sequer pense nisso. O Todoroki pode parecer meio frio e às vezes até um tanto rude em toda sua honestidade, mas por diversas vezes nas últimas semanas, Ochako se pegou pensando algumas vezes em como gosta de conversar com ele, lembrando-se constantemente de como se divertiu quando foi assisti-lo no torneio de arco e flecha e como gostaria de ir de novo, e nem seria para ver o irmão dele… bom, não apenas para ver o irmão dele.

Agora mesmo, Ochako está pensando que quer muito contar pro Todoroki como foi seu primeiro dia na volta ao clube de judô. Ele pareceu sempre tão genuinamente curioso sobre as habilidades dela no esporte e a incentivou muito a voltar, mesmo que nem tenha se dado conta. Talvez ele nem diga nada ou nem entenda porque ela quer compartilhar suas experiências, mas Ochako sabe que ela vai ler suas mensagens ou ouvi-la atenciosamente, como um bom amigo faria.

Amigos, por falta de um termo melhor… mas não tem termo melhor que esse para defini-lo nesse momento. O Todoroki é alguém com quem ela jamais se imaginaria conversando, mas agora conversar com ele é algo quase tão agradável quanto conversar com a Mina e a Tsu. Talvez ele não veja assim, mas Ochako já o enxerga como um amigo, não só como o garoto estranho que se jogou em sua vida, oferecendo-lhe uma chance de se aproximar do rapaz por quem está apaixonada.

Assim que termina de se trocar, ela deixa o vestiário e puxa o celular para mandar uma mensagem para as meninas e para o Todoroki, contando como foi o primeiro dia no clube. Ela não vai entrar em detalhes sobre como se sente feliz, embora um pouco frustrada, apenas se limitando a dizer que precisa treinar mais pra acompanhar a equipe, mas que teve um dos melhores dias de sua vida.

— Oh, olha só quem voltou!

Ochako é surpreendida por uma voz masculina assim que guarda o celular na mochila e deixa o ginásio, virando pra trás e encontrando um rosto familiar. Cabelos vermelhos espetados e um sorriso imenso, além de ombros ainda mais largos do que ela se lembrava.

— Kirishima-kun! Tudo bem? — ela sorri quando o vê se aproximar — Sim, tô de volta pro time feminino!

— Que demais! A Nakagame-san deve ter ficado feliz!

— Muito! Ela me apertou mais no abraço do que na nossa luta. — ela ri — E você segue no time masculino, né?

— Claro! Vou até participar do distrital semana que vem!

— Ah, que incrível! Me passa o horário, se eu puder, vou lá torcer por você!

— Pode deixar! Se você quiser chamar a Ashido e a Tsu, fica à vontade! — ele dá um joinha, e Ochako dá um sorriso sereno, sabendo exatamente porque ele está dizendo isso.

Ele estava em sua sala no ano passado, e era basicamente amigo de todo mundo, inclusive dela e das meninas, mas Ochako sempre teve a impressão de que o garoto dava uma atenção especial para a Mina. Segundo a amiga, eles se conheciam desde o Fundamental, e por isso eles conversavam mais, mas Ochako teve certeza que o motivo não era só esse ao conversar com a Tsu, que afirmou com toda a certeza típica dela de que os dois irão namorar em algum momento, se não agora no ensino médio, mas certamente no futuro.

— Claro. Vou falar, sim.

Ochako achou impossível discordar.

Os dois caminham e conversam animadamente, retirando-se do ginásio nesse fim de tarde ensolarado. O Kirishima é um garoto legal e tem sempre muita energia, Ochako foi com a cara dele desde que o viu pela primeira vez, correndo até a Mina assim que a avistou na cerimônia de abertura como um cachorrinho abanando o rabo. A amiga de cabelos cor de rosa nunca disse diretamente se tem algum interesse por ele, mas Ochako acha que eles seriam um casal fantástico!

— Fiquei feliz em te ver, Uraraka! —  ele resume o sentimento que é recíproco quando os dois chegam ao portão da saída — Preciso falar, ouvi os boatos que você tava voltando, e fiquei meio com o pé atrás, mas… tô feliz que você não mudou nada!

— Como assim? — Ochako segue sorrindo, mas franze o cenho diante do comentário.

— Ah, é que… sei lá, fazia um tempo que eu não te via por aí… e agora você anda muito com o Todoroki da turma A, então… — ele dá de ombros.

— Nem faz tanto tempo assim. — ela aponta, mas não é essa parte que realmente lhe chama atenção — E… o Todoroki-kun? O que tem ele?

— Nada, nada! É só… ah, é que… sabe?

— Não… não sei. — ela balança a cabeça, pois realmente não sabe, e ele não ajuda não se explicando direito.

— É que ele é meio estranho. Muita gente acha ele metido por ele ser rico, ter pai famoso e não trocar ideia com quase ninguém… na moral, eu acho que isso é mais inveja de uns caras por ter muita menina apaixonada por ele, mas… ele é mesmo meio metido.

O sorriso se esvai de seu rosto. Ochako não tem muita certeza se entende para qual rumo essa conversa está indo, e embora goste do Kirishima, não dá pra ficar ouvindo isso calada.

Estão falando mal de seu amigo na sua frente.

***

Shouto nunca se considerou do tipo curioso, até que o Natsuo apontou que ele só parece estar no mundo da lua, quando na verdade está bem mais atento do que se imagina. E é verdade, ele vem percebendo isso mais recentemente, e talvez tenha muito a ver com o início do convívio quase diário com a Uraraka.

Ela de fato despertou uma curiosidade que Shouto não sabia possuir, a história maluca que fez sua vida cruzar com a do Natsuo e o dele próprio e o fez querer entender porque alguém se apaixona assim, do nada. 

Mas não é só por causa do Natsuo, houve alguns dias desde aquele sábado em que ela foi torcer por ele no torneio de arquearia em que Shouto quase se esqueceu do propósito original de sua aproximação com ela, querendo puxar assuntos aleatórios só porque quer saber a reação e a opinião dela. É bem estranho pra ele se descobrir tão curioso em relação a alguém.

Então, depois de ler a mensagem que ela mandou lhe contando como tinha sido seu primeiro dia no clube de judô, Shouto pensou que não seria nada de mais ir encontrá-la na saída já que ele também havia acabado de terminar as atividades em seu clube também. Quando ele escutou a voz dela próximo ao portão de saída, foi quase que um instinto se aproximar. Ele não tinha intenção de ouvir a conversa, apenas passar por ela e com quer que ela estivesse conversando, mas Shouto ouviu a voz dela, e depois ouviu seu nome. E daí não deu pra conter a curiosidade.

E bom, com certeza seria melhor não ter ouvido nada, porque o que se seguiu foi uma voz masculina listando todas as coisas que o fazem achar Shouto uma pessoa desagradável. 

Não que ele se importe, ainda mais se nem sabe quem é a pessoa conversando com a Uraraka. Ele está ciente de que tem gente na escola que o olha torto sem ele ter feito algo diretamente pra essas pessoas, e tudo bem, Shouto também não se sente inclinado a tentar gostar de colegas com quem nunca conversou e provavelmente nunca vai. 

No fim, isso não lhe afeta em nada.

— E você diz isso baseado em quê? — a Uraraka pergunta depois de alguns segundos em silêncio.

— Hã?

— Você mesmo disse, essa é a impressão de alguns meninos por se incomodarem por ele ser popular, você mesmo nunca… conversou com ele, né?

— Ah… acho que só uma ou duas vezes, nem lembro.

— Pois é, bem pouco pra formar uma opinião sobre alguém, ainda menos pra supor que eu estaria diferente por conversar com ele.

— Ei, calma lá, Uraraka. Eu não… eu não falei por mal, você sabe.

— Sei sim. Você não é disso, Kirishima-kun. Por isso mesmo que acho que você não devia falar assim dele. O Todoroki-kun é… ele é sim… bem… peculiar…

Ele não consegue ver o rosto dela, o muro da escola criando uma barreira entre eles, mas Shouto consegue imaginar a expressão dela, o jeito como pensa para escolher as melhores palavras. Ele quase não a reconheceu por um segundo nesse tom mais ríspido, quase seco, completamente atípico em comparação ao que acostumou-se a ouvir dela.

— Mas ele é uma ótima pessoa. Você saberia disso se parasse de escutar o que dizem por aí e tentasse conhecê-lo.

— Eu… tá bom. Desculpa, Uraraka.

— Não, tudo bem… — ele a ouve suspirar — Desculpa se eu fui meio grossa agora, só… não gosto que falem mal dos meus amigos.

Shouto os ouve se afastarem, mas permanece ali parado por alguns segundos, processando o que ela acaba de dizer. Ela o defendeu, não só isso, mas o fez com uma energia que ele ainda não havia conhecido nela.

Uraraka com certeza não precisava fazer aquilo, ela não deve nada a ele, por mais que pense o contrário. E como não há chances de ela sequer imaginar que ele estava por perto, com certeza disse aquilo não para agradá-lo, mas porque é algo que ela realmente acredita. Ela acha que ele é uma ótima pessoa, ela… o vê como amigo mesmo.

Shouto não tem muitos amigos. O Midoriya é um, mas eles nem conversam muito, assim como o Bakugou. A Yaoyorozu e o Iida são os mais próximos disso que ele tem na escola. Ele não leva jeito para se aproximar das pessoas, e nunca faz nada particularmente significativo para atrair amizades, com a Yaoyorozu e o Iida só aconteceu pois eles já se conheciam fora do colégio.

A Uraraka está frequentemente olhando-o como se ele fosse maluco, Shouto já percebeu, mas parece que ela está fazendo um esforço para entendê-lo tanto quanto ele faz com ela, e disso pode ter nascido uma amizade. 

É esquisito, mas é um sentimento estranhamente bem vindo.

***

— Você já começou a estudar pras provas?

Ochako é surpreendida pelo Todoroki na saída do trabalho. Ele se levanta do banco que fica perto da porta e vai até ela, ajustando a alça de sua mochila. Já faz alguns dias que ele não aparecia no restaurante, o que estava sendo relativamente bom pra ela, pois as conversas estranhas sobre a relação dela com o filho do chefe deram uma diminuída, exatamente como o Takami disse que iriam. Ela não sabe até que ponto isso foi influência do próprio Takami ou só um percurso natural das coisas, mas foi algo que lhe tranquilizou um pouco.

De toda forma, Ochako confere para ver se não tem mais ninguém da cozinha indo embora nesse mesmo momento.

— Boa noite, Todoroki-kun! Ah… não, ainda não. E você?

— Eu estudo todo dia. — ele dá de ombros, claramente nem se lamentando nem se gabando, é só a verdade.

— Ah… bom que você já tá sempre preparado, né? Vai tirar de letra! — ela diz animadamente — Então, você tá aqui pra falar com o End-

— Vamos estudar juntos.

— Hã?

— Pras provas. Vamos estudar juntos.

— Tem… tem certeza? Eu não sei se a gente estuda no mesmo ritmo…

— Não tem problema. Eu te ajudo e você me ajuda.

— Certo… — Ochako duvida muito que ele precise de ajuda no que quer que seja, tendo descoberto recentemente que o Todoroki é o número 1 do ranking geral da escola, mas ela não vai recusar ajuda desse mesmo número 1 — Ah, eu tava conversando com as meninas, a gente quer se reunir pra estudar na biblioteca no fim de semana. Quer vir com a gente?

— Na biblioteca? Por que não na sua casa?

— N-na minha casa? — Ochako arregala os olhos — Não, é muito pequeno! Nem ia caber todo mundo no meu quarto! Fora que… acho que na biblioteca dá pra se concentrar melhor.

— Talvez seja. A Yaoyorozu disse uma vez que o silêncio de uma biblioteca é o melhor som que existe.

— Bom, ela tem notas excelentes, então ela deve saber do que tá falando. — Ochako ri — Você pode chamar ela também, se quiser. E o Iida-kun também.

— Eles provavelmente vão gostar. — ele pega o celular — Vou tentar convidá-los.

— Legal!

— Mas estudar na casa de um colega também é normal, não é?

— Hã?

— É bem normal, amigos se reunirem na casa um do outro pra estudarem.

— Ah… é, costuma ser. 

— Então vamos estudar na minha.

— Ah, na sua casa? —  ela hesita — É, talvez…

— Por que talvez?

— Bom, não sei, é que… não atrapalha?

Ochako não sabe como explicar que se sentiria deslocada em uma casa que muito provavelmente é uma mansão. Assim que ela disser para a Tsu e a Mina sobre o convite, a amiga de cabelos rosa irá topar na hora, louca de curiosidade para ver onde alguém como o Todoroki mora, então é necessária certa cautela para tentar garantir que essa sessão de estudos não cause um tumulto desnecessário.

— Não consigo ver como atrapalharia. — o Todoroki, claro, é direto como de costume.

— Bom, ok… vou falar com as meninas. — Ochako pensa mais um pouco, e de repente tem uma ideia — Ah, posso chamar mais uma pessoa? Acho que você não o conhece, o nome dele é Kirishima Eijirou, ele é do terceiro ano também.

— Por quê?

— Hum? — Ochako se surpreende com a pergunta.

— Por que você quer convidá-lo?

— Ah, é que… como eu te explico…? É que… como eu vou chamar a Mina-chan, ela… pode ficar um pouco agitada demais, mas… se o Kirishima-kun for, ele… conseguiria deixá-la um pouco mais centrada… eu acho.

E além disso, Ochako quer que o Kirishima veja que o Todoroki é um cara legal. Aquela conversa na saída da escola foi meio estranha e quase a fez ver o ruivo com certa desconfiança, mas logo depois que ela firmou o pé e deixou bem claro que considera o Todoroki um amigo, o Kirishima entendeu o ponto dela e até se desculpou. Ele é um garoto legal, ela não esperaria menos de alguém de quem a Mina gosta. Agora Ochako quer que ele veja por si só.

— Esse Kirishima é seu amigo?

— É, sim.

— Hum. — ele parece retorcer a boca por um segundo — Tudo bem.

— Ok, vou chamá-lo também. Vocês vão se dar bem, tenho certeza.

— Certo, sábado de manhã na minha casa.

— Ok. — Ochako sorri, e então vacila — Seu… irmão vai estar em casa?

— Meu irmão? — ele estreita os olhos brevemente.

— É.

— Ah… não sei. 

— Ah… certo. — ela acena, meio surpresa por ele não saber. Ochako tinha certeza que o Todoroki só ofereceu sua casa como parte do esquema de aproximá-la do seu irmão.

Se não foi por isso, então… foi porque ele realmente quer se reunir para estudar com ela?