Caçadores urbanos e o mistério do filho proibido escrita por Tynn, WSU


Capítulo 6
Capítulo 5 – A gravação




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O ventilador de teto girava ruidosamente enquanto soltava baforadas de ar contra o calor da sala. Abaixo daquele aparelho capenga, o detetive Joseph, com a testa pegajosa de suor e sentado em uma poltrona de couro encardida, assistia à filmagem no notebook pela trigésima segunda vez. Ele tomou mais um gole de café, pausando a imagem no momento ao qual Carlos subia até a cobertura do casarão. Joseph coçou sua barba pensativo, depois puxou o bloco de anotações para escrever novas observações. 

A sirene de uma ambulância passando na avenida fez o detetive ficar ainda mais agoniado. Desde que resolvera não pegar mais casos sobrenaturais, a sua clientela diminuíra bastante e, consequentemente, o dinheiro. Precisou fazer uma série de cortes de gastos que incluia não comprar um ar-condicionado para a sua sala de estar, continuar no quinto andar de um prédio em situação precária e comprar café barato. A última parte era a mais frustrante.

O homem levou a xícara aos lábios e percebeu que estava vazia. O seu dia teria como ficar pior? Levantou-se morosamente, caminhando até a cozinha para pegar um pouco mais de café enquanto refletia. Descobrir a localização exata do quartel-general dos caçadores através da gravação estava sendo uma tarefa árdua. O que ele menos suportava, entretanto, era ver um grupo de jovens ser manipulado de forma tão cruel. Joseph encheu a xícara com o café fervente e caminhou de volta a sala, onde posicionou o recipiente ao lado do notebook. O detetive então puxou uma gaveta da escrivaninha e encarou um maço de cigarro aberto. Fazia tempo que ele não fumava, afinal sabia que o vício significava um gasto a mais nas suas despesas. Pegou um cigarro e brincou com ele entre os dedos. A impaciência parecia causar essa necessidade de retomar os velhos hábitos.

Puxou o isqueiro da mesma gaveta e acendeu a chama. Quando iria aquecer o cigarro, todavia, o barulho de batidas na porta invadiu a sala. Clientes? Joseph torceu para que fosse. Ele puxou o sobretudo do sofá e colocou em cima da camiseta branca com manchas de suor. Espiou no olho-mágico para avaliar quem estava do outro lado. Observou uma mulher com um elegante chapéu vermelho, um par de óculos escuros, um cachecol de lã bege sobre o pescoço e um casaco tweed. Uma típica madame que não tinha noção do quão quente Recife era. Joseph aprumou o sobretudo no corpo e abriu a porta.

— Em que posso ajudar, senhorita?

— Olá, Joseph Almeida. Lembra-se de mim? — Vanessa sorriu ao retirar os óculos escuros. O detetive tentou fechar a porta instintivamente, mas a mulher colocou o pé para impedi-lo e conseguiu escancarar a porta. — É assim que você recebe os velhos amigos?

— Eu não faço amizade com monstros.

— Você é inútil e decadente e mesmo assim vim visitá-lo. Agora me deixe à vontade no seu escritório imundo — a mulher falava ao entrar na sala e soltar o cachecol no sofá; foi até a escrivaninha e passou o dedo no objeto empoeirado, esfregando a poeira acumulada na pele. Joseph fechou a porta silenciosamente. Ele colocou a mão dentro do sobretudo à procura da adaga. — Eu entendo que você não tenha dinheiro para contratar uma diarista, sei o quanto o seu honorário deve ser deplorável, mas eu esperava o mínimo de higiene no ambiente em que você recebe as visitas.

Antes que o detetive pudesse tomar qualquer atitude, latidos ferozes preencheram o cômodo como se uma matilha de cães estivesse presente. Ele olhou aflito para o lado e viu um enorme cachorro negro, latindo e cuspindo baba de suas presas afiadas, o focinho enrugado de ódio. Os olhos do animal eram vermelhos e seus pelos estavam eriçados. Um novo latido surgiu ao lado esquerdo do detetive, um outro cão infernal estava lá. Joseph puxou a adaga e ficou em posição de defesa, sem saber se ameaçava o demônio da direita, da esquerda ou a dona daquelas criaturas. Vanessa deu um sorriso irônico e sentou-se na poltrona de couro.

— Você achou que eu viria sozinha visitar o homem que tentou me matar há 10 anos? — Ela encarou a tela apagada do notebook. — Está na hora de juntar dinheiro para comprar um Mac, aposto que esse lixo mal funciona.

O detetive calculava suas possibilidades. Poderia apunhalar um cão infernal com a adaga, porém seria atacado pela segunda criatura e dificilmente sairia vivo de sua mordida. Atingir Vanessa era uma opção, mas ela havia se colocado atrás da escrivaninha, distante o bastante de uma investida. Arremessar a adaga? Talvez, mas a probabilidade de não acertar um golpe fatal era demasiadamente alta. Além disso, os cães o atacariam imediatamente após a morte de Vanessa. Aquelas criaturas eram famintas por carne e elas só não o devoravam agora porque estavam sob a influência de sua mestra. O detetive sentiu um pingo de suor descer da testa.

— O que você quer aqui? A campanha de vacinação é no posto veterinário da esquina.

— A sua preocupação com a saúde dos meus bichinhos é comovente. — Ela girou a poltrona e escutou um estalo alto. — Que lugar horroroso! — resmungou para si mesma. — Vamos ao que interessa: quero que você se afaste permanentemente dos meus caçadores. Não ouse interceptar, falar, mandar texto ou sinal de fumaça para nenhum deles.

— Eu preciso da ajuda de seu engenheiro — Joseph falou a contragosto. — Ele é o único que pode terminar o projeto de Luíza.

Vanessa ficou um momento reflexiva, processando na mente a fala do detetive, depois começou a dar uma gargalhada alta e debochada. Joseph deu um passo à frente, enfurecido, mas os cães latiram lembrando-o que estavam de prontidão. A mulher continuou a rir durante alguns instantes, colocando a mão na barriga.

— Você é tão medíocre que chega a ser engraçado, detetive. Quer dizer que a sua namoradinha não terminou o projeto da faculdade e agora você precisa de um dos meus homens para isso? Quão ridícula e humilhante pode ser a vida de alguém?

— Nunca mais fale nesse tom sobre Luíza.

A voz de Joseph tornou-se grave e sombria. Vanessa parou de súbito o ar de riso, encarando-o.

— Agora que eu entendi. Ela morreu — a mulher decretou. — E o que esse projeto tem de tão importante?

— Luiza pesquisava sobre o surgimento de um ser maligno, um filho proibido com poderes jamais vistos antes. Ela conseguiu desenvolver um protótipo para acabar com essa criatura, mas não finalizou em vida.

— A sua adaga não dará cabo desse ser?

— Tenho minhas dúvidas. Até mesmo a arma abençoada por uma deusa possui limitações.

— Compreendo. — Vanessa encarou o notebook. Ela reparou que uma luz piscava na sua lateral, alertando que o aparelho estava ligado em modo de espera. Joseph engoliu em seco. — Por que não lemos agora mesmo o seu projeto? 

Vanessa apertou o botão de enter do notebook. Joseph estendeu o braço para impedir que a mulher completasse a ação, mas era tarde demais. Os olhos de Vanessa se arregalaram ao ver a imagem de Carlos na tela. Ela apertou o botão de barra de espaço e a gravação voltou a se movimentar. A ruiva estava incrédula. 

— O que é isso?

— Uma gravação da vida de seus caçadores. Eu encontrei acidentalmente a câmera na rua. — O detetive acompanhou com preocupação a mulher transtornar-se. Aquele notebook foi a única herança de Luiza, todos os seus dados de pesquisa estavam compilados no aparelho, além dos arquivos do projeto. Caso Vanessa fizesse alguma loucura, Joseph perderia anos de informações coletadas pela amada. — Não faça nada precipitado, Vanessa. 

A ruiva encarou a filmagem e observou uma versão de si própria explicar seus planos aos demais caçadores. O pânico tomou conta de seu corpo, ela não poderia ter a sua imagem exposta! Caso descobrissem o que de fato estava fazendo da vida, com certeza seria caçada como um rato pelos seus desafetos. Vanessa viu a xícara de café repousando ao lado do notebook. Pegou o objeto fervente e encarou Joseph. O detetive quase suplicava para que a mulher não continuasse com aquilo. 

— Existem milhares de demônios dispostos a fazer tudo para acabar com minha vida. Você, mais do que ninguém, sabe o quanto sou odiada pelo submundo. Eles me consideram uma traidora. — A ruiva balançou a xícara sobre o notebook. Uma gota de café caiu a milímetros do aparelho. — Você já teve a sua cabeça colocada a prêmio, detetive? Aposto que não.

Toc-toc, toc-toc, toc-toc.

Tanto Vanessa quanto Joseph olharam para a porta. Alguém estava do lado de fora realizando batidas ritmadas. O detetive caminhou até a porta sob os grunhidos dos cães. A ruiva fez sinal para que os animais parassem de fazer barulho, ela também estava curiosa para saber quem era. Joseph deu uma espiada pelo olho mágico.

— É Carlos — ele sussurrou. Sua mente estava a mil por hora, essa era a oportunidade que precisava para reverter a situação. — Você não vai querer que os caçadores saibam todos os erros que você cometeu na vida, certo?

— Isso é uma ameaça?

— Não, uma proposta. Mande seus cães infernais embora, eu irei guardar a adaga, e nós conversaremos com Carlos como pessoas civilizadas. Se você realmente mudou e está fazendo a coisa certa agora, prove isso.

A mulher fez uma expressão de dúvida, não era do seu feitio se submeter a qualquer sugestão de um homem, mas não podia arriscar que Carlos se afastasse do grupo caso soubesse do seu passado. Odiava admitir, mas ele tinha uma importância fundamental na equipe. Vanessa estalou os dedos e os cães sumiram. Em seguida, sentou-se na poltrona e colocou os pés sob a escrivaninha, segurando o café.

— Trato feito, mas ficarei aqui tomando meu café pertíssima do notebook enquanto nós conversamos, caso você resolva dar com a língua nos dentes. — Ela tomou um gole e cuspiu na mesma hora. — Você prepara isso com estrume?

— Contenção de gastos, Vanessa — Joseph comentou, escondendo a adaga dentro do sobretudo. Ele então abriu a porta e encarou o engenheiro. — Entre, Carlos, nós três precisamos conversar.

*****************

Uma vela foi acesa sob o estalar do fósforo, irradiando uma iluminação fraca que não era capaz de afastar todas as sombras do cômodo. Nataneal caminhou até a segunda vela, acendendo-a com um novo palito flamejante. Ele fez isso com as outras quatro, finalizando o hexágono ao qual o permitiria entrar em contato com as forças do submundo. Essa era a sua melhor habilidade. Ele analisou as marcas feitas no chão com um giz de cera preto, elas representavam a alquimia entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos de acordo com seu livro ancestral. O rapaz, de pele pálida e sem camisa, sentou-se no centro do desenho com os olhos fechados.

Ad te clamamus, exsules filii Evae. Ad te suspirámus gementes et flentes in hac lacrimarum valle — sussurrou o bruxo.

O ambiente permaneceu em silêncio absoluto por cinco minutos, o tempo necessário para o coração do bruxo bater mais forte e a respiração ficar mais acelerada. Natanael abriu os olhos, duas orbes completamente negras, conseguindo enxergar alguns feixes de luz que surgiam ao redor das velas. Os feixes piscavam em tons de amarelo, multiplicando-se a cada instante. Eles começaram a se juntar de forma aleatória e a se encaixar como um quebra-cabeça à frente do rapaz. Os feixes respeitavam o círculo desenhado na sala, surgindo apenas entre as velas acesas, e criando aos poucos uma forma definida.

Dava-se para reconhecer um par de pernas humanas, assim como o tronco, os braços, as mãos e, por fim, a cabeça. O rosto era irreconhecível, apenas uma mancha de chamas disformes. O formato do corpo, porém, se assemelhava a um homem de estatura alta e músculos bem definidos.

— Onde estou? — Uma voz grave soou de todos os cantos do cômodo, como um eco. Natanael permaneceu impassível, encarando a criatura de luz.

— Eu estou à procura de informações do submundo — o bruxo respondeu. — Não irei feri-lo, mas não poderei dar mais detalhes sobre este recinto.

— O que você procura saber?

— Ouço sussurros sobre um grande mal que está para surgir. Tal entidade promete trazer a libertação dos malassombros da escuridão.

— Eu sei o que os fantasmas tanto aguardam. — A voz fez uma pausa. — Contudo, eu só poderei contá-lo se você me libertar da prisão.

— Como farei isso se sou apenas um bruxo em um cômodo escuro?

— Procure reforços e me encontre o quanto antes. Eu posso estar presente aqui como um ser de luz, mas sou um homem de carne e osso aprisionado por uma entidade maligna. Procure-me próximo à nascente do rio Tapacurá e liberte-me. Só assim irei ajudá-lo na sua busca para dizimar todas essas assombrações.

O ser humanóide se dispersou em uma explosão de luz, irradiando um calor que fez Natanael estremecer. O garoto fechou os olhos novamente, sussurrando palavras de agradecimento em latim. Ao abri-los, sua íris voltara ao tom azul habitual. Natanael caminhou até cada vela e as apagou, refletindo sobre o pedido de socorro. Não era habitual ter um encontro assim, de fato fora a primeira vez que se conectou com o que parecia ser uma entidade de boa índole, mas o submundo estava repleto de seres ruins capazes de simular as mais benéficas entidades. O rapaz encostou-se na parede do cômodo, sentando-se no chão frio. Talvez ele não devesse tomar essa decisão sozinho. Por mais que não quisesse, precisaria da ajuda de seus companheiros para salvar o homem misterioso. Natanael respirou fundo. Estava na hora de convocar os caçadores para uma missão urgente.


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