Amar Não Dá XP! escrita por The Nightmare


Capítulo 2
Failed




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Se havia algo de previsível em um dia de semana comum de Alex era a rotina de cavalo de padeiro. Qualquer que fosse podia ser marcado precisamente por cada passo seu cronometrado. 

Às 06:57 a bexiga ameaçava provocar um tsunami na cama e lhe forçava a levantar antes do despertador tocar; Às 07:00 desligava o alarme na força do ódio; Às 07:20 saía para escola, voltando de lá ao meio dia, chegando quase perto das 13:00 e assim os eventos iam se sucedendo até que o fim de semana chegasse e pusesse uma pausa forçada e amada neles. 

Naquela quinta feira, de céu coberto por uma grossa camada de nuvens semelhantes a algodão, não foi diferente. O diferente, no frigir dos ovos, estava mais no fato de o tempo não ser um problema. Sem o bônus no jogo, o arroz com galinha pôde ser devidamente apreciado pelo paladar do moreno sem que isso lhe custasse alguns XPs. 

Quando o último objeto da louça foi enxugado e guardado no respectivo lugar no armário da cozinha busão das 18 — mais de cinco pessoas já a tornava propensa a esbarrões e prensas involuntárias — de sua casa, sua atenção se voltou inteira para a tela do notebook. Levou um pacotinho de bolachas recheadas, um copo de suco e tudo pronto. 

Só restava Sandy.

O login ia sendo realizado enquanto Alex tentava conjecturava algo que, não raro, lhe aparecia em pensamento: qual poderia ser o real nome de sua parceira? Seria este seu nome de batismo mesmo ou usado ao acaso? Junção de Sandra + Yolanda? Iniciais de Selma Adriane Nogueira De Yang? 

Teorias e mais teorias. Sandy, até então, era apenas uma palavra e uma voz. Nada mais. O resto era coberto por uma névoa que ia muito além de sua figura enigmática. Tinha para si que ela poderia tranquilamente ser daquelas personagens de fanfics com passado sombrio e regado a dúvidas, mas tão magnéticos que é impossível desviar o olhar. Um Edward Cullen sem as presas (Nem os 122 anos nas costas, torcia!). 

Sequer as longas calls conseguiam entregar uma só pista que prestasse. Logo se via que não se tratava de alguém cuja vida é um livro aberto. Pelo contrário: suas páginas custavam a se deixar serem lidas, como se cada vírgula por trás delas pudesse revelar algo capaz de fazer um estrago maior do que os 07 x 01 na copa de 2014. 

Sandy pronunciava cada sílaba sabendo direitinho qual seria a próxima. Sem margem para erros ou enganos. Isso fazia com que a atenção de Alex em sua figura aumentasse a cada nova resposta dada pela metade, ou informação que quase escapuliu. Brincava de detetive sem que ela se desse por conta disso — e mesmo que o fizesse, nada mudaria. 

Tanto que, minutos após entrar no jogo e lançar mão de alguns ataques contra inimigos, uma pausa se fez necessária para dar uma espiada no perfil do avatar, na tentativa de pegar algum detalhe a mais cujo olho analítico não conseguira captar. Cansou de subir e descer o cursor olhando data de nascimento, nome, quando entrou no jogo, visto por último, biografia e tudo mais que já havia decorado melhor que a conjugação do verbo ‘futricar’ no Pretérito Mais-Que-Perfeito do modo indicativo. 

Só parou a vasculha quando se deu por conta da notificação na tela para uma call. Ficou com a pulga atrás da orelha ao perceber os quase quarenta minutos de demora em fazê-lo. Primeira vez que ocorria algo parecido. Aceitou sem que uma sombra de dúvida cruzasse sua intrigada mente. 

— Oi — o timbre do cumprimento saiu como uma tempestade se armando em pleno meio-dia, escurecendo qualquer resquício de luz possível. 

— Oi… — foi a primeira resposta que lhe ocorreu — Perdeu o ônibus, é? 

— Sei lá… — o seco daquelas palavras faziam delas navalhas afiadas mesmo sem querer, ligando um alerta no outro — Conseguiu achar algum jeito de caçar aqueles Aracne Highbots? Não ‘guento mais morrer no mesmo ponto por três dias seguidos. 

— Sandy…

— O quê? 

— Não sou papel higiênico pra me enrolar… Fala. 

— Alex, dá um tempo. 

— Sandy. 

— Dá um tempo, por favor…

— O que eles fizeram? Fala logo — seu tom não escondia a ira de um vulcão prestes a explodir dentro daquele peito juvenil.

Alguns segundos foram preenchidos pela total falta de um mísero ruído. Sequer uma respiração pesada ou evidências de choro na voz. Alex chamou por seu nome mais algumas vezes e nada. Não custou a pensar o quão pesado pegaram, e a vontade de seus punhos de lhes mostrar que daquele jogo era mestre começava a crescer. 

Uma notificação logo apareceu na tela do chat de Sandy. O rapaz, lógico, abriu na velocidade de um foguete, apenas para sentir seus olhos saltarem das órbitas. 

“ Foca nos Aracne Highbots. Pfv. ”

De repente, Alex sentiu uma pequena agulha entrando em sua barriga e fincando um por um de seus órgãos intestinais. Aquela sensação só lhe assombrou uma única vez antes: quando a professora do quinto ano se aproximou com um exame sobre Mesopotâmia quando havia passado a noite em claro decorando Biomas. Doía seu peito pensar que a solução para aquilo não estava em olhar direito o horário das aulas. 

Suas mãos estavam amarradas. A ausência de uma proximidade física lhe limitava a se expressar por palavras. Tendo a menina recusado-as, sua única possibilidade era começar a resgatar na memória os pontos do mapa Tears of a Vampire Crypt onde fora atacado pelas medonhas criaturas em formas de aranha. 

Pior ainda foi passar as horas que seguiram mutado, mesmo quando tentava lançar mão de uma ou outra piadinha sem graça para ver se rolava um ‘hahaha’ ou ‘kkkkk’. Nada. E o cenário de como tudo teria acontecido se formando e reformulando mais rápido do que troca de cenário em teatro. Perdeu as contas das vezes as quais as versões apareciam como flashs na sua cabeça. 

Uma pior do que a outra. 

Começou com chamando-a de bola de canhão até partindo para o físico, com empurrões chutes e socos. Nesse ponto, odiou com todas as forças os tais adultos responsáveis de onde sua garota estudava. Como puderam aqueles que tudo sabem, tudo vêem e tudo julgam, não saberem, verem ou julgarem um bando de imbecis sem cérebro e batedores de bronha? Não eram eles que sabiam lidar com as coisas?

Suas dúvidas, além da iminente revolta, causavam também uma sensação incontrolável de querer estar junto, contar piadas e fingir que a realidade daquele dia não passou de um terrível pesadelo. Na falta disso, só lhe restou questionar, quando o relógio se preparava para marcar 17:34, se não iria mesmo lhe contar.

Call encerrada. Isso não foi motivo para as várias minhocas inquietas da cabeça do garoto se darem por satisfeitas. Pelo contrário: agora tinham fome por respostas. 

Sem ninguém cuja boca soubesse dizer algo além de palavras de baixo calão para continuar sua partida, acabou por sair também. A íris esmeralda de seus olhos encaravam sem prumo o visor a sua frente, inconformadas com a dura realidade. Como podiam duas pessoas de casas tão próximas estarem tão longe em momentos assim? 

E pior: Como podia não haver uma viva alma para defendê-la do ocorrido? 

Ficava imaginando como devia ser a cara dos valentões. Não duvidava do perfil ser parecido com aqueles que conhecia de seu colégio: jeito despojado e vagando pelos corredores como se fossem uma alcatéia, quando não passavam de uma ninhada de ratos; bocas que mais pareciam bueiros de tanto esgoto que saía delas; e, claro, o olhar mal encarado para qualquer criatura que não estivesse a altura de sua ilustre existência. 

Mesmo com tão pouco conhecimento de Sandy, uma coisa tinha como certa: proferir qualquer palavra mais grotesca a ela era pedir para ser a escória da humanidade. Cansou de vê-la sair de squads onde só ouvia asneiras dos nerds viciados no jogo. Na vida real, reproduzir esse comportamento era esperado. 

Levantou da cadeira apenas quando a voz da mãe lhe chamando para jantar foi captada por seus ouvidos. Seus estômago, porém, parecia solidário à tensão de seu coração. Sua presença na mesa só não fosse meramente ilustrativa pelo pequeno punhado do resto de arroz com galinha servido ao centro do prato. 

Entre os tópicos levantados ao longo do jantar, seu nome acabou entrando na rodinha. A ausência de um sorriso largo, uma risada típica de sua parte por alguma besteira qualquer e respostas quase tão curtas que quase não se entendia chamaram a atenção dos pais e irmão. Resumiu tudo em cansaço pelos vários trabalhos escolares e temas de casa, afinal explicar empatia por uma pessoa cujo rosto era um mistério daria uma dor de cabeça daquelas! 

Levantou as mãos para o céu ao notar seu caô sendo comprado. Tanto que a dissertação sobre como as responsabilidades escolares iriam aumentar dali para frente começou sem fazer muito esforço, ativando em seu cérebro um bloqueio auditivo instantâneo, somado a balançadas de cabeça programadas a cada dois ou três minutos. 

Tudo no esquema. Exceto por Jorge. 

Um dos raros momentos, onde sua cumplicidade com o irmão despertava o querer se afogar em um balde, era assim:  quando o olhar dele decodificava em suas fugas de contato visual alguma coisa mal cheirosa. Apressou-se a terminar logo de forrar seu estômago para, então, se enfiar debaixo do chuveiro e depois das cobertas. Evitaria explicações ao máximo, até por sequer saber direito o que explicar. 

Do término do jantar até o quentinho das cobertas relaxar seu corpo esguio foram vinte minutos — mais do que sua vontade gostaria. Tratou de plugar o celular no cabo de carregador, fechar os olhos e colocar seu cérebro para imaginar cenários felizes, desejando que acabasse mergulhando neles e só se desse por conta da realidade quando o despertador tocasse. 

Um desejo não cumprido. Lógico. O turbilhão de dúvidas, deduções e certezas próprias era demais para conseguir se desconectar do mundo. Rolou de um lado para o outro da cama de solteiro, numa tentativa desesperada de se ver livre, mas não era forte o bastante. O coração falava mais alto. A única coisa capaz de lhe dar algum conforto era o fato de, por não ter sono, os cenários lhe pregarem sustos a noite estava fora de cogitação. 

Achava bizarro o fato de, três dias antes, o clima de um dia de verão na praia pairar sobre suas cabeças juvenis. Até por isso estufou o peito e pôs para fora o convite do rolê de sábado. Tinha sido sua primeira vez fazendo isso. Os amigos e colegas da escola, com a mesma idade, até lançavam convites também, mas quase sempre num tom de “te quero, mas não espalha”. 

Alex não. 

Sua palavra era sua honra. Assim seu pai lhe ensinou e o fez decorar de cabo a rabo. 

Sua Player 2 é quem foi pega de calça curta. Soltou uma leve risadinha, agradeceu, ficou alguns segundos em silêncio e depois tentou mudar o foco perguntando sobre como ele havia conseguido abrir a arca dos mil dragões sem acordar o gnomo protetor dela e nem um squad para ajudar. Os lábios do garoto não se contiveram, acabando por se torcer antes de repetir a pergunta. De novo, mais não me toques e fugas.

Até que, nos cascos por ele parecer um disco arranhado, finalmente berrou um “TÁ, ALEX! ‘BORA SAIR SÁBADO! QUE GURI CHATO!”, recheado de vibrações “positivas”. Algo, porém, deixou bem claro: não devia esperar a Cinderela. Alex riu-se. Parecia uma criança vendo a palhaçada de outra. Tendo a questão sido debatida desde as primeiras trocas de mensagens, achou bobo tocar nesse assunto. O fato de, supostamente, ter uns quilinhos a mais, não ofuscavam sua presença irresistível. 

Afinal de contas, até Luan Santana passou a frequentar suas playlists por causa dela! Deixar-se abater pelo físico era desconsiderar, entre outros momentos, o dia em que ‘Amar Não É Pecado’ tocou no rádio, ao mesmo tempo, na casa dele e na dela. ‘Vai ser a nossa música, hein?!’, afirmou a garota, entre risos e vermelhidões do garoto. 

Nessa mesma call, movido pela curiosidade natural existente em cada ser vivo, lançou aquela que julgava ser a pergunta mais íntima que fez a alguém sem que respondesse com risadas e tiradinhas maliciosas: 

“E… tu já… tipo… beijou… beijar sabe… alguém… mas se não quiser responder, beleza, hein?! Foi mal! Só… quis saber”

 Por alguns instantes, Alex ficou na companhia unicamente do eco dos socos, chutes e flechadas contra um Highbot azul com feições de uma joaninha que certamente não recebia muitas visitas. Sandy não dava um ‘piu’, por mais que seguisse com seu avatar atirando feitiços a todo vapor e se escondendo das garras da fera na tela. 

Quando finalmente foi declarada a vitória da dupla, um som que Alex quase pensou ter sido do Além de tão rápido e baixo, emitiu a palavra ‘Não’ e apenas isso. Não era ingênuo a ponto de ignorar possíveis justificativas para tal. Contudo, depois de tantas palavras trocadas e a personalidade dela tão cristalina, era natural pensar que alguém também visse Sandy com olhares semelhantes aos seus.

Um tiro no escuro muito mal dado. Sua única saída depois daquele fora foi acabar revelando a sua verdade, tão semelhante a dela: a de nunca ter beijado também. De início, mostrou-se pouco — ou nada — convencida. Colocou em cheque, alegou ser algo dito apenas para lhe alegrar, até que um contra argumento veio a mente do acusado e não hesitou em usá-lo: 

“Os gordinhos sofrem, mas os nerds também, sabia?!” 

“É. Tá. Faz sentido” o benefício da dúvida parecia não se esgotar.

“Pode perguntar pros guris, meus amigos, que enchem meu saco toda hora pra pegar uma guria que vive me mandando bilhetinho pedindo isso! E eles ficam metendo pilha a fú!”

Sandy não segurou a risada, por mais que estivesse longe de ser as gargalhadas altas ouvidas a quilômetros que estava acostumado. 

“Devia tentar, ué. Perder o BV vai te dar um upgrade na tua skin de verdade” aconselhou a moça. 

“Credo! Bah! Nem brinca com isso! Ela é muito chata e arrogante, meu! Tá louco!” reclamou, como se tivesse sido obrigado a comer um prato de baratas “Mil vezes uma guria legal como…”

Num gesto involuntário, sua traqueia resolveu poupá-lo de emitir qualquer palavra. A ficha caindo pôde ser ouvida até do outro lado da linha. Sandy deu um riso discreto, mas agudo como um ranger de corda de violoncelo, quase uma criança vendo um adulto caindo em sua pegadinha. 

“Como quem, Alex?”

Com o vermelhidão tomando conta de seu rosto — ainda que a moça não pudesse ver, e agradecia muito por isso — faltou coragem em suas cordas vocais para a palavra ‘Tu’ sair com força total. Assim, a única saída foi desligar sua call e só falar por mensagem, o que deixou a menina as gargalhadas mesmo digitando. 

Lembranças de momentos como aquele, onde a única preocupação era se divertir sem que o mundo pudesse impedir, esquentavam seu coração e davam margem para a preocupação retornar. Ainda que Sandy não estivesse afim, que risse a suas custas por sua personalidade quase boiola, estava fora de cogitação dar de ombros e vida que segue. 

Resolveu dar uma última chance para aquele dia não terminar embaçado pela falta de respostas. De sua cama mesmo, esticou os braços para pegar o notebook, ajeitou-lhe no colo e foi logo tratando de ligar e se conectar no jogo. Quando conseguiu, abriu a caixa de mensagens e, para sua grata surpresa, Sandy havia lhe enviado uma mensagem não fazia dois minutos. 

‘Ale, foi mal por hj. O dia foi mega pesado. Posso te esperar amanhã pra jogar?’

Se por um lado, receber aquela mensagem lhe dava a certeza de poder conversar com a garota, por outro tinha a faca e o queijo na mão: era sua chance de matar dois coelhos numa cajadada e sabia disso. Foi por isso que, ao responder, dispôs dos argumentos que tinha para, enfim, tirar uma resposta dela. 

‘Tá bem, mas tu vai ter que me explicar o que rolou hj no rolê de sábado.’

Seu estômago começou a ronronar como um gato manhoso. Custava agir como um juiz fazendo valer uma sentença. Contudo, se havia uma relação bacana entre eles, nada mais justo que se vissem cara a cara para, então, ver o que poderia acontecer a seguir. 

Quando a notificação de mensagem apareceu na tela quase dois minutos depois, o garoto sequer pestanejou em abrir. Como esperava, mais uma vez Sandy queria fugir pelas beiradas, escondendo-se por trás das palavras como uma pequena lagartixa medrosa. 

‘Tu não esquece mesmo desse rolê, hein? kkkk’

‘Claro q n. E pra provar vou te dar outra chance’ sua resposta foi franca e direta, clicando no botão ‘enviar’ com o sorriso de um sádico nos lábios — só torcia para os dela não estarem na mesma. 

Mais alguns poucos segundos antes do som da notificação de mensagem indicar uma nova chegando. 

‘Q tá aprontando agr?’ A garota parecia atiçada como um gato observando um ratinho dando bobeira alegremente. Era fácil demais cair de primeira. 

‘ ‘Bora fazer uma chamada de vídeo então? Daí eu te vejo, tu me vê e pronto’

Alex pôde ouvir um leve suspiro seguido de uma risada tão curta quanto rabo de lagartixa cortado. 

‘Vai dormir Ale. Nós dois na verdade né? Tá tarde já’ De novo, Sandy pareceu tomar o caminho mais óbvio, tal qual era de seu costume. 

‘Arregando? Qual é! Só assim pra te perdoar e entrar amanhã!’ foi categórico na sua decisão. 

‘Nada haver isso agr. É golpe baixo’

‘Isso ou o rolê sábado. Tu que escolhe. Tô esperando’

‘E se o q tu ver não for… exatamente o q tá esperando?’

Um flash com todas as milhares de milhões de avisos sobre tarados na internet começou a ecoar em sua cabeça, tornando seus pensamentos um emaranhado de fios cheios de eletricidade, com elétrons se atropelando e entrando em curto na tentativa de não se imaginar sendo uma vítima de um tarado.

O coração começou a pulsar mais forte. As mãos se tornaram úmidas e verdadeiras pedras de gelo. Uma gota de suor quis escorrer por sua testa, sendo limpa por seu braço direito na mesma hora. Começou a tentar imaginar o que poderia fazer, contudo, ele mesmo tinha armado a ratoeira. Se fugisse, iria se contradizer. 

Formulou algumas hipóteses: Se Sandy fosse pseudônimo de um velho peludo e barrigudo, o dedo na tecla PrtSc estaria posicionado para printar as fuças do desgraçado e espalhar por cada canto de Porto Alegre; se fosse um nerd gordo e gay, tal qual acontecera com seu irmão, o terreno da amizade ia ser sua residência; se fosse aquelas garotas que foram garotos, podia até tentar, mas pediria para irem com bastante calma. 

Estipulados os piores dos piores cenários, sua cabeça até desinchou, bem como seus hormônios também resolveram voltar a programação normal. Poderia segurar a barra tranquilamente. Diante disso, não teve dúvidas em dar a outra margem para tranquilizar-se. 

‘Eu gosto de ti pelas nossas conversas né? N vai ser um rosto diferente que vai me assustar’

Era verdade, mas não toda verdade. Só uma parte. Aquela mais convicta de ver apenas uma garota com um rosto menos esquelético do que os da maioria de suas colegas. Qualquer variação disso já fazia seu coração bombear cada vez mais rápido para uma vertigem não lhe alcançar. 

Sandy também estava longe de querer pôr fim a sua angústia. Não conseguia nem cogitar a ideia de desligar tudo e tentar dormir de novo, pois certamente uma insônia lhe aguardava com alegria, caso não pusesse um ponto final naquilo. Os segundos passaram, se transformaram em um minuto, depois dois, três, quatro… e assim até que fossem quase doze, quando se teve notícias dela.

‘Tu não mudou nada mesmo né Ale? Quando cisma com alguma coisa…’ 

Ler aquilo foi como receber uma bolada, tendo seus sentidos adquirindo o status de algo entre o limbo e o incrédulo. Era alguém conhecido, ok. Mas quem? Uma garota de sua sala? Ou ex colega? A menina da rua de trás que tentava lhe comprar com cupcakes com recheio de coco e gosto de sabão em pó? 

Quem estaria por trás de sua adorada figura, aquela cujas conversas lhe alegravam tanto, mas que acabou virando refém de alguma garota sem noção?!

 Um ícone surgiu no meio da tela: 

 

Player Sandy está te convidando para uma chamada de vídeo! Aceitar?

 

Um carreiro de formigas passou por seu estômago no mesmo instante. Até isso Sandy conseguia fazer: inverter o jogo! Com as palavras certas, fez com que seu corpo entrasse em um modo de espera quase intuitivamente: as mãos trêmulas tentavam levar o mouse até o ícone de aceitação, mas o rosnar de seu estômago e o gelo pela barriga toda insistiam em não cessar. O problema era ter partido de si o convite. Deveria aguentar firme. Mesmo que Samara viesse lhe buscar ao atender, precisava engolir a seco e se deixar levar. 

Aceitou. Seus olhos fecharam na mesma hora, se apertando tanto que Alex até pensou que virariam as órbitas para dentro. 

— Alex? Tudo bem? 

A voz que ouviu foi tão familiar quanto estranha. Definitivamente não se tratava da mesma de tom doce e tranquilo como as águas de um lago. Era mais grave e parecia trêmula, amedrontada. Suas pálpebras se abriram com certo temor por perceber que algo não casava com tudo vivido até ali. 

Foi quando deu de frente com um rapaz, cuja pele parecia ser a própria argila, cabelos escuros como a noite, cheios de cachos ondulados por onde se olhasse, um olhar de criança perdida dos pais, receoso, inquieto. As mãos não paravam de coçar os braços, numa tentativa desesperada para não cavar um buraco na terra e se enfiar dentro. 

— Tobias? — questionou, ainda sem acreditar no que seus olhos viam. Sequer dava para cometer erros, pois a luz do quarto do outro estava acesa, revelando-o por completo — É sério isso?

— Eu… te disse… — sua íris chocolate encarou o chão. 

— Disse o quê? — o cérebro custava a trabalhar — Tá, tá. Entendi. Nossa, essa foi muito boa, hein cara? Não teve graça, mas foi boa. 

— O que foi boa, Ale? Não tô entendendo…

— Tua trollagem, ué! Me pegou! Tá gravando pra mostrar pra geral, né? Confessa aí e ‘bora encerrar de vez! 

— Ale, eu não tô te trollando. Tô falando sério!

— COMO NÃO TÁ SE TU — vendo que sua voz começou a se alterar, Alex parou um pouco, respirou fundo e seguiu sua linha de pensamento — Cara, muito bom te ver. Sério mesmo. Tava com ‘mó saudade dos nossos papos, mas agora assume, beleza? Diz que tá zoando, pra chamar minha atenção… Diz aí, por favor. Tô te implorando…

Pela primeira vez durante aquela conversa, os olhos de Tobias se voltaram ao centro da tela. O outro sentiu um aperto no peito, como se aquele olhar pudesse lhe atravessar por inteiro. Mantinha as feições de sua face como a de um advogado em juízo. 

— Não se brinca com isso, Alex. Só quem é muito otário e não se importa com os outros — frisou, fazendo a boca do estômago do outro gelar — Então, por favor, para de repetir que tô te enrolando ou zoando, porque, pela última vez: Eu. Não. Tô.

Não existia pedra sobre pedra na cabeça de Alex. Apenas devaneios soltos batendo nas paredes do cérebro, na expectativa de colidirem uns com os outros e, então, se anular, voltando minutos antes, quando tudo ainda fazia algum sentido. Aquela realidade, onde Tobias falava sério sobre algo que era seu e de Sandy, com certeza era como uma dor de cabeça que, sabia, ia infernizar por dias a fio.

— Bah, tu tá mais malandro do que me lembrava, hein?! — deu uma leve risada ao confrontá-lo — Mandar aquelas coisas bem boiolas só pra me iludir… E meu irmão ainda me disse que isso era que nem água nesses games! Que trouxa eu fui, cara…

Notando o esforço seu sendo colocado em vão, Tobias relaxou seus ombros, entregando os pontos. Sabia que viraria um ping pong desnecessário e desgastante, onde os lados pareciam não entrar em um ponto comum. 

— Que pena que tu vê as coisas assim… — coçou a nuca — Que pena que tu me vê assim. E eu te avisei pra não insistir, né? Olha o que deu…

— Tá tranquilo, cara. Sério. Já aceitei que fui zoado. Agora é vida que segue até que comecem a me zoar no colégio por isso — brincou, mesmo que, no íntimo, fosse mais uma melancólica possibilidade à uma brincadeira boba. 

De novo, os olhos de Tobias fitaram os seus. De novo, o frio no estômago veio como um raio.

— Acha que eu me importo tão pouco assim pra fazer isso pra ti? Tem certeza, Ale? Depois de tudo que a gente já passou nesses meses? 

Aquela conversa parecia entrar para um lado que seu cérebro assimilava pouco — quase nada, na realidade. As palavras entravam nele, mas se embolavam no meio do caminho, tornando-se um emaranhado de coisas sem nexo, cuja função era apenas preencher o vazio que se formava após a infeliz revelação.

— Bom… É isso, né? — sem saber mais o que falar, e sem as respostas que outrora lhe fariam dormir mais tranquilo, só lhe restava entubar e tentar achar seu sono, mesmo que Tobias não precisasse saber disso — Vou indo nessa. Amanhã tenho aula cedo.

— Não queria saber o que rolou? — o garoto indagou, numa última tentativa de arrancar alguns segundos a mais de conversa. 

— Outro dia tu me conta. Tô cansadão…

Tobias deu um sorriso de canto de boca antes de balançar positivo com a cabeça, compreendendo o que ocorria com clareza. As atitudes, afinal, realmente contavam mais do que mil palavras…

— Já que tu vai sumir mesmo, ou fazer qualquer coisa do tipo, sei lá… Só queria te dizer um negócio… — foi franco ao fazer o pedido. 

— Fala aí — o rosto do outro sequer fazia questão de mostrar algum interesse. 

— Tu fica mais bonito… pessoalmente — os olhos de Alex quase saltaram para fora da órbita, ao passo que Tobias sentia cada pedaço de seu rosto esquentar ao máximo — Até mais. 

E com o eco daquelas palavras, “Sandy” desligou a chamada e deixou o outro encarando a tela sem mover um só músculo, apenas ouvindo-as quase sílaba por sílaba. Não podia acreditar que aquilo fosse verdade. A conversa sem pé nem cabeça… tinha sentido, enfim? 

Desligou seu notebook no automático antes de se deitar e encarar o teto iluminado por alguns raios lunares. Repetia toda aquela conversa buscando um trote, um sorriso debochado, uma câmera escondida de celular, e tudo mais que justificasse a alucinada frase final dita por aquele amigo de poucos anos antes.

Com algo tão pesado nas mãos sem saber administrar, só tinha vontade de afundar no colchão e deletar todo e qualquer resquício de intimidade que tivera com outro rapaz. Mesmo sendo só por palavras, se expôs de uma forma que nem achava possível para alguém que, um ano antes, só se apaixonava por jogos de videogame novos. 

E, naquele instante, era deles que queria fugir. Que Sandy e That’s All Fantasy tirassem férias e lhe deixassem ser um garoto comum outra vez. 

CONTINUA


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Notas finais do capítulo

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Abração e até sexta que vem! ♥



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