Ciência Fortuita escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 1
Ciência Fortuita




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Vera se segurou na amurada por um instante, inspirando fundo enquanto sorria por trás da máscara que filtrava o ar poluído, tornando-o um pouco mais aceitável. Ela olhou para baixo, mas o ar opaco e cinza não permitia que visse o chão noventa metros abaixo. Nada era mais satisfatório do que saber que pouquíssimas coisas podiam impedi-la de conseguir o que queria, e, no momento, ela queria entrar naquele apartamento chique. Charme podia funcionar para alguns de seus semelhantes, mas para ela, ferramentas de arrombamento eram mais confiáveis. E divertidas.

Guardou o gancho de apoio que trazia na mão esquerda. A estrutura da luva na mão direita, com protuberâncias de metal negro tão afiados quanto garras, perfurava o cimento do prédio com força o bastante para segurá-la enquanto forçava o revestimento de vidro da varanda de seu alvo. Ela era canhota, precisava da mão esquerda livre para aquele trabalho. As nuvens poluídas não incomodavam muito as pessoas no chão, mas nos centros de grandes cidades verticalizadas como São Paulo, os prédios se isolavam do ar podre do exterior. As varandas só eram abertas quando o monitoramento das condições do ar permitia e em todo o resto do tempo funcionavam como uma selagem hermética. Mas Vera já conhecia o mecanismo. Tinha forçado sua entrada da mesma forma em outros trabalhos. Inspirou novamente antes de entrar no prédio. Não gostava do ar de locais de gente rica. Tinha quase certeza de que era alérgica à ausência de resíduos químicos da atmosfera filtrada.

A primeira coisa que percebeu ao entrar foi o cheiro. Ele era quase imperceptível de início, e o costume com o ar de fora fazia com que estranhasse a súbita mudança, como uma perda temporária do sentido do olfato. Depois tinha o cheiro sutil de antisséptico e limpeza que era ainda mais incômodo. Vera preferiu manter a máscara. Vagou pelo apartamento amplo, avaliando a tediosa decoração minimalista como se não tivesse outro compromisso. A única coisa interessante que viu foi uma parede repleta de medalhas olímpicas e outros prêmios, onde sua atenção demorou um pouco mais. Todas pertenciam ao mesmo atleta, Ricardo Omelas.

Quem é você?! — Uma voz masculina questionou, alarmada, pela presença invasora. Vera imaginou que deveria ser uma visão aterrorizante mesmo, destoando de tudo que ele conhecia. Mas ele não fazia ideia do quão verdadeiro isso era.

Apartamento legal, senhor Ricardo — disse, examinando as poucas fotos perto das medalhas antes de se virar para seu anfitrião involuntário. Claramente o mesmo homem que aparecia nas fotos, mas bem mais velho. Apontou para uma das medalhas. — Eu assisti o senhor vencer esse ano.

O que você quer? — Ele perguntou, a voz surpreendentemente firme apesar de ter recuado alguns passos quando ela andou.

Vera uniu as mãos como se estivesse se desculpando. Ficou satisfeita com o terror nos olhos do homem ao ver as garras da sua mão direita. Contraindo o mecanismo, as pontas afiadas se pronunciaram.

O senhor não vai gostar de saber o que eu quero.

Ricardo correu. Ela o admirou um pouco por não ter implorado piedade ou questionado um monte de perguntas tolas. Poucas perguntas a tiravam do sério tanto quanto: “Por que está fazendo isso?”

Vera o seguiu, desviando de tudo que ele arremessou em sua direção na esperança de conseguir chegar até a porta. Ela estendeu a mão direita e disparou do lança-projéteis em seu pulso, o dardo silvou perto do rosto de Ricardo e ricocheteou com um som metálico na porta, mas foi o bastante para fazê-lo se encolher e desacelerar por um instante. Então Vera o alcançou enterrando as garras em seus pescoço, forçando a mão livre contra a boca dele para abafar o grito de dor. Ambos caíram no chão, ele com a mão em volta do pulso dela, mas sem conseguir afastá-la ou se mover, e Vera sobre ele, imobilizando-o. Não que ela precisasse, com as lâminas enfiadas na pele, cada mínimo movimento do rosto e do pescoço acentuava os ferimentos.

Vera tirou um pequeno estojo laboratorial do casaco e removeu a máscara para trabalhar sem distrações. Ricardo arregalou os olhos ainda mais ao ver seu rosto, com a compreensão do que estava acontecendo se unindo ao terror.

Você é uma…

Shhh... Não tente falar — Vera o amansou de forma indiferente, preparando uma seringa.

Qui... Quimeral…

Vera achava aborrecedor como eles sempre ficavam tão assustados. Como se ela fosse alguma coisa muito inumana. Ela era só um pouco inumana, e não tinha pedido para ser.

Bom, então o senhor sabe o que vai acontecer. Deveria se sentir lisonjeado — falou, logo antes da agulha penetrar a pele dele. — Estou aqui porque alguém admirou muito seu trabalho no passado e quer estar a altura dele.

Ele estremeceu, não sabia se pelo desprezo que a insinuação o causou ou se os ferimentos no pescoço estavam cobrando seu preço. Vera coletou quatro amostras do sangue, duas mais que o necessário, mas ela gostava de ser meticulosa. Então apertou ainda mais a mão em seu pescoço, rasgando a pele mais profundamente. Ricardo convulsionou sob ela. Ainda não estava morto quando ela o soltou, mas ninguém apareceria a tempo de salvá-lo.

Recolheu as amostras no estojo. Uma era para Tiago, outra para ela. As duas restantes era para o caso de algo acontecer com as primeiras. Usando a mesma seringa, ela injetou sua amostra no próprio braço, inclinando a cabeça para trás ao sentir o alívio de um incômodo leve, porém tão persistente que ela nem havia notado que o sentia. Se um dia ela já teve nojo de si mesma por ser uma quimeral, fazia tanto tempo que ela não se lembrava. Agora havia apenas naturalidade no serviço e um pouco de satisfação também.

Pensou no olhar da vítima quando tirou a máscara. Pessoas como ela eram raras, mas muito reconhecíveis. Existiam apenas vinte no mundo, afinal, foram uma tiragem sob encomenda. Uma pesquisa. A Doxomania, empresa que tutorava Vera e seus semelhantes quando eles eram crianças, tinha o intuito de pesquisar a viabilidade de cópias genéticas para transplantes de órgãos. O projeto foi um fracasso desde o início, um erro de procedimento no cultivo in vitro das crianças as tornou inadequadas. Elas se pareciam com as pessoas que cederam o genoma base, mas não pareciam saudáveis. A pele de um cinza doentil era pálida e cadavérica, olheiras fortes, e o comportamento errático, inquieto e indisposto. Nada disso mudava independentemente dos hábitos alimentares, cronogramas de sono ou o que quer que fossem submetidos durante a duração do projeto. Por isso as pessoas os reconheciam facilmente.

Clones fracassados, descoberta fortuita.”

Eles eram cópias falhas, mas o projeto continuou com a descoberta de algo muito mais interessante: a capacidade de absorver material genético alheio e incorporá-lo ao próprio. O que explicava a vulnerabilidade de sua constituição. Seus corpos sozinhos eram insuficientes, debilitados. Não eram clones, mas replicadores. Quimerais, como costumavam xingá-los. E por isso Vera abriu os olhos revigorada após os segundos necessários para o DNA do senhor Ricardo se misturar ao seu, como se houvesse encerrado um período de abstinência. Sua aparência não mudava, mas por dentro ela se sentia bem melhor. Ficou feliz por seu contrato ter um ex-atleta como alvo.

Agora ele já estava morto. Vera revirou um pouco os quartos, assegurando-se de que o crime se parecesse com um assalto mal sucedido. Era necessário que a polícia pensasse que o roubo fosse de bens materiais, e não genéticos, ou seu cliente sairia prejudicado. Não adiantaria usar seu sangue enriquecido com o de Ricardo para fazer um código que aprimorasse as habilidades de algum atleta medíocre se as próximas competições fossem canceladas pela suspeita de algum competidor envolvido com tráfico genético.

Guardando seus pertences, uma mudança nas amostras de sangue a deixou desconcertada. Examinou-as contra a luz, temendo tê-las danificado de alguma forma, mesmo que a única realmente importante fosse a que tinha injetado em si mesma. Então percebeu que não tinha nada direfente com elas, mas com seus olhos. Ricardo era daltônico. Inconveniente, mas teria de lidar com isso por alguns dias, até dispersar os genes dele. Pôs a máscara novamente e voltou para a cidade dos comuns.

Fez o caminho mais deserto. Seu tipo não era bem recebido. Quando o projeto foi descoberto, houve uma grande polêmica. Cientistas foram presos, a Doxomania foi condenada. Vera e seus semelhantes tiveram a esperança de dias melhores. Mas quando a poeira baixou, eles foram esquecidos. A vergonha do escândalo era muita, mas não o bastante para tentarem compensá-los. O governo preferiria esconder que algo assim acontecera bem no centro da maior das cidades sem que ninguém soubesse. Ainda eram crianças, mas agora estavam à própria sorte. Ninguém queria oferecer uma chance para quimeras genéticas como eles, que nem mesmo as impressões digitais eram confiáveis e mudavam o tempo todo. Para o bem ou para o mal, eles eram a única família que tinham.

Irônico, Vera pensava. Haviam condenado o projeto científico antiético do qual tinham sido cobaias, mas não lhes deram outra opção além de continuar com ele. Sem empregos, formações, ou o mínimo de apoio naquela cidade, só conseguiam se sustentar por meio da replicagem genética que faziam. Pessoas pagavam muito por um produto que potencializasse genes específicos delas, acentuando traços que desejavam. Seu sangue adulterado permitiria que Tiago, que se tornara o cientista dentre eles, selecionasse os traços responsáveis pela vida de atleta olímpico de Ricardo Omelas para que o cliente pudesse aproveitá-los. Mesmo as habilidades decorrentes mais de treino do que da biologia seriam favorecidas, em grau menor, é claro, por causa da memória epigenética.

Chegando no galpão aparentemente abandonado que usavam como casa e como base de operações, Vera encarou o painel eletrônico que destrancava a entrada, com as luzes vermelhas e verdes que agora não conseguia distinguir.

Esqueceu a senha? — Cesar zombou ao vê-la ali parada. Ele voltava de uma missão própria.

O puto era daltônico — resmungou, soando mais irritada do que realmente estava. Inconveniências assim já eram comuns.

Eu nunca entendi como características assim podem se sobressair com a gente, mesmo que só momentaneamente — ele comentou, destravando o portão, nem um pouco afetado com a frieza dela. Nenhum deles conseguia ter simpatia pelas vítimas. Não depois de terem sido abandonados após o encerramento do projeto e caçados por trabalharem com a única habilidade que tinham. O tráfico genético era mais uma consequência da negligência que sofreram após o mais mal executado dos resgates.

Nem eu. Por isso o Tiago é o doutor.

Eu acho que ele também não sabe. Só sabe manipular os códigos.

Lá dentro encontraram seus iguais. Apenas a metade estava presente, pois os contratos estavam cada vez mais numerosos. Rui estava em uma maca, sendo cuidado por Tiago e Úrsula. Ele havia levado um tiro do seu alvo atual e quase não conseguia retornar com vida. Nem sempre era fácil.

Mamãe! Papai! — Um riso esganiçado se espalhou pelo lugar quando a pequena Beatriz correu na direção deles. Vera escondeu a mão ensanguentada atrás do corpo.

Oi, minha princesa. — Cesar a abraçou, distraindo-a por tempo o bastante para que Vera se livrasse da arma.

Eles não escondiam como era seu trabalho, não queriam que ela tivesse vergonha de fazer o necessário para competir por um lugar naquele mundo. Mas por enquanto tudo não deveria passar de histórias distantes. Não tinham pressa em acabar com a inocência dela; a vida se encarregaria disso.

Talvez, se tivesse sorte, Beatriz não passaria por nada daquilo. Ela não era a única criança no lugar, e só algumas delas nasciam replicadoras também. Pelo visto, mesmo que eles fossem os pais, era difícil recriar algo feito em laboratório. Vera observou por um momento Cesar e Beatriz brincando, quase como pai e filha normais. O quase apertava seu coração. Então subiu para entregar seu sangue para Tiago.

Replicadores eram uma espécie de laboratório, estavam em extinção desde o momento em que foram tirados de lá.

O mundo preferia assim.

E, por mais que odiassem admitir, eles preferiam também.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado.
Esse conto é parte de uma antologia com vários autores. Se gosta do gênero, considere ler os outros também: https://www.amazon.com.br/dp/B0C6Y928SQ?&linkCode=sl1&tag=editoracyberu-20&linkId=0d8880f2c221f184639ab9b7f88a5df1&language=pt_BR&ref_=as_li_ss_tl&dplnkId=63fefa63-e50a-4bf0-a505-c624e5e11ab7



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