Aves de inverno cantam Segredos escrita por Shalashaska


Capítulo 4
A lua




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Ao abrir as pálpebras de manhã, Amelia tinha lembranças nos fundos dos olhos. Enquanto encarava os bordados no dossel — ainda sem decidir se eram flores, estrelas ou flocos de neve — ela refletia o quanto a sensação de acordar sem se preocupar com o horário era estranha. Salvo algumas folgas, que no fim usava para faxina ou compras, eram raras as manhãs que se permitia pensamentos inúteis logo após despertar  quando ainda morava na cidade. Imaginava que isso acontecia com pessoas que viajavam para longe nas férias. Imaginava também a tristeza pelo fim do tempo livre, um luto que vinha com o fim das férias e o retorno para a normalidade.

Doía só de pensar, tanto que o estranho conselho da senhora Clemonte nada mais era do que palavras enterradas em sua memória. Ignorava-as. Aliás, o que diabos ela quis dizer com a colina era só passagem, não destino? Talvez ela passasse tempo demais entre os livros, usando uma linguagem literária quando não era necessário — algo que Amelia se censurava por pensar, por ser um devaneio raso para quem se pretendia ser escritora. Ou talvez a bibliotecária estivesse apenas idosa e apostasse em se comunicar em meias palavras filosóficas.

No fundo, Amelia concluía que desejava ceder aos próprios caprichos, que eram sempre tão poucos. Habituara-se à tranquilidade do casarão. Não questionara a fundo as estranhezas ou fatos no mínimo incomuns, satisfeita por não ser questionada de volta. Quase podia considerar sua resistência pelo fim de sua estadia ali como uma rebeldia infantil, se ela não estivesse batalhando por tão pouco: seu próprio tempo. Portanto, não fazia sentido abrir mão disso por causa de conselhos vagos, ainda que bem intencionados; e nem pela possibilidade de resolver enigmas com os quais ela conseguia conviver.

As únicas marcações do correr dos dias eram as refeições, a ida de Alfonso ao vilarejo, os shabats de Maria, o trabalho contínuo no escritório, o frio cada vez mais intenso. Havia também um relógio cuco imenso na sala, mas ele não tocava. Só seus ponteiros andavam.

Naquele dia, assim como os outros desde a noite em que chegou na colina, Amelia saiu da cama, se vestiu, tomou o café da manhã e se pôs a organizar o amontado de material no escritório. Fazia seu serviço bem, só não depressa.

Nas horas gastas em entender os livros e documentos, Amelia sentia-se montando um quebra-cabeças. Não que ela fosse uma pessoa centrada em desvendar mistérios ou forçar seus neurônios com romances policiais, mas naturalmente ela preferia atribuir algum sentido no que estava ao seu redor, algum senso de ordem. Talvez fosse uma característica relacionada a enxergar coisas que não existiam, como motivações justas e qualidades nas pessoas. O que descobrira até então sobre o dono do escritório era intrigante: sim, provavelmente era um homem e Amelia pôde supor isso pelos pronomes que referia a si mesmo, em uma caligrafia semelhante à dos advogados pomposos com quem ela trabalhou. Parecia alguém erudito, interessado em assuntos diversos: botânica, folclore, música e Direito. Esse último tópico era discutível, pois talvez ele fosse apenas muito envolvido em negócios, propriedades e contratos. Um deles mencionava Lenora e o tal sobrenome desgastado.

O problema era que o papel do documento estava desgastado também, sem ser possível ler direito o que estava escrito. O nome do homem era Edgard. O sobrenome começava com P ou B. Era provável que fosse a certidão de casamento. Com o papel em mãos, Amelia pensou no tipo de homem que ele era, se estava morto ou se tinha partido, refletindo que teria melhor juízo sobre o caráter dele se estivesse enterrado no quintal do que se tivesse abandonado a esposa — mas isso, é claro, não teria coragem de perguntar diretamente a Lenora.

E pensar nela lhe fazia crescer um aperto no peito. 

Lenora havia despertado sua curiosidade desde o início, com suas roupas antiquadas e castiçal de prata na mão. E além disso, existia aquela impressão de semelhança com ela, algo justificado somente pelo palpite de que ambas eram — cada uma à sua maneira — solitárias. E se antes Amelia não tinha intenção de investigar a fundo, por não ser seu hábito e por medo, havia notado que mais e mais Lenora se fazia presente no casarão. 

Começou em um jantar na quinta-feira. De repente, a patroa estava com eles e se servia bem de frutas, sementes e chá. Conversou bem, comentou sobre a horta na estufa e a lenha para o inverno. E quando ausentou-se brevemente para pegar uma torta na cozinha junto com Maria, Amelia exibiu seu estranhamento para Alfonso e seu sobrinho. Só não entendeu os sinais do jardineiro.

— Ela é de lua, — Albert explicou verbalmente, repetindo o sinal para que ela aprendesse. — Tem fases. 

E aparece a noite, ela também pensou. Agora fazia sentido Lenora abrir a porta naquela primeira noite — e não seus funcionários — ou não ser muito vista durante o dia. Deveria ter problemas com insônia ou então era uma criatura noturna. 

O fato é que bastava a luz do Sol se esvair para uma ansiedade teimosa se apossar do coração de Amelia e ela entendia exatamente a razão. Era a expectativa açucarada de ouvir mais a voz dela, de imaginar se ela cantava quando trabalhava com música, de tentar explicar que não tinha encontrado a composição que ela desejava, por mais que não tivesse intenção verdadeira de encerrar seu trabalho tão cedo. Portanto, nada mais sensato do que encurtar seu tempo com Lenora, passando mais horas no escritório. Escrevia também, naquele seu caderno velho.

A estratégia parecia funcionar… Até certa noite, em que ela não desceu as escadarias para a janta. Respondeu à Maria que se alimentaria mais tarde com o que tivesse na cozinha, talvez apenas comesse o pão de grãos.

Foi o que fez. Mas quando voltou para o escritório para pegar suas coisas e apagar as velas, Lenora estava lá, sua figura elegante entrecortada pela iluminação quente. E, pelo pequeno pulo que ela deu, Amelia concluiu que tanto ela própria tinha sido flagrada tarde da noite quanto tinha flagrado sua patroa fazendo algo questionável. O estômago de Amelia afundou ao perceber o que era:

Lenora estava com seu caderno em mãos.

— Eu li sem intenção. — Colocou de volta o caderno sobre a mesa, sustentando uma expressão que Amelia entendia como culpa, mas não arrependimento. De pé, ela se aproximou e se pôs a explicar, enquanto estranhamente carregava um casaco grosso no antebraço. — Não reconheci o caderno entre as outras coisas do escritório. Pensei que tivesse encontrado algo. E eu só vim lhe entregar mais roupas para o frio dos próximos dias.

Amelia engoliu seco. 

— Entendi. 

— Me desculpe. Por favor, não se iniba com minha intromissão. Você é uma escritora muito boa. — Apontou o caderno. — É lindo.

E como Amelia podia deixar de acreditar em Lenora? Parte de si ansiava sempre em agradar, isso era fato. E lhe doía de um jeito melancólico saber que havia, enfim, agradado alguém sendo ela própria, singela e vulnerável. Ali, em sua letra pequena e redonda, ela falou sobre alguém adorável e um coração partido; sobre um mundo que se recusava a entender ou aceitar o seu amor só porque partilhavam nomes atribuídos ao mesmo gênero. 

Disse tudo isso sem falar nada, só escrevendo. E alguém compreendeu e achou lindo.

— Você acha mesmo?

— Posso não ser uma especialista em palavras, mas sei reconhecer quando algo tem sentimento honesto. — Uma pausa na noite e o vento lá fora também segurou a respiração. — Quem é Ligeia?

A ferida no coração de Amelia abriu-se de novo, de repente e com força: um talho que voltava a verter. Era um nome que deveria ser somente literário em sua memória, mas não era. Uma lágrima dolorida que subiu até as bordas dos seus olhos foi o suficiente para revelar tudo.

— Você a amava? 

Sim. Mas não foi o suficiente porque…

Sua voz entalou-se na garganta. Amelia lembrou-se de repente das duas crianças e do pássaro, sentindo-se estúpida e impotente por ter caído de olhos abertos numa armadilha que chamou de amor. Não conseguiu se explicar, nem disse mais nada. Mas Lenora aproximou-se e colocou o casaco em seus ombros, um tecido azul, quente e num modelo antiquado.

— Vamos dar uma volta.

Depois de Amelia pegar seu caderno e as duas apagarem as velas do escritório, Amelia passou a contar o que aconteceu, de repente cansada de colocar grades na própria língua. Contou como ela e Ligeia se conheceram no trabalho. Quando se beijaram, mesmo que nenhuma delas tivesse visto isso ainda no cinema ou em qualquer história no rádio. Mas elas sabiam que não eram as únicas. Nunca foram.

Só que Ligeia não lutaria por aquele amor, nem mesmo silenciosamente como tantas outras lutavam. Afinal, Ligeia não amava Amelia. E antes que as fofocas se espalhassem, a versão de Ligeia era que Amelia havia sido uma jovem indecente, indecorosa e patética. Afinal, Ligeia havia acabado de ficar noiva de um dos advogados. Que razão teria de se sujeitar a tamanha obscenidade? Amelia não tinha nada e era uma ninguém. Essa foi a história oficial dos fatos, em alto e bom som, motivo de sua demissão inclusive. A única prova que Amelia tinha sobre o contrário era o seu amor e isso não provava coisa alguma. A verdade era um segredo. E agora, não dizia nada. 

Amelia e Lenora passearam do lado de fora. Mesmo que o vento tivesse esfriado suas lágrimas nas bochechas, Amelia não se sentiu gélida. O casaco lhe servia bem. E, enquanto Lenora escutava e comentava suavemente, Amelia reparava que, de fato, não havia mais sons entre a vegetação. Só o som de seu próprio coração martelando no peito, na dúvida se Lenora tinha lido páginas adiante, sobre alguém que ardia por outra pessoa que agora lhe evocava metáforas sobre a lua.


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