Sobrevivência escrita por Dani Tsubasa


Capítulo 1
Capítulo único - Sobrevivência




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Sobrevivência

De Dani Tsubasa

— Não acredito que fez mesmo isso.

Xavier sorriu.

— Uma frase sarcástica positiva... Devo considerar isso uma evolução?

— No máximo neutra, e não abuse da minha boa vontade.

O garoto voltou a sorrir. Wandinha não olhou para ele ou respondeu, mas era visível que ela estava menos tensa que em outras vezes que se encontraram. E essa era a primeira depois de Nunca Mais. Xavier esperava que ela fosse mais hostil, desde que seu último encontro não dera em coisa boa, e foi por esse mesmo motivo que ele sugeriu que se encontrassem em um lugar diferente de uma cafeteria. Foi difícil encontrar uma sorveteria na cidade que não fosse extremamente colorida e fizesse Wandinha surtar, mas ele conseguiu. De qualquer forma, ela parecia não se importar mais tanto assim com o incômodo trazido por cores e sentimentos. Ele fora um dos que se comoveu a vendo abraçar Enid ao fim da batalha, apesar de sempre clamar que não gostava de abraços e que demonstrações de afeto eram sinal de fraqueza. Ele também esperava encontra-la vestida completamente de preto hoje, mas Wandinha usava seu suéter listrado de preto e branco com um pequeno laço negro no peito, calça e sapatos pretos.

— Sua alergia a cores diminuiu? – Ele se arriscou a perguntar, pois ela não tinha reclamado de receber um copo de sorvete azul cobalto.

— Acho que meu organismo criou certa resistência depois do incidente ao fim da batalha e meses de convivência com a Enid.

— Evoluir é bom, não acha?

Wandinha apenas o olhou, com sua costumeira inexpressão. Ela tinha aceitado encontrá-lo após decidir lhe contar sobre o stalker, e Xavier usou isso, e uma passagem pelo centro da cidade para renovar seu estoque de pintura, como desculpa para vê-la. Ainda não tinha conseguido convencê-la a ligar para ele, mas estava feliz que ela escrevesse.

— Não interprete esse encontro como uma tentativa minha de correr chorando pra alguém por medo de um perseguidor.

— Eu nunca faria isso. Sei como você é, e que talvez esteja até curtindo. Mas sabe... Já que tocou no assunto. Concordo com você que lágrimas não resolvem nada, mas são... Uma questão de sobrevivência, e às vezes de manutenção da sanidade. Sabia que pesquisas apontam que se sentirmos emoções muito fortes por mais de dois ou três anos nosso corpo não suporta e entra em colapso? Meio que é a mesma coisa.

— Claramente essa pesquisa é falha, ou meus pais já estariam mortos.

Xavier riu.

— Me desculpa, eu não consegui evitar. Mas como eu dizia, é um jeito das pessoas de colocar a dor pra fora, uma forma inconsciente de sobreviver. E geralmente isso acontece quando você se importa muito. Mesmo não mudando as coisas, te ajuda a sobreviver a elas.

O olhar de Wandinha ficou momentaneamente distante, e ele sabia do que provavelmente ela estava lembrando. Talvez sua aversão à choro fosse uma forma de negar as lembranças do acontecimento fatal em sua infância e não apenas porque não resolvia nada, mas não diria isso a ela agora, não queria arriscar que ela decidisse encerrar a conversa. Xavier refletiu se seus olhos não lhe pregavam uma peça ao desconfiar que por uma mínima fração de segundo os olhos escuros da menina a sua frente ficaram tristes, mas logo a costumeira frieza estava de volta. O sorvete havia acabado minutos atrás, então não podia ser usado como pretexto para seu silêncio, mas Wandinha ficou algum tempo sem dizer nada mesmo assim.

— Seu ponto de vista é interessante – ela finalmente comentou.

— Obrigado – ele sorriu, não prolongando o assunto, não querendo derrubar esse delicado pequeno passo.

— Talvez seja uma reação química do corpo à situações desesperadoras – ela disse ao se lembrar de como chorou ao quase perder Mãozinha, não muito tempo atrás.

— É, isso também.

— Suas atitudes ainda me intrigam após todas as minhas falhas. Você deveria me punir por isso. Ou demonstrar seu ressentimento por mim com mais determinação.

Xavier sentiu algo se agitar em seu coração.

— Wandinha... Eu não... Tá, uma parte de mim ainda tá meio chateada com tudo que passou. Mas você ainda é humana, e comete erros como qualquer pessoa.

— Eu odeio cometer erros.

— Todo mundo odeia.

Ela o encarou mais uma vez.

— Como eu já disse, ser seu amigo devia vir com um aviso, mas você se redimiu. Eu podia tá morto agora. A flecha acertou seu ombro. Se olhar nossa diferença de altura podia ter acertado meu coração. Sou grato por isso, e me importo com você. Você costuma dizer que não gosta da confusão que sente com algumas emoções, mas é assim mesmo. Até entender, qualquer pessoa fica meio perturbada a respeito.

— Por que se importa comigo?

— Eu não sei. E é por isso que emoções são confusas, elas não precisam de motivo, só precisam acontecer.

— Por qual razão?

— Eu não sei. Acho que ninguém sabe. Só acontece.

Um breve silêncio ficou entre os dois.

— Não se chateia por eu dizer isso, mas diz adorar tortura, e não consegue lidar com a tortura de sentir emoções...

— É uma tortura que não compreendo, e isso me incomoda.

— Às vezes você só tem que deixar a neve cair.

A expressão de Wandinha deixou claro que ela não tinha entendido a referência.

— Tem um filme inspirado num livro de natal que os padrões criaram. Não é a história mais complexa do mundo, mas até que é bonita.

— É consumidor desse tipo de material padrão?

— Não com frequência, mas às vezes fico curioso com algo.

— Seria uma morte lenta e torturante ver isso.

— Dessa você ia gostar?

— Provavelmente.

Ele riu.

— Sobre o assunto principal do nosso encontro, você tem alguma suspeita de quem seja?

— O primeiro suspeito óbvio seria você, mas acho que seria muita estupidez da sua parte estar aqui agora depois de tudo que aconteceu, então talvez alguém que intermediou a compra desse aparelho pra você tenha algo a ver com isso.

— Eu agradeço – Xavier respondeu, com ironia e felicidade - Não sei como o vendedor teria a ver se provavelmente nem te conhece.

— Pode haver mais de um metamorfo nesse jogo. Quando você me deu o celular não havia ninguém estranho por perto, mas alguém ainda tirou aquela foto.

— Podemos ter nos distraído e não termos percebido quem tava passando ao lado e lá embaixo. E como ninguém perceberia?

— Eu acho que Tyler e Thornhill eram apenas peões de um jogo maior. Até parentes dos nossos amigos podem ser vilões escondidos nas sombras.

— Você admite que tem amigos agora? – Xavier voltou a sorrir, e por mais que a irritasse, Wandinha estava começando a achá-lo bonito assim.

Sem resposta, mas Xavier tomou a falta de qualquer atitude hostil dela como um sim.

— Seja quem for, pode estar nos observando e nos fotografando agora.

— É, isso é verdade – Xavier falou mais baixo, parecendo preocupado – A Thornhill tentou atirar em você. Foi muita sorte Eugene chegar bem na hora, mas ele não está por perto sempre. Não acho que você pediria ajuda à polícia de novo, especialmente depois de tudo que houve, mas fique atenta, por favor.

Wandinha olhou para a mão dele que se estendera na direção da sua, parando a milímetros de tocá-la. Vozes brigaram na sua cabeça entre se questionar sobre ele temer que ela tivesse alguma visão a seu respeito ou estar respeitando seu espaço. Tudo que Tyler fez vinha a seus pensamentos nessas horas, mas Xavier nunca gostou dele, e dada sua insistência em se aproximar dela e tudo que ele tinha feito desde a batalha, ela não acreditava que precisasse teme-lo. Sim, estava tentando se redimir. Mas não sabia bem como fazê-lo.

— Você consideraria uma tortura se eu segurasse sua mão agora? – Xavier perguntou.

— Certamente. Assim você teria uma vingança.

Ele riu.

— Não é minha intenção, mas... Se você diz.

Deveria contar a ele que além de ver, estava começando a sentir o que as pessoas de suas visões sentiam, e como isso era perturbador, às vezes de um jeito bom, às vezes de um ruim? Não, ainda não. Devagar, Wandinha Addams. Você cometeu erros e perdeu pistas reais por ir rápido demais e não olhar o entorno com clareza.

— Então eu posso?

Era uma vingança. Por que ele tinha que pedir por isso?

— Não entendo porque pede.

— É pra te torturar melhor – Xavier riu ironicamente, e gargalhou quando Wandinha revirou os olhos ao reconhecer a história infantil padrão.

— Acabe logo com isso.

— Isso vai fazer você se sentir melhor? Quero dizer... Por eu me vingar de você.

— É só o que é justo.

Xavier sorriu. Como Wandinha estava suportando tão bem estar num encontro com um cara tão doce e que vestia roupas coloridas, apesar das cores serem incrivelmente mais discretas que as usadas por Enid, era um mistério para ela própria. Não se importava de estar em torno de outras pessoas até seu escorpião ser morto e por um tempo depois, mas então tudo isso se tornou estranho para ela. Ela já era estranha, sendo uma Addams, todos eles eram, e muito, mas podia se lembrar de estar se divertindo tentando ensinar Tropeço a dançar quando tinha seis anos de idade, e aceitar com gratidão o colo de sua mãe por dias após a morte de seu amado escorpião, enquanto a amargura ainda não tinha se infiltrado em sua alma e feito uma alquimia sombria com sua excentricidade natural. E esse fora um de seus primeiros delitos mais graves, se vingar dos assassinos, pouco depois de seu aniversário de sete anos. Todas as bicicletas danificadas, todos eles acidentalmente tendo voado para dentro do lago, o principal autor do crime até tinha quebrado o braço, e Wandinha sorriu ao vê-lo desesperado por não poder nadar após sua emboscada. Naquela época ela ainda não era tão ousada quanto em sua vingança por Feioso antes de Nunca Mais.

Seu longo devaneio foi interrompido pela sensação incomum de calor envolvendo sua mão esquerda, e viu a mão de Xavier, bem maior que a dela, segurando-a com delicadeza. O alarme anti-proximidade soou alto dentro dela, mas não fez nada a respeito. Essa era uma tortura nova, e ela queria saber o resultado. Olhando de canto de olho para Xavier, o viu perdido em algum pensamento que ela não conseguia imaginar, mas ele parecia aliviado, em paz, feliz. Seria o prazer da vingança?

Wandinha também percebeu a respiração dele descompassar um pouco, e a mão dele apertou a sua um pouco mais forte. Sem entender porque, ela sentiu seu próprio coração ficar mais rápido, também alterando um pouco sua respiração. E um pensamento cortou sua tentativa de raciocínio. Ela tinha beijado Tyler, e o pior, por sua própria vontade, embora estivesse apenas testando, querendo saber aonde aquilo levaria, buscando a compreensão de porque as pessoas valorizavam tanto o contato físico. Depois disso... Por que não segurar a mão de Xavier? Ela conseguia acreditar nele agora, ao contrário de Tyler. De onde isso veio? Outra parte de sua mente questionou. E aqui estava a tortura que ela não gostava, a que não conseguia compreender. E em sua concepção, Xavier tinha finalmente uma pequena vingança.

Seu coração disparou quando outra sensação física inesperada a atingiu, e voltou ao foco para ver que Xavier se arriscara a beijar sua mão, em seguida soltando-a com cuidado e deixando-a ir. Isso também disparou um gatilho, do que tinha acontecido na cafeteria em Jericó. Mas nada estava acontecendo agora, nenhuma visão estranha que incriminasse Xavier ou a fizesse entender algo errado sobre ele, apenas sensações que lhe eram incomuns e confusas.

— Me desculpa – ele disse, parecendo um pouco atordoado – O combinado era te torturar uma vez, não duas – ele sorriu.

— Eu mereci isso.

— Então se sente torturada? – Ele brincou.

— Da forma que não gosto. Porque não consigo entender direito o que aconteceu.

— É totalmente normal. Qualquer coisa nova ou que não temos contato há muito tempo traz essa sensação. Eu garanto que você não vai morrer de desgosto se abraçar ou segurar a mão de alguém de vez em quando, ou até mais quem sabe? Mas espera... Morrer de desgosto é a sua praia, não é? – Ele se questionou confuso.

Xavier sentiu o coração apertar, de um jeito bom, ao ver a sugestão de um sorriso no canto dos lábios dela, embora Wandinha não olhasse para ele. Isso era um grande passo.

Ele esperou que os dois deixassem a sorveteria e estivessem no terreno seguro, ao menos para ela, da residência dos Addams para ir mais além. Felizmente a família respeitava que Xavier tivesse uma forma de viver diferente e nunca tentara aterrorizá-lo com alguma bizarrice como acontecera com alguns visitantes e vizinhos no passado. Afinal, eles eram quase parentes, devido a imensa amizade de suas avós, que durara até à morte, e principalmente Mortícia respeitava muito isso.

— Eu fiz uma coisa pra você – ele disse.

Xavier tirou da mochila um de seus desenhos preso numa prancheta. Os rabiscos mostravam apenas um plano de fundo parecido com o primeiro desenho que ela vira dele, o da aranha. Wandinha o questionou com o olhar, e os dois pararam de andar no ponto em que estavam do jardim, bem onde ficava o cemitério pessoal da família.

— Eu não quis desenhar antes porque não sabia se você gostaria ou não, e não queria que tivesse uma visão e entendesse algo errado sobre mim. Você precisa melhorar um pouquinho seu entendimento sobre pessoas.

— Eu sei. Mas do que isso se trata? Se vai me causar tristeza ou raiva, provavelmente vou gostar.

O olhar de Xavier demonstrou que ele tinha sérias dúvidas sobre isso.

— Vá em frente – Wandinha pediu, e ele pegou um lápis ao receber a prancheta de volta, começando a rabiscar algo sobre a parte já preenchida da folha.

Levou alguns minutos até que ele a deixasse ver, e os olhos de Wandinha se arregalaram quando ela pegou o desenho.

— Eu sonhei com ele ontem. E com uma garotinha que o amava muito.

Xavier mal acreditou no que estava acontecendo diante dele. Wandinha Addams estava à beira das lágrimas, lutando contra isso, mas estava. E nossa! Como ela aguentava não piscar nem assim? Quando o desenho ganhou vida ao ser tocado por Xavier e o escorpião caminhou pacificamente pelo braço da amiga foi a primeira vez que ele a viu piscar em muito, muito tempo. Wandinha estendeu a mão livre para tocar o animal, por mais que soubesse que ele era uma ilusão. Xavier deixou que o momento durasse, e sorriu ao ver a Addams brincar com o aracnídeo, que lentamente retornou pelo outro braço de Wandinha até a folha onde fora desenhado, e ali se tornou um com ela novamente. Xavier costumava deixar seus desenhos vivos serem levados pelo vento, mas não esse, esse era um presente importante, esse devia durar, a menos que Wandinha não o quisesse. E quando tirou os olhos de sua obra de arte para vê-la, a menina estava secando uma lágrima que não conseguira impedir de escapar, e claramente perturbada e confusa com isso.

— Você me fez quebrar minha promessa. Que estupidez.

— Mas eu só queria te dar uma lembrança que te deixasse feliz. Eu não esperava por isso. Me desculpa.

Wandinha não respondeu, ela estava fora de órbita olhando para uma lápide minúscula no chão, e o escorpião esculpido ali tornava impossível não saber a quem pertencia.

— Sabe... Um dia você morreu aqui – Xavier disse – Talvez agora você esteja morrendo de novo – Wandinha o olhou – E tá tudo bem. Todo mundo morre muitas vezes durante a vida, e começa de novo, com uma força diferente.

Wandinha ficou um longo tempo em silêncio olhando do desenho para a lápide de Nero, e por fim se sentou no chão em frente ao local, ainda segurando o desenho nas mãos. Xavier lhe deu seu tempo, esperando para enfim se sentar ao seu lado, e feliz por ela não dar sinais de que não o queria ali.

— Eles me seguraram e me obrigaram a assistir. Eu passei dias com a esperança patética de que ele fosse voltar, mas chorar e desejar não resolveu nada. Foi a única vez em que odiei ter pesadelos por semanas.

— Eu sinto muito, Wandinha... Mas não é patético ter esperança. É muito difícil viver sem ela. Era seu amor por ele se mostrando de outra forma. Já pensou que sua obsessão por desvendar o mistério em Nunca Mais era a sua esperança pra sobreviver ali?

Xavier se sentiu satisfeito ao ouvir um pequeno riso dela, mesmo que irônico, o que era raríssimo.

— Sempre achei vários artistas patéticos quando divagavam sobre a vida assim. Isso os faz parecer mais perdidos que qualquer outra pessoa. Mas você diz coisas interessantes.

Xavier sorriu.

— Fico feliz que ache isso.

— Eu me vinguei alguns meses depois – ela falou antes dele expressar a vontade de surrar ele mesmo os agressores.

— Que nem na sua penúltima escola?

— Não fui tão longe. Essa foi minha iniciação. Eu os segui por dias e descobri que costumavam fazer uma trilha de bicicleta num horário específico. Coloquei armadilhas e todos saíram voando pra dentro do lago. O principal assassino quebrou o braço e quase se afogou enquanto os outros entravam em pânico. As bicicletas ficaram danificadas com as facas que usei na armadilha que os pegou.

— As outras falharam?

— Erros de cálculo de principiante. Depois tio Chico me ensinou como fazer do jeito certo.

— Eu quebraria a cara deles por você. Sei que você não precisa e que não gosta de ouvir isso porque faz parecer que você é vulnerável, mas... Seria um impulso.

Por alguns instantes Wandinha o olhou em silêncio com uma expressão que ele não sabia decifrar. A marca das lágrimas ainda estava em seus olhos, embora ela tivesse recuperado a compostura de frieza.

— Nem sempre você ou qualquer pessoa está por perto. E por que depender sempre dos outros? Isso também é como morrer, do jeito ruim.

— Eu tenho que concordar com você agora. Mas é isso que amigos fazem. Não importa o que somos ou quem, só o elo. Nenhum acima do outro. Já pensou que isso que você considera tanto como ponto fraco pode ser o contrário se olhar de outro ângulo?

— De novo muito ousado.

— Pensa sobre isso quando tiver sem nada pra fazer – Xavier sorriu.

A sombra de um sorriso brincou no canto dos lábios da garota gótica.

— Essa é a conversa mais longa que você já teve comigo, incluindo as mensagens.

— Não tinha nada melhor pra fazer hoje.

Xavier riu.

— Nada pra escrever?

— Por enquanto estou apenas apreciando a finalização da minha última obra, e refletindo sobre a próxima.

— Devia tentar publicar. Eu adoraria ler.

Os dois entraram em mais um momento de silêncio. Nem sempre ele conseguia entender o que estava se passando quando isso acontecia, mas assim era conviver com Wandinha Addams, e só de ficar tão perto e falar tanto com ela sem ser morto, ou seriamente ameaçado ou ferido, já poderia ser considerado um privilégio ou um grande milagre. Em parte, Xavier sentia que até hoje ela vinha tentando se redimir com ele por erroneamente tê-lo levado à cadeia, mesmo que Wandinha não dissesse isso em voz alta. Ele queria ser muito mais que um amigo se um dia ela lhe permitisse, apesar de tudo que aconteceu. Ela tinha aceitado Tyler, que ele sempre desconfiou ser um canalha, e com razão, a própria Wandinha percebeu isso depois, mesmo que tarde demais. Mas Xavier ainda se sentiria grato se a aceitação da Addams com ele o levasse a apenas um pedido silencioso de desculpas. Por algum motivo, não conseguia odiá-la pelo que passou.

— Me desculpe pela Rave’N – ela quebrou o silêncio – Eu ia à floresta com Eugene naquela noite, investigar a caverna do Hyde, mas Mãozinha me fez o favor de mandar um falso bilhete pra Tyler convidando-o em meu nome, e eu só descobri isso quando estava indo ao encontro de Eugene e ele apareceu. Não tive muito como fugir, e achei que poderia encontrar pistas naquela festa idiota também. Pedi que Eugene não fosse sozinho, mas ele foi. Depois fiquei me perguntando se até o que Mãozinha fez não teve um dedo de Tyler ou Thornhill. Se tivessem visto Eugene podiam tê-lo matado. No fim das contas não descobri nada útil lá e muitos ficaram infelizes ao fim daquela noite, incluindo você. Eu lhe devo desculpas. E obrigada pelo desenho. Vou emoldurá-lo com a melhor madeira de caixão que eu encontrar disponível.

Xavier ficou um tempo sem ação, dividido entre ficar surpreso por ela se abrir com ele e falar tanto, revelar detalhes que ele ainda desconhecia, e rir do último comentário. Era mesmo a cara dela fazer isso.

— Ele vai sair andando e desaparecer em algum momento?

— Não. Meu poder não funciona assim, só se eu quiser. Normalmente eu deixo que os desenhos se dissolvam no ar, assim posso aproveitar o rascunho mais algumas vezes, mas posso só deixá-los no papel ou fazê-los voltar se eu quiser. Os únicos que não consigo controlar são os que vem de pesadelos que me abalaram muito, descobri isso de um jeito ruim como você pode se lembrar, então... Evito desenhar pesadelos desde que aquilo aconteceu. E eu agradeço por você me contar tudo isso.

Wandinha olhou para o ponto em seu pescoço onde ele ainda tinha cicatrizes leves, agora curadas e quase invisíveis vistas de longe, dos arranhões que seu desenho do Hyde fizera com ele.

— Bom mesmo. Aquela escola fica menos chata com seus desenhos vivos.

— Só meus desenhos? – Ele sorriu.

Wandinha não respondeu, mas ele tinha entendido. Ele não queria que ela mudasse, só que deixasse as pessoas que a amavam e admiravam chegarem perto sem que ela as considerasse ameaças. Não sabia se ia acontecer um dia, mas tinha sido um grande progresso hoje.

— Você está bem? – Xavier perguntou – Ou quer me dar um olho roxo por eu ter perguntando? – Ele brincou, deixando claro que se referia à lápide à frente deles.

— Entro de penetra em funerais desde que tinha idade suficiente. Esse foi o único que eu odiei. Talvez...

— Talvez o que?

— Eu ainda não sei.

— Não precisa saber agora.

Wandinha se levantou e ele fez o mesmo.

— Obrigada pela visita, Xavier – ela disse ao perceber os primeiros sinais do entardecer.

— Tá me expulsando?

— Não abuse da sorte que você teve até agora. E você não suportaria os meus pais caso entrássemos.

Ele riu

— Vai saber? Não tenho referência pra isso. Não sei muito como pais devem ou não parecer, seria interessante. Mas tá mesmo ficando tarde. E sabe... Podíamos nos encontrar de novo depois, chamar nossos amigos, ainda tem um tempo pra o fim das férias.

— Não é você mesmo que me disse pra ser cautelosa com o stalker?

— Sim, mas acho que ainda vale a pena tentar viver alguns bons momentos.

Aqui estava mais um ponto para Wandinha refletir a respeito: Como alguém conseguia ser tão feliz e otimista num mundo tão perverso e instável? Todos os artistas eram assim?

Nesse momento os dois foram interrompidos por Mãozinha, que surgiu no ombro de Wandinha e cumprimentou o rapaz.

— E aí, Mãozinha? – Xavier sorriu e cumprimentou o amigo com um soquinho – Eu já vou indo. Continuamos nossa conversa sobre o stalker por mensagem mais tarde? – Se virou para perguntar quando já caminhava pra fora do território dos Addams.

— Adeus, Xavier.

Ele sorriu e se virou, continuando a caminhar até que Wandinha não pudesse mais vê-lo. Mãozinha gesticulou alguma coisa para a amiga de infância.

— Isso prova que além de péssimo com bisturis, você é péssimo com pretendentes.

Mãozinha protestou, se defendendo com mais linguagem silenciosa.

— Ele não é melhor que o Tyler, ele é uma boa pessoa, coisa que Tyler provou não ser.

Mãozinha continuou gesticulando enquanto elogiava o desenho que a garota segurava e os dois caminhavam para dentro.

— Eu gostaria de não quebrar nenhum dos seus dedos. Você é uma ajuda preciosa.

Ele se acalmou no ombro de Wandinha, parecendo surpreso e lisonjeado com o elogio. Entrando em casa, ela se deparou com o pior cenário possível, seus pais a olhando com expectativa.

— Ele te tratou bem, minha nuvenzinha escura? – Gomez perguntou, apenas recebendo um olhar indignado da filha.

— Você e Xavier se encontraram pouco desde que se conheceram quando crianças, mas ele sempre foi um garoto adorável – Mortícia falou – Convide-o pra entrar da próxima vez.

Wandinha revirou os olhos e caminhou em direção às escadas para se isolar em seu quarto antes que enlouquecesse, do jeito ruim.

— Não se atreva – ela disse a seu irmão, que fez menção de abrir a boca quando passou por ela no andar de cima, provavelmente querendo saber o que havia acabado de acontecer.

Feioso assentiu e desceu as escadas. Já em seu quarto, Wandinha passou um longo tempo sentada em sua cama observando o desenho de Nero feito por Xavier. A precisão de suas visões em sonhos era esplêndida, e como ele conseguia se lembrar depois.

                Mãozinha ficou ao seu lado em silêncio, observando-a ou esperando alguma palavra. O ser quase invisível sempre tinha cuidado dela e de seu irmão, mas os dois nunca tinham sido tão próximos até Nunca Mais, e arriscaria dizer que ele era quem ela mais conseguia confiar agora.

                - Talvez seja hora de deixá-lo ir, embora eu nunca vá esquecê-lo, especialmente agora.

                Mãozinha cobriu sua mão, e antigamente Wandinha o teria insultado, mas resistiu ao impulso. O amigo a soltou ao provavelmente se lembrar disso, mas a garota o olhou pensativa, e dessa vez foi ela a estender o dedo mindinho para ele, o qual Mãozinha entrelaçou com gratidão. Talvez... Talvez ela fosse gostar de ter alguns amigos de Nunca Mais por perto fora do período de aulas de vez em quando.


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Notas finais do capítulo

Essa história já tem uma continuação, mas ainda preciso revisar e traduzir, pois publico em inglês simultaneamente (nos dois idiomas apenas no AO3).



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