Let It Snow escrita por Haru


Capítulo 1
Let It Snow




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— Let It Snow

A noite, com seu pontilhado manto escuro, caiu rápida sobre o Reino de Órion, após um frio entardecer. Era mais um vinte e cinco de dezembro para os moradores do pacato Lar das Gaivotas. Um feriado amado por muitos, como se podia observar. Incontáveis casas, lojas, postes de luz e até mesmo arbustos foram ornamentados por ornadores voluntários, movidos pelo espírito daquela linda data festiva. 

Comovida pelo alegre estado de ânimo dos moradores, a natureza impelia o clima a fazer chover finas fatias de neve pelas ruas, pelos telhados e pelas folhas das árvores. Formara-se um tempo inofensivo, que não só não obrigava as pessoas a fecharem-se em casa, como redobrava a beleza da paisagem. As cores dos enfeites, a da neve e a da lua, que exibia-se inteira e resplandecente pós banhar-se no oceano, criavam uma paleta espetacular mesmo para os olhos mais tristes. 

A dor não era um sentimento escasso ali no reino, apesar dos risos predominarem. A casa mais conhecida de Órion estava relativamente cheia. Não tanto quanto esteve no passado, porém. Sua fachada cor amarela clara foi muito bem enfeitada, o assoalho de madeira que antecedia a porta de entrada foi forrado com um carpete rubro e o teto, como o dos vizinhos, embranquecido pelos flocos congelados que vinham do céu. 

No interior, os heróis conversavam sobre os eventos das últimas semanas. Riam quando o assunto eram as poucas e boas das quais escaparam. Os sofás foram ajeitados em torno da mesa de vidro que puseram no centro da sala, na qual colocavam e da qual pegavam de volta os copos cheios de refrigerante. Em seus rostos, refletiam-se as luzes do pisca-pisca da árvore natalina armada próxima da escada. A explosão de gargalhadas provocada pela fala de Yue foi sucedida por alguns breves minutos de silêncio.

— Nós duas crescemos juntas. Eu e a minha irmã. — Explicou-se, secando com o dedo mindinho a lágrima que ameaçou descer seu níveo rosto. Reclinou-se na poltrona marrom clara. — Ah, não acredito que ela se foi. 

Sora bebeu num só gole o resto do guaraná que estava em seu copo e, mirando-a com seus puxados olhos castanhos claros, tentou confortá-la:

— Pelo menos vocês cresceram juntas.

Naomi achou o comentário insensível, e então exclamou, em repreensão:

— Sora! 

— Que é? — Retrucou, voltando-se para a morena de sotaque francês. Naomi tinha longos cabelos negros, lisos, olhos tão escuros quanto o céu quando o sol e as outras estrelas estão longe, mas, por outro lado, uma pele clara como a lua sói ser naquela data do ano. Nunca mexia na cabeleira, naquele dia, entretanto, permitiu que Kin e Yue trançassem algumas das mechas dele. — Eu cresci na pocilga subterrânea do Kikuchi, cercado de crianças escravas como eu. Todos nos odiávamos e só queríamos matar uns aos outros. Nunca dormia com a certeza de que ninguém me mataria no meio da noite, eu... Pensando bem, aquilo lá era irado. Por que eu me aliei a vocês?

Yue riu e o derrubou do braço da poltrona com um empurrão. Aprendeu a conviver com seu humor ácido e até a gostar dele. Fora que, se estava viva, era graças a Sora. Depois que ele fez parte da comitiva que a salvou, ela passou a enxergar bondade nele e a desejar sua amizade. Ao lado de Naomi, no porta retratos acima da mesinha de madeira, viu uma foto de todos juntos, e nela estava também Haru. 

Haru era o mais jovem integrante daquele notável grupo de amigos. Irmão mais novo de Kin, deixou a Terra após frustrar-se consigo mesmo, por pensar que nada fez pela irmã e por Yue no combate que quase tirou-as dele. Prometeu retornar, mas retornar mais poderoso, invencível. Claro que nenhuma das duas gostou daquilo. Ele, no entanto, era teimoso, e quando metia uma ideia na cabeça, seus ouvidos se ensurdeciam a todas as falas contrárias. 

Foi embora, apesar dos rogos da irmã de sangue e dos da irmã de consideração. Apesar de ouvir delas que elas precisavam dele, de vê-las chorar. Deu-lhes as costas. Yue se sentia traída. Na hora que mais precisou dele, ele partiu. Sabia que Kin, ainda que não dissesse, e se fizesse de forte, sentia o mesmo. Kin foi mãe e irmã dele, pois os dois perderam os pais quando muito novos. Haru nem mesmo conheceu-os.

Sora acompanhou Haru na primeira semana da jornada dele pelo universo, retornando para o planeta depois de brigar com o garoto. Brigaram, porque Sora disse a ele exatamente o que disse para Naomi e para Yue ali naquela noite: que ele teve sorte de crescer com alguém que o amava. Para Haru, todavia, acrescentou "e você está jogando tudo pro alto a troco de nada". Essa parte manteve oculta das amigas, é claro.

 Naomi voltou os olhos para o teto e, para Kin e Arashi escutarem, falou bem alto:

— Eu vou subir aí, Kin! Espero que vocês estejam vestidos, tá?

Os dois estavam num dos quartos do segundo andar. Escutaram tudo o que ela disse, palavra por palavra. E caíram na risada. Deitaram-se na cama, que ficava do lado para a única janela do aposento. Esparramados em lados diferentes do estofado, de modo que os pés dela ficaram sobre o peito dele e que ele, com a mente vazia, massageava-os. Fincaram os olhos em pontos próximos do teto. Os dele, azuis como o céu num amanhecer ensolarado, desvendavam uma mancha informe. Os dela, pretos e misteriosos, davam voltas pela delicada arquitetura.

Algo aconteceu naquela tarde e derreteu o coração de Kin. Os pais adotivos de Saori, irmã mais nova de Arashi, deixaram-na vê-lo, depois de um ano. Haviam proibido por causa do perigo que sabiam que rondava quem quer que tivesse contato com um retalhador famoso como ele. Arashi não protestou. Eles estavam certos. Queria se afastar dela definitivamente há muito tempo, só não encontrava coragem para chegar a tanto. No fundo, agradecia-os por isso. A amavam e cuidavam bem dela, não podia querer mais deles. 

 Kin olhava para face acastanhada dele e se contagiava com a felicidade que via nela. Depois de tudo o que aconteceu nos meses anteriores, não imaginou que voltaria a vê-lo assim tão cedo. Evitou falar sobre a causa, porém. Ajeitou os compridos cabelos loiros e encaracolados e ficou quieta admirando-o.

Sempre observador, Arashi devolveu o olhar. Seus olhos foram de encontro. Kin sorriu. Encarou aquilo como um desafio: perderia aquele que desviasse o olhar primeiro. E Kin era conhecida por ser competitiva. Cinco minutos disseram adeus e nenhum dos dois fitou outro canto do quarto. A retalhadora semicerrou as vistas. O guerreiro glacial encrespou as sobrancelhas. Como ela, apoiou o cotovelo no colchão e o rosto na mão. Decidiu trapacear: moveu o dedo indicador da outra mão e convidou alguns ventos para entrarem no quarto, fazendo-a voltar os olhos para a janela. 

— Perdeu. Desculpa, K. — Anunciou, chamando-a pelo apelido que ela menos gostava.

— Você trapaceou! "Desculpa, K"! — Redarguiu, acertando a cara dele com o travesseiro. — Eu já te disse pra não me chamar assim! 

Arashi segurou o travesseiro e colocou-o na cama. Havia um par de luvas sem dedos nas suas mãos, mas isso não se devia ao frio, porque nem casaco ele estava usando. Vestia apenas uma camiseta branca, uma longa calça preta adaptada para combates e botas. Diferente da namorada, estava pronto para ir à luta, pois esteve com Saori naquela tarde e queria estar pronto para o caso dela precisar de socorro. 

Ele tinha um contraponto para a acusação dela de trapaça.

— Não é trapaça se não tem regras. — Silogizou. 

Kin não teve opção a não ser aceitar a derrota.

— Tem razão. E o que o vencedor vai querer? 

Quieto, o ouvinte foi até ela, beijou-a na bochecha e abraçou. 

— Dá um sorriso. — Pediu, escutando um suspiro de pesar. Afastado dela, tomou-a pelas mãos e garantiu: — Vai dar tudo certo. Ele vai voltar. 

Um calor muito forte tomou com as mãos o coração dela, que acelerou. Sua tez enrubesceu. Ela sorriu e chorou ao mesmo tempo. Em seguida, o beijou. 

— Eu te amo tanto! — Se declarou, apaixonada. 

Antes de Arashi poder dizer o mesmo, o comunicador que ele acoplava à orelha direita vibrou. Ela tocou o objeto com o dedo e o rapaz atendeu a chamada. Ouviu-o falar com Mahina, que prometeu vir com o esposo à casa de Kin, trazendo também o filho. Arashi sorriu quando a garota confirmou a visita.

— Também te amo, K. Vem, vamos descer, nosso afilhado está vindo.

A loira ficou tão feliz com a notícia que não ligou para o apelido. Porém, ele saiu deixando a cama bagunçada. Irritada, Kin protestou:

— Não vai me ajudar a arrumar isso aqui?! 

— Você perdeu no jogo da encarada, é com você. — Respondeu, saiu e bateu a porta.

 No andar de baixo, Naomi devolvia uma planta à vida com seus poderes. Seus amigos aplaudiram sorridentes o feito. Ela, de pé, se curvou em agradecimento. Era uma habilidade que descobrira há pouco tempo, sobre a qual não possuía pleno domínio. Alegrava-a saber que, ao contrário do que cresceu acreditando, sua energia não servia só para dar uma morte atroz aos que a ela eram expostos. Que também podia salvar vidas com ela. Se tivesse percebido isso mais cedo, teria escapado de muitos traumas psicológicos. 

Batidas na porta acabaram com a apresentação. Quem levantou para atender foi Yue, pois ela já previa que quem estava lá era Mahina e queria ser a primeira a segurar a criança. Ela e Kin apostaram isso. Ao recebê-los, Yue abraçou rápido os pais do bebê, tomou o menino deles e foi para o meio da sala. Kin desceu ágil como o vento, passou por Arashi como um furacão, mas era tarde demais. Yue ninava e mimava o afilhado dela, apertando-o com carinho contra seu vestido azul claro. 

Furiosa, Kin voltou-se contra o guerreiro glacial. Culpava-o por ter perdido a aposta com Yue. De cara fechada, com os braços cruzados diante do vestido amarelo, forçou um sorriso e abraçou a amiga e o pai do filho dela. O alvo de sua raiva, terminando de descer as escadas, dava desculpas. Mahina nada entendeu, mas há pouco menos de dois anos era uma deles, uma retalhadora. Não estranhava tais excentricidades. Na verdade, veio o caminho todo alertando seu parceiro sobre elas. 

Quando Kin lhe tomou o menino, Yue deu língua como uma criança e estendeu a mão. Cobrava o dinheiro da vitória. A loira pagou, a contragosto. Doía-lhe mais o orgulho do que o bolso. Mas ter seu menino nos braços e poder alçá-lo bem alto restaurou seu bom humor. Esqueceu até que se irritou com o namorado e convidou-o para curti-lo com ela. Mas ele não pôde chegar nela, Yue e Naomi, derretidas, rondavam-na e vedavam a passagem. Abaixou a cabeça em rendição e foi cumprimentar com os pais do recém-nascido. 

 Sora cutucou-o com o cotovelo.

— Quando você e a loira forem pais, isso vai ser frequente. — Sussurrou, apontando. 

Arashi pareceu orgulhoso, até ansioso. Adorava ver como Kin era apegada a crianças e imaginar o que Sora disse. Só não sabia se seria um pai à altura, nem sentia que seria capaz de ser. Querendo contrariar o Raikyuu, alfinetou-o:

— Você tá cheirando a ciúme. E a única descomprometida ali é a Yue. 

Aquela não era a primeira vez que sugeriam aquilo para ele. Yue exercia espantável influência sobre seu temperamento, a prova mais patente disso se tornou pública nos meses que todos se juntaram para ajudar a protegê-la de Lire e de quem mais a queria morta. Eu não sou bom o bastante pra ela, pensou novamente, em segredo. 

— Não sou bom o bastante pra ela. — Escapuliu. O guerreiro glacial olhou-o atônito, entendendo o que ouviu como uma confissão. Ao notar o que disse, Sora, mestre na arte de transformar constrangimento em diversão, se corrigiu: — E nem pra ninguém. Sabe que eu não presto. 

Aquele natal deles terminou com a maioria dormindo no sofá antes da meia-noite. Só Kin e Arashi estavam acordados, brincando com o filhinho da amiga e fazendo milhares de promessas para ele. Kin, com o pequeno nos braços, jurou enchê-lo de presentes, em seguida deu-o nas mãos do padrinho dele. Celebrado em silêncio pela madrinha do pequeno, o rapaz garantiu jamais permitir que alguém o ferisse. Por fim, fez carinho no rosto da moça que os contemplava encantada. 


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