Errar é Divino escrita por Jubs


Capítulo 9
8. Mafiosos, psicopatas e plantinhas


Notas iniciais do capítulo

Oiê! Tem alguém aqui?
Depois de algum tempo de hiatus por motivos de autora em colapso, Errar é Divino está de volta!

Gostaria de agradecer os comentários adoráveis que já recebi ❤ sério, isso motiva demais (e deixa um autor muito feliz)!

Sem querer te alugar mais, boa leitura!



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A palavra “excêntrica” estava para Elisabete Lago do mesmo jeito que “camuflagem” estava para Benjamin, e “democracia” para os Estados Unidos da América – usada pura e simplesmente para suavizar o fato de que ela era, usando o termo não suave da coisa, a tal da tia doida da família mesmo.

Em seu extenso currículo de excentricidades, arduamente conquistado, incrementado e atualizado ao longo de uma vida no mínimo agitada, destacam-se eventos como: abandono de noivo no altar, nome na lista de investigados do Dops nos tempos da ditadura, abandono de noivo no altar, coleção macabra de bonecas de porcelana dos anos mil novecentos e bolinha, abandono de noivo no altar, ser a primeira pessoa da família a entrar numa faculdade (e largar ela em seguida, mas não sem antes trocar um ou dois beijos muito didáticos com um professor), e eu já falei abandonar o noivo no altar? Espero que sim, porque por incrível que pareça, foi com essa façanha que ela realmente ganhou fama.

Era conhecida por ser a famigerada tia solteirona, aquela que leva os melhores presentes no natal, faz os melhores doces e sempre tem um conselho terrível para dar. Quando Benjamin foi morar com ela na cidade, depois de ter passado nos testes da Orquestra Sinfônica Municipal, alguns parentes até que chegaram a pensar que o jeito ajuizado do garoto iria ajudá-la a aquietar um pouquinho o facho...

Pois agora mesmo ela acabava de acordar um contrato informal de aluguel com um homem completamente desconhecido que iria simplesmente ficar num dos quartos desocupados em sua própria casa.

— Vem cá, isso não é meio perigoso não? – Benjamin perguntara uma vez, há alguns anos atrás, quando a tia terminava de bancar uma obra que transformaria o terceiro quarto do apartamento em dois. – Tipo, essas pessoas vão dividir a mesma casa que a gente...

— Essa é a ideia.

— ... E eles são completos estranhos...

— Todo mundo é estranho até que a gente conheça.

— Mas e se de repente, sei lá, eles organizarem um complô, nos matarem e depois roubarem tudo que tiver no apartamento?

— Ah, Benjamin, se for assim estaremos mortos, até parece que nossos fantasmas iriam se preocupar com coisa de apartamento!

A verdade é que Elisabete levava a vida como uma grande brincadeira, deliberadamente ignorando o fato de que não morava dentro de um filme da Disney, e não nascera com um colete à prova de facadas embutido sob a pele. Fazia o que queria, quando queria, como queria, e dane-se todo mundo – por que que tu acha que ela nunca se arrependeu de ter dito um belo “não” na cara de um padre muito espantado, e de um noivo mais passado ainda? Deus que a livrasse de ter que viver dando satisfação para marido pelo resto da vida!

Pena só que ela teve essa fantástica revelação quando já estava lá no altar, em seu belíssimo vestido bufante de noiva, ouvindo os fungados emocionados dos convidados na igreja, e com aquele padre careca repetindo já pela segunda vez se ela aceitava ou não aquele homem à sua frente como seu legítimo esposo. Mas ah, fazer o quê? Pelo menos ia dar para a galera o que fofocar nos próximos almoços de domingo.

Por vários e vários anos seguidos.

Eita povo para gostar de ecoar uma desgraça...

Agora, o tal currículo de excentricidades acabava de ganhar o seu mais inusitado verbete: um cupido de mais de cem anos de idade estava aceito como inquilino naquele simpático apartamento de quatro andares, o terceiro dos três edifícios que faziam parte de um pequeno conjunto habitacional em (levemente descascados) tons pastéis. Este tal cupido, por sua vez, após lhe dar um thauzinho animado à porta e descer saltitando as escadas, agora caminhava pelo saguão muito ciente de que, se não conseguisse concretizar o seu plano em um prazo consideravelmente curto, aquela empreitada toda estaria servindo apenas para deixa-lo muito mais ferrado do que já sabia que estava.

Ora, anjos jamais deveriam interagir com humanos, a não ser que fosse estritamente necessário, e obtivessem uma autorização especial ainda por cima. Mas quem é que se importa com meras formalidades, não é mesmo?

Lá ia Loukás, todo serelepe quebrar só mais uma regrinha de nada. É como um humano disse uma vez, há muitos anos, numa frase que ele achara tão ilustrativa que não fora capaz de esquecer: “o que é um peido para quem já está cagado? ”

Aquilo lhe soava tão filosófico que ele quase poderia pensar que tinha sido dito por aquele tal de Sócrates ou Platão, lá nos tempos áureos da sabedoria grega.

— Então... – Paris suspirou, num esforço homérico para fingir não estar ainda no mais absoluto pânico. – Nós vamos mesmo fazer isso.

— Vamos sim! – Respondeu Loukás, contente.

— Nós vamos alugar um quarto.

— Nós vamos alugar um quarto!

— Aqui, no mundo humano.

— Aqui no mundo humano!

— E posso saber como é que vamos fazer isso se não temos absolutamente nenhuma espécie de documento aqui com a gente, ô animal?

— Oh... – Ele murchou um pouco. – Mas será que precisa de documento?

— E o que é que não precisa de documento nesse planetinha burocrático do caramba?

— Ahh... err... bem... – O loiro se perdeu um pouco no raciocínio. Titubeou os olhinhos pelo saguão e levou uma mão ao queixo, pensando a respeito. – Aquela humana disse que era uma coisa mais informal, não é? E se a gente simplesmente inventasse um documento?

— E você pelo menos sabe quantos números tem um CPF?

— O que é um CPF?

Paris bateu na própria testa. Aquilo definitivamente não ia dar certo.

— Ah, mas quer saber? – Loukás virou para o lado oposto e começou a saltitar em direção à portaria – suave na nave! Não deve ser tão difícil arrumar documentos falsos nessa cidade.

Ah, pronto.

Os Sensores de Captação de Encrenca apitaram loucamente no cérebro enervado de Paris, quase como um sentido aranha muito pouco divertido. Ele se voltou bruscamente para o irmão, voou até ele à toda velocidade, e usou toda a força do seu corpinho rechonchudo para segurá-lo pela gola da camisa numa tentativa vã e patética de impedi-lo de continuar caminhando em direção ao seu próximo grande feito.

— Você por acaso tá a fim de ir pra cadeia de novo?! – Gritou. – Isso é contra lei!

— O que é um peido pra quem tá cagado?

— Hein?!

— Sócrates – ele elevou um dedo, sentindo-se muito culto.

Paris estava pronto para começar uma discussão muito indignada quanto à suposta autoria daquela barbaridade, quando ambos se viram diante de um casal de adolescentes que conversava em sua própria discussão muito indignada quanto a qualquer coisa que não era da sua conta. A garota carregava uma sacola muito suspeita de um local muito suspeito que vendia bebida alcoólica para menores de idade; e tá certo que tentava esconder a todo custo, enrolando tudo embaixo do casaco, mas por algum motivo o gargalo marrom de uma das garrafas vindo para fora do tecido parecia terrivelmente obstinado em lhe denunciar.

O menino menos discreto berrava que como eles tinham usado a sua identidade para a compra daqueles líquidos suspeitos, ele tinha direito a "pelo menos escolher que tipo de bebida seria servida na festa, Juliana!". A tal Juliana, porém, discordava da ideia. E assim os dois passaram discutindo pelos cupidos que haviam se calado para que Loukás não viesse a ser tratado como doido de novo assim tão cedo.

Pois se Paris bem soubesse, teria continuado a discussão – aquela pausa foi tudo que o irmão precisou para mudar a sua rota e ir na direção dos jovens, acometido por mais uma das suas ideias geniais.

Ora, “identidade” parecia soar como algum documento. Ele precisava de um documento!

— Ei, vocês aí! – Gritou para a dupla que começava a ganhar as escadas. Os dois se voltaram de uma vez, suspeitosamente surpresos – é, vocês mesmos! – Ele se aproximou. A menina se agarrou mais às suas garrafas e o garoto corajosamente fingiu que não estava se escondendo atrás dela. – Por acaso ouvi vocês falarem alguma coisa sobre identidade. É um documento de identificação, não é? Será que poderiam me emprestar?

Ele sorria de um jeito tão livre de maldade que os dois adolescentes resistiram à vontade inicial de subir correndo e se entreolharam por um momento, numa dúvida silenciosa.

— Iiiih qual é essa agora, hein? – O menino tomou a palavra, agarrado sobre o ombro da garota. – Vem cá, cara, te conheço?

— Ainda não, mas pelo visto logo seremos vizinhos!

— E pra quê você quer uma identidade falsa?

— Shiu! – Juliana deu-lhe um cutucão nas costelas. Voltou-se para o cupido, escondendo um pigarro. – É verdadeira. A identidade. Ele é maior de idade.

— Ah, sim, claro, maior de idade – ele se corrigiu.

— Te sugiro tentar engrossar um pouco a voz antes de tentar convencer alguém disso – Loukás deu um risinho anasalado. O garoto corou de raiva. – Mas olha, tudo bem, a mim não importa se é verdadeira ou não. Só quero emprestado. Te devolvo rapidinho.

— Suspeito – murmurou a menina.

— Muito suspeito – concordou o menino.

— Ah, parem com isso, eu não sou nenhum criminoso!

— Isso é justamente o que um criminoso diria.

Eles estreitaram os olhos para ele. Loukás percebeu que tinha chegado a hora de apelar.

— Tudo bem, olha, é o seguinte... – ele respirou fundo um momento. – Te dou cem pratas por ela.

O tal da voz fina empalideceu.

— Hã... – Travou.

Foi a menina quem salvou a pátria.

— Duzentas! – Exclamou, certeira. E, vendo que o loiro de fato começava a pegar algumas notas de dinheiro no bolso, corrigiu – Trezentas!

— Ahh, você disse duzentas que eu ouvi!

— Duzentas pela identidade, cem pelo nosso silêncio. – Ela ergueu as sobrancelhas, muito senhora da situação. – Aliás, cem pelo silêncio de cada um.

— Humpf! – Loukás buscou mais algumas notinhas de cem em seus bolsos menos gordinhos. – Mas que mercenária.

— Eu chamo de “negociadora”.

— Uma negociadora mercenária.

— Vou deixar passar essa, mas só porque eu fui com a sua cara. – Ela cruzou os braços, erguendo o queixo como uma espécie de versão feminina e espinhenta do Poderoso Chefão. – Agora vamos, entregue o dinheiro discretamente para o meu lacaio.

— Quem é lacaio? – O outro adolescente reagiu indignado.

— Calado, lacaio!

— Olha, eu não deixaria ela falar assim comigo se fos...

— Calado você também, ô esquisito!

E o anjinho de fato calou a boca, tão rápido que acabou fazendo Paris considerar seriamente contratar os serviços daquela pirralha aspirante a mafiosa algum dia.

O dinheiro então foi entregue cheio de olhares de lado, caras de paisagem e tentativas de naturalidade, de forma que qualquer pessoa a passar por ali certamente pensaria estar atrapalhando algum tipo de comércio de produtos ilícitos cujo comprador e vendedor não faziam ideia de como deixar a coisa ainda mais óbvia.

— Sua vez, Enzo. Empreste agora aquela sua carteirinha pro nosso amigo...

— Loukás.

— ... Pro nosso amigo esquisito aqui.

E o menino, obediente como um cachorrinho, enfiou a mão no bolso dos jeans e discretamente colocou um pedacinho retangular de plástico verde sobre a palma do cupido, recuando a mão em seguida ao ensaiar um assobio.

Loukás então observou o documento por um instante, satisfeito. Obviamente não entendia bulhufas sobre o que o faria parecido com um R.G. original ou não, mas tinha ali alguns nomes, alguns números, uma foto e um polegar, então pelo menos algum sentido aquilo tudo fazia. Ele o guardou no bolso da camisa e ensaiou um sorriso simpático para a dupla.

— Muito obrigado, senhores – disse, todo cavalheiresco – em dois dias devo devolver o documento.

— É bom mesmo, ou a gente bota a boca no trombone.

— Que é isso, esse é o nosso segredo – deu-lhes uma piscadela toda marota. – Assim como esse tanto de bebida que vocês estão levando escondido aí dentro.

A mocinha devolveu um sorriso cúmplice. Gostara daquele cara.

— Foi um prazer fazer negócio com você, esquisito. – Disse. E agarrando mais as bebidas sob o casaco, voltou-se para o amigo – Vambora, Enzo, o pessoal tá pra chegar!

Eles retomaram o rumo da escadaria com o tal do Enzo ainda brigando indignado com o título de lacaio.

 

* ☕ *                 

 

No dia seguinte, as paredes do apartamento de tia Betty ganhavam tons alaranjados sob a luz do entardecer, embebidas na voz de Tom Jobim que cantava Chega de Saudade suavemente no radinho vermelho sobre a geladeira da cozinha. Emi estava à mesa, curtindo a música, rindo sozinha para o celular enquanto recebia novas mensagens no grupinho de Whatsapp que tinha se formado após o passeio do dia anterior.

Devia confessar que, como uma boa imigrante no começo de uma nova vida, tinha surtado horrores no caminho da universidade, pensando em mil e uma maneiras de tudo dar errado. E se de repente esquecesse de como falar alguma palavra? E se zoassem seu sotaque? E se não gostassem dela? E se ela sem querer se atrapalhasse toda, errasse o caminho, fosse parar no meio de um assalto a banco em andamento, uma das vítimas a reconhecesse na delegacia, e ela fosse mandada de volta para o Japão onde não só seria presa pelo resto da vida, mas também teria que aguentar os pais jogando tudo na sua cara para todo o sempre?

Felizmente nada disso tinha acontecido.

Ela estava, então, transbordando de felicidade. Tinha feito novos amigos, conhecido bem o campus de Biologia, tirado bonitas fotos ao lado dos cavalos do estábulo, e se perdido vezes o suficiente para já se considerar uma caloura de respeito. No fim, a pequena farra no barzinho próximo à faculdade resultara em mais fotos embaçadas e vários micos para contar, então ela estava agora bem mais enturmada entre aqueles que viriam a ser seus colegas de turma logo que começasse o próximo semestre.

O que incomodava agora era só a imensa vontade de contar tudo ao Benjamin. Será que deveria tentar bater na porta dele? Ou apenas mandar mais uma foto do seu primeiro rolê tipicamente brasileiro e esperar uma resposta um pouquinho mais engajada que o “Que legal :D” xoxo, capenga, frágil e inconsistente que havia recebido da última vez?

Fala sério, quem é que ainda manda emojis de teclado hoje em dia?

— ... Abraços e beijinhos, e carinhos sem ter fim — cantarolou a moça, distraída – que é pra ‘cabá com esse negócio de você viver sem mim.

A campainha tocou de repente. Emi suspirou baixinho e tinha começado a se levantar para atender, quando se surpreendeu ao ver a silhueta do próprio Benjamin passar veloz do outro lado da bancada, seguido do barulho das chaves na maçaneta e do mover ruidoso de uma porta cujas dobradiças pareceram implorar por misericórdia.

— Graande Benjam...! – A voz teatral de Ricardo foi ouvida, e logo cortada por um bater de porta bem na cara dele.

Benjamin passou de volta para o corredor agora agarrado em um pequeno vaso de plantas.

— Ei! – A moça não resistiu em gritar, enfim terminando seu caminho para fora da cozinha. – Isso foi rude – repreendeu em um tom de brincadeira que o rapaz acabou levando a sério demais.

— Rude! – Resmungou ele. – Antes tivesse é fechado a porta na língua daquele boca de sacola. Estaria fazendo um favor para a sociedade.

Ele entrou no quarto novamente. Emiko tinha claramente o seguido até a porta, mas ainda assim aqueles olhinhos escuros pareceram surpresos quando seu dono se voltou para fechá-la atrás de si e se deparou com a garota ali parada.

Ela então baixou os olhos para a planta que o amigo segurava tão devotamente. Não reconheceu aquelas folhinhas espetadas sobre a terra preta de jardinagem.

— O que é isso? – Perguntou.

— Espada de São Jorge pra espantar demônios.

— Quê?

— Quê?

Silêncio. Benjamin agarrou-se mais à planta e prensou os lábios, meio nervoso, receando ser interpretado como um total maluco – o que, a julgar pelo olhar espantado da amiga, era exatamente o que estava acontecendo.

— Hã... er... tá bom... – Emiko arqueou um pouco as sobrancelhas. Ok, aquele definitivamente não era o momento ideal para conversar sobre a faculdade. Já tinha entendido. – Sabe... – havia outro assunto, porém, que ela também estava doida para fofocar. – Tem uma coisa que eu querer te contar. A outra quarto foi alugado.

O rapaz deu um piscar lento e idiota que denunciou a dificuldade que seus neurônios estavam enfrentando naquele momento para estabelecer qualquer tipo de comunicação.

— Quê...? – Repetiu por instinto.

— A outra quarto. Com bonecas.

— O quarto de bonecas?

— Sim. Foi alugado.

Alugado. Quarto de bonecas. Essas duas expressões numa mesma frase.

— Q-quê?! – Terceira repetição.

Emiko riu um pouquinho.

— É, eu sei. E papéis foi assinados hoje cedo, então ele...

— Não, espera! – Ele arregalou um par de olhos absolutamente horrorizados para ela. Ninguém nunca alugava aquele quarto. Faziam quase quatro anos que ele morava naquele apartamento, e quase quatro anos que aquele mausoléu macabro permanecia sensatamente vazio. – Mas isso é sério? Que espécie de pessoa psicopata e doentia é essa que a tia Betty tá colocando dentro de casa agora?

— Não é psicopata. É uma rapaz — ela respondeu toda sorrisos. Na verdade, talvez sorridente demais. – Ele é simpático, e... e bem bonito... ah, e bem falante também.

Benjamin ouviu aquele tom de voz exageradamente fino e felizinho como uma sirene vermelha piscando e piscando em um sinal de alerta. Ele estreitou os olhos para ela muito desconfiado.

— Emi...

— O quê?

— Por favor me diga que você não tá a fim desse psicopata.

— Pff...! – riu – Não uma psicopata, Benjamin!

“E ela não negou” ele refletiu, horrorizado.

— Confia em mim, ele é legal – Emi prosseguiu. Sua mão tocou o braço dele com carinho, e completou em um tom um tanto mais ameno – e sua tia parecer feliz com dinheiro extra e companhia, então... tenta não assustar a rapaz. Okay?

— Assustar? – Ele agarrou-se mais ao vaso de planta – por que você acha que eu seria capaz de assustar alguém?

Emiko abriu um sorrisinho solidário – e na verdade, até ele próprio, no meio do processo de abraçar a mudinha de Espada de São Jorge contra o peito, acabou meio que sem querer se dando conta do motivo também. Fazia algum tempo desde que desistira de lutar contra o crescimento natural dos pelinhos da sua barba, e as bolsas de carne sob seus olhos pareciam pesar pequenas toneladas; em um gentil resumo, ele estava sim a imagem perfeita de alguém capaz de assustar até mesmo quem foi peitudo o suficiente para alugar O Quarto de Bonecas da excêntrica tia Betty.

Benjamin suspirou. A sirene de alerta estava era sobre a sua cabeça, pelo visto.

— Tá... – respondeu, vencido – eu vou tentar.

Emi se deu por satisfeita. Aproveitou a mão sobre o braço do amigo e deixou um leve afago, que ele respondeu com um sorriso pequeno e meio sem graça.

— Tem sopa na geladeira, tá...? Eu vou estar em cozinha. Você precisar comer e... bom... talvez a gente pode conversar.

— É... sim... – ele coçou a nuca, desviando os olhos. – talvez.

Ela lhe abriu um sorrisinho gentil e enfim voltou a se afastar pelo corredor.

“Certo”, pensou Benjamin, tão logo a porta se fechava sob suas costas. “As mulheres dessa casa são completamente loucas” completou, enquanto colocava seu precioso vasinho sobre o parapeito estreito da janela. Tinha lido obcecadamente dezenas de simpatias envolvendo a pobre da planta ao longo do dia, e, na falta de achar alguma que parecesse se sobressair sobre as demais, decidiu meio que só cultivá-la mesmo, como uma pessoa normal faria.

Ele voltou para a cama, onde os cadernos abertos e o notebook mostravam sua tentativa de estudar, e deitou com um suspiro, encarando o bom e velho teto de sempre. Sentiu o celular vibrar em algum lugar sob os lençóis; nem se deu ao trabalho de conferir o que era. Emiko tinha sido sua única exceção às notificações ignoradas até então. Ele tinha dor de cabeça só de imaginar o caos que estava se tornando sua já tão caótica vida acadêmica, assim como o deserto que em breve se tornaria a sua já tão desértica vida social.

Fechou os olhos. Tentou cochilar. Ouviu tia Betty bater à porta na hora do jantar e falar alguma coisa aleatória que ele nem tentou prestar atenção, respondendo com um “aham” arrastado apenas quando ela insistiu em gritar um “ouviu?!” meio irritado do lado de fora.

Não tinha ouvido. Não queria ouvir. Não queria nada além da sua vida de volta.

“Mas como você vai ter a sua vida de volta” argumentou seu cérebro, “se nem sequer tenta recuperar ela?”

Benjamin abriu os olhos, irritado com a intromissão daquele órgão chatonildo. Quem ele pensava que era para se meter assim na sua fossa?

“Eu sou seu cérebro, idiota!”

Ele suspirou, revirou os olhos. Que seja. Pegou o caderno da faculdade, leu por cima suas débeis tentativas de resumo sobre arte egípcia, depois os rascunhos enérgicos de simpatias contra espíritos do mal, e finalmente um pequeno desabafo que escrevera no final da página, consistindo em apenas uma frase: “até quando eu vou ficar assim?”

Sim, ele queria fazer tudo aquilo que os psicólogos falam, sobre parar, sentir, absorver e deixar ir; mas poxa, faziam dias que ele não passava da fase do sentir daquela... daquela coisa toda que vinha o consumindo. Tinha medo de passar do timing entre a introspecção e a depressão. Queria desesperadamente conseguir reagir, voltar a ajudar tia Betty com os afazeres de casa, compartilhar a vinda de Emiko, terminar de vez o semestre da faculdade e ficar de férias em paz, como todo mundo. Que raio de sentimento era aquele que não dava trégua, que não ia embora?!

Ele sentou na cama, angustiado. Olhou para o pequeno armário ao seu lado. Viu o cartão do psiquiatra que tinha colocado lá ao que pareciam ser séculos atrás, e imediatamente o cérebro intrometido tentou falar mais uma vez: “E se...”

"Olha, caras" o estômago se intrometeu a tempo "lamento interromper esse nosso lance de se deprimir e tal, mas é que eu realmente preciso comer pra viver." 

É, razoável.

Benjamin levou uma mão à barriga que roncava, apertando com força o tecido do pijama. Não lembrava da última vez que tinha se alimentado, e por um momento pensou que essa era uma ótima maneira de pelo menos começar a tentar reagir. E o resto que fosse como Deus quiser.

Ele levantou da cama, atravessou as pilhas de roupa, quase escorregou em algo úmido que preferiu nem saber o que era, e agarrou com tudo a maçaneta da porta, sentindo as mãos tremerem sobre o metal. Sua cabeça estava tão aérea que parecia que ia desmaiar a qualquer segundo. Pelo menos conseguiu sair do quarto, e, guiado pela luz fraca do poste num apartamento já completamente escuro, atravessou o corredor vagarosamente em direção à cozinha, prestando atenção nos sons que vinham de lá.

Inicialmente tinha pensado que era a tia terminando de arrumar alguma coisa. Não seria a primeira vez que a flagraria num surto de limpeza em plena madrugada. Porém havia algo na energia daqueles sons, no modo como as coisas batiam umas nas outras, que definitivamente não pareciam obra de uma singela velhinha, por mais doida que ela fosse – fato esse que foi comprovado conforme chegava mais perto e podia ouvir o que parecia ser uma voz brigando aos sussurros. Uma voz de homem.

Assustado, ele se esgueirou pela parede, se agachou para passar rente ao balcão, e enfim se jogou de costas ao lado da porta. Olhou para dentro da cozinha; estava tudo apagado lá dentro, mas a luz amarelada do poste ajudava a distinguir uma silhueta humana, alta e de roupa clara, parecendo envolta numa briga corporal contra alguma coisa que ele não podia enxergar.

“Oh, Deus!” Benjamin choramingou em pensamento, voltando a colar a nuca contra a parede e levando uma mão à boca para evitar de gritar. “Um ladrão. Um bandido. Um meliante. Devo chamar a polícia? Ele vai ouvir!” olhou para dentro mais uma vez. Voltou a se esconder. “Eu nem sei sair no soco!” Lamentou mais uma vez. Droga de família responsável que o tinha criado longe da violência, viu?! E agora? O que é que iria fazer?

Tateou em sua volta, em busca de alguma arma. Sentiu seus dedos se fecharem ao redor de algo comprido e fino, que, se segurado com força, poderia até servir. Estufou o peito de coragem, assumiu a pose de homem da casa – e então, tal qual o personagem de filme de terror que era o primeiro a morrer, ligou o interruptor da cozinha e pulou para dentro do cômodo.

O invasor gritou. Benjamin gritou de volta. Algo redondo cortou os ares, o acertou em cheio na testa – e aí tudo apagou.


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