Errar é Divino escrita por Jubs


Capítulo 4
3. Surtos, hospital e uma mão amiga


Notas iniciais do capítulo

Oiê!
Avisinho: nesse capítulo há menções a episódios de crises de ansiedade. Não é nada muito pesado, mas vale a pena avisar né?

Boa leitura ♥



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Os dias iam passando. Benjamin Lago ia de mal a pior.

Ele não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, ou do porquê de estar acontecendo, ou se de fato estava acontecendo, porque às vezes tinha a impressão de que tudo aquilo era apenas um sonho sem muito pé e nem cabeça, do qual a qualquer momento iria acordar, se sentar na cama assustado, e pensar "Putz! Mas que sonho sem pé nem cabeça!"

O fato é que ele estava muito bem ciente da sua esquisitice, obrigado, assim como as suas companheiras de apartamento. O restante do prédio, apesar de mal saber o seu nome, e ser quase incapaz de o reconhecer sem o estojo do violino pendurado nas costas, também estava parcialmente ciente dessa novidade, mas apenas porque eram um bando de fofoqueiros e logo ficaram sabendo pelos vizinhos mais próximos que ele havia parado de ensaiar todas as tardes também.

Entenda, num lugar onde a maioria dos moradores são idosos, até se alguém peidar diferente já é motivo interessante o suficiente para virar uma boa fofoca. Não vamos julgá-los.

Mas tá, tudo começa pelo começo, e o nosso é tão delicioso e imaculado que não merecia ser o ponto de partida para essa série de infortúnios, mas também não teve muito para onde correr (em partes porque também não tinha pernas): um belo pedaço de pudim.

Tia Betty tinha cumprido parcialmente sua promessa e feito o doce um dia depois do prometido, já que estivera ocupada demais recebendo um jovem interessado em alugar o último quarto disponível em seu apartamento, e depois teve que tomar uma boa lapada de remédio para pressão por causa da discussão intensa que começou quando o tal rapaz teve a audácia de chamar aquele quarto maravilhoso de palavras como "medonho", e "bizarro". Acontece que aquele remédio também dava um sono danado, e por isso ela passara o resto da tarde dormindo – assim como Emi, que ainda estava tendo alguns problemas com o fuso-horário.

Foi por isso que nenhuma delas notou que, naquele dia, Benjamin não foi à cafeteria. Na verdade, saiu do próprio quarto apenas para tomar seu precioso ventinho noturno na varanda e voltar para tentar dormir em seguida.

Ênfase no tentar – sua velha insônia estava mais intensa do que nunca. Ele dormiu um pouco, depois acordou, cochilou, e por fim não conseguiu dormir mais. Atordoado, voltou o olhar para o relógio digital apoiado no pequeno armário ao lado da cabeceira da sua cama, que anunciava em números brancos luminosos as três e meia da manhã.

Bocejo. Okay, talvez estivesse mesmo exagerando um pouco na cafeína. Iria pensar mais sobre isso durante sua tradicional xícara de café preto ao levantar de manhã.

No dia seguinte, sim, Elisabete fez o seu precioso pudim. Ele tinha saído estupidamente perfeito, brilhante, uniforme e saboroso, bem do jeito que a diabetes gosta. Triunfante, a velha guiou os dois jovens para a cozinha, ainda vestida em seu aventalzinho de silhueta feminina em biquínis de bolinha, e ouviu com um sorriso orgulhoso os elogios empolgados de Emiko, e um ou dois bocejos disfarçados de Benjamin.

Um prato generoso foi colocado diante dele, e um outro igualmente farto diante da sua velha amiga, ao seu lado na mesa. Tia Betty sentou-se do lado oposto, esperando o restante dos seus merecidos elogios pacientemente.

À esta altura, Benjamin conseguira sorrir diante do que era seu prato favorito do universo desde que o provara pela primeira vez, quando criança. Comeu a primeira colherada, feliz, e por alguns segundos parecia que todos os problemas do mundo só existiam porque tia Betty era humanamente incapaz de servir a cada um dos oito bilhões de terráqueos, uma fatia daquela sua fabulosa sobremesa. Na segunda colherada, porém, aquela sensação estranha surgiu de repente; ele se forçou a engolir tudo, lutando muito para não vomitar. Seu estômago se revirava como se milhares de insetos brigassem freneticamente dentro dele, batendo as asas com violência, fazendo borbulhar o suco gástrico, e enfim parecendo querer voar esôfago acima para escapar pela garganta.

Enjoado, ele não conseguiu finalizar nem o primeiro pedaço. Tia Betty, espantada, percebeu tudo. E lembra quando ele disse que se um dia viesse a negar um pedaço de pudim feito pela tia, ela podia mandar interna-lo porque certamente estaria doente?

Pois é. Pelo visto ela levou aquilo bem a sério.

Mais tarde naquele mesmo dia, Benjamin Lago estava num consultório de hospital.

— Hum... – murmurou o doutor, levando o toque frio do estetoscópio sobre a pele escura do abdômen do rapaz – inspire... segure o ar um pouco... agora solte. Isso.

Em seguida, afastando-se, ele arrumou novamente o aparelho ao redor de seu pescoço, soltando um suspirinho cansado junto com um sorriso tranquilizador. Era o último exame da consulta, e um de seus últimos pacientes na fila de espera do postinho de emergências – ele estava contente de que em breve poderia sair daquela sala gelada e ir trocar alguns flertes com a moça simpática da recepção.

Talvez nem tão simpática, se você levar em conta que ela ignorava deliberadamente a enorme aliança dourada que o médico carregava no dedo. Mas ah, poxa, uma garota precisa fazer vista grossa para algumas coisas ao tentar agarrar seu velho rico.

Palavras dela, eu hein, longe de mim.

— Então, Benjamin, você está muito bem de saúde – concluiu o doutor, olhando nos olhos meio perdidos do rapaz, que apenas sorriu de volta, satisfeito.

Elisabete, porém, inclinou-se para frente. Ela estava na poltroninha ao lado de Benjamin, depois de muito eles discutirem na sala de espera sobre a (falta de) necessidade de um marmanjo de vinte e poucos anos entrar acompanhado numa simples consulta médica.

Pois bem, seja como for, ela estava lá muito teimosamente. Dá para ver quem ganhou a briga afinal.

— Mas doutor, não é possível – protestou tia Betty – eu conheço o meu sobrinho, ele não é assim, tem alguma coisa errada!

— Bom, não é nada relacionado à saúde do corpo, isso eu posso garantir – o velho deu de ombros. – Na verdade, me surpreenderia se fosse.

— Como assim?

— É que segundo os "sintomas" que ele me descreveu – fez aspas com os dedos no ar – eu diria que o seu sobrinho mais parece estar sofrendo de amor, e não de doença.

— Sofrendo de amor?!

— Me diga, rapaz – o médico voltou-se simpaticamente para Benjamin, que acompanhava tudo em constrangido silêncio – tem alguma garota que está te tirando o sono esses dias?

— Ahn... – este encarou o chão. Sentia que podia morrer de vergonha a qualquer momento. Quase ansiava desesperadamente por isso, na verdade. – Não... eu acho que não.

— Doutor, eu já fui mocinha, já me apaixonei, já agi como uma desmiolada por homem que nem dente tinha, mas nem de longe fiquei no estado que esse menino está! Deve ser alguma coisa no sangue, isso aí.

— Tia, por favor... – ele suplicou entredentes.

— Olha, minha senhora... – o médico suspirou – eu nunca pensei que diria isso nesses meus trinta anos de medicina, mas eu sinto muitíssimo: o seu sobrinho está perfeitamente bem.

— Mas é mesmo muita incompetência!

— Ele é um jovem saudável, em boa forma...

— Mentira!

— ... E eu não vejo nenhuma razão para pedir nenhum exame adicional.

— Como não?! Ele negou o meu pudim! – Tia Betty bateu forte as mãos na mesa. O velho levou um baita susto – Ele nunca nega o meu pudim!

Benjamin levantou exasperado, ao mesmo tempo que o médico, indignado, exclamava:

— Jovem, controle a sua tia, ela está histérica!

A sala mergulhou então num profundo silêncio. Até uma mosquinha que estava há meia hora se batendo contra o campo de força invisível que nós chamamos de janela, ficou com vergonha de ser a única fazendo algum som por ali e resolveu dar uma paradinha de leves para acompanhar o barraco anunciado.

— Histérica...? – A pálpebra esquerda de tia Betty tremia. – Tu me chamou de “histérica”?

Essa seria uma ótima hora para saber fazer pipocas, pensou a mosca.

— Tia...

— Tia nada! – Ela ergueu uma mão num gesto para que o garoto se calasse, fula da vida. – Histérica, é? Tu ainda não me viu histérica. Quer ver uma mulher histérica?! – De repente levou uma mão à própria cabeça e literalmente arrancou os próprios cabelos fora, estendendo-os para o sobrinho em seguida. – Segura a minha peruca, Benjamin.

— Senhora, por favor...

— Segura a minha peruca, Benjamin!

— T-tia, bota o cabelo de volta, vamos pra casa...

— Espera só que eu ainda vou mostrar pra esse paspalho o que é uma Elisabete Lago histérica!

— Nããão! – Ben a agarrou pelas axilas, impedindo que a tia avançasse no velho, mas não que ela se debatesse toda e fizesse vários gestos obscenos com os dedos e os cabelos da peruca chanel brandindo no ar.

— Quer saber, na verdade talvez eu possa ajudar – anunciou o doutor, todo encolhidinho.

Os ânimos voltaram milagrosamente a se acalmar enquanto ele abria uma gavetinha sob sua mesa, vasculhando lá dentro ao mesmo tempo que tia Betty lançava um olhar de vitória para o sobrinho, e este apenas voltava a implorar mentalmente aos céus para ser capaz de literalmente morrer de vergonha, por favor, só dessa vez...!

O médico enfim encontrou o que buscava. Estendeu para Elisabete um pequeno cartão de visitas que ela logo afastou bem do rosto, a fim de ler melhor.

— É o endereço de uma ótima clínica de psiquiatria, a apenas dois quarteirões daqui – Explicou ele, com um novo suspiro enquanto a velha continuava examinando o cartão no auge da sua hipermetropia – Ela talvez seja de mais serventia do que eu... para os dois.

 

*  ☕  *

 

Tia Betty havia aceitado o cartão. Mas Benjamin não.

Naquela noite eles chegaram no apartamento em silêncio, porque o rapaz sentia que simplesmente não aguentava mais discutir. Assim, quando a porta se fechou atrás deles e a velha senhora (já devidamente emperucada) abriu a boca para fazer uma nova tentativa de persuadir o sobrinho a pelo menos ir conhecer a tal clínica, ele lhe virou as costas e caminhou pesadamente para o quarto, fechando a porta atrás de si.

Emi, nessa ocasião, estava na sala, observando de longe o próprio celular vibrar até cansar, jogado sobre o móvel da televisão. Não atendeu. Soltou um doloroso suspiro e enfim ergueu os olhos para a dupla que acabara de voltar da consulta, bem a tempo de ver o amigo sumir corredor a dentro. Ela lançou um olhar interrogativo para Elisabete, que apenas ergueu os ombros na mais perfeita inocência.

Enquanto isso, no quarto, Benjamin havia encostado o estojo preto contra uma parede e se jogado sobre o edredom macio da cama, soltando um longo e exausto suspiro ao encarar o teto. Abriu bem os braços, esticou bem as pernas. Tentou pela milésima vez tirar um cochilo, o mínimo que fosse, só para esquecer o tamanho do vexame que tinha acabado de passar.

Não conseguiu.

Uma descarga estranha de adrenalina tomou o seu corpo de repente, e por um momento ele pensou que enfim estava prestes a ter o tal ataque de nervos que tanto temera na adolescência, quando tinha passado maus bocados na mão da ansiedade. Seu medo na época era ficar louco de vez, algo que imaginava ser mais ou menos como acontecia naqueles episódios antigos do Pica-pau biruta. E, bom, apesar dos seus amigos costumarem dizer que ele ficava bem de branco, o rapaz não tinha lá tanta certeza se camisas de força e salas acolchoadas estavam inclusas nessa estética aí.

Alguns segundos passaram. Ele continuava preso naquele jogo de sério com o teto, as pupilas dilatadas como se tivesse acabado de fazer uso de algum tipo de erva das boas. A tensão crescia, lhe apertava e acelerava o coração, parecia querer desesperadamente reagir a alguma coisa sem nome, sem rosto e sem nenhum sentido aparente. Ele tinha vontade de gritar, só para ver se adiantava alguma coisa. Não gritou. Encolheu-se todo, respirando, apertando os olhos como se aquilo pudesse fazer aquela sensação angustiante passar – mas nada dava jeito.

Ao seu lado, fora do alcance dos seus sentidos humanos, um bebê alado, loiro, e cheio de dobrinhas desenhava círculos aleatórios no assoalho. Ele ergueu o rostinho, assistiu um pouco a agonia de Benjamin, e mais uma vez suspirou baixinho, impotente, morrendo de dó. Naquele momento, pensou que aquele ditado do amor ser uma espécie de "doce tortura" tinha perdido totalmente a parte doce da coisa, e se tornado só tortura mesmo.

— E então? – A voz de Paris chegou aos ouvidos do caçula. Este ergueu os olhos para ver o experiente cupido voar janela adentro, a fim de ouvir o relatório do dia. – Como estamos hoje?

— Além de miseravelmente ferrados?

— É, sim, além disso.

Loukás comprimiu os lábios num muxoxo, voltando aos seus rabiscos no chão.

— Bom... – começou – não sei você, mas eu já estou conformado com a imagem do meu pobre pescocinho sendo torcido como pano nas mãos de Eros.

— Imagino que isso queira dizer que as coisas vão mal.

— Ah – mais um daqueles sorrisos de escárnio – quanta sagacidade.

Paris odiava tanto o Loukás-Irônico que teve vontade de ser ele mesmo quem iria lhe torcer o pescocinho como pano. Um irritante e incompetente paninho amarelo. E o lado bom é que panos não falam e nem gritam, então ele iria poder torcer o quanto quisesse, sem comprometer sua preciosa paciência.

Esse delicioso devaneio foi interrompido por um suspiro melancólico de Loukás.

— Desculpa... – disse o anjinho, ainda sem conseguir encarar o mais velho – eu não queria ser grosso com você... acontece que eu estou um poço de mal humor. Nem o fuzuê que a tal tia Betty fez no médico conseguiu me animar.

— Fuzuê...? Teve barraco?

— Foi maravilhoso. Mas eu não consegui rir.

— Oh...! – Paris sentou-se ao seu lado pacificamente. Só tinha uma pessoa que ele detestava mais do que o Loukás-Irônico, e essa pessoa era o Loukás-Triste. – Então o caso é sério... mas tente pensar dessa forma: talvez em alguns dias o efeito dessa flecha passe.

— Você realmente acredita nisso?

— Huh...

— É... foi o que imaginei.

— E o que você quer fazer então? Eu já estou procurando por um antídoto, deve haver algum. Só nos resta torcer e esperar.

— Bom... Estive pensando em pedirmos a ajuda de Eros.

— O quê?! – Paris se colocou de pé, estupefato. Seus olhos assustados encontraram o violeta apático dos de Loukás. – Ele iria ficar furioso, e na melhor das hipóteses nos largaria nos Arquivos pelo resto da eternidade! Você perdeu o juízo de vez?

— E você ainda pergunta?! – O mais novo também se ergueu, tomado por uma onda de súbita energia. – Garoto, faz dias que eu tô à beira de um colapso nervoso. DIAS!!

— Não me chame de garoto.

— Eu não consigo relaxar, não consigo me concentrar, não consigo pensar em mais nada, tive dois princípios de enfarte só essa semana, meus BPM's estão loucos, e eu tenho a total certeza de que isso não é nada saudável...

— Loukás...

— ... além disso, surgiram urticárias. Urticárias! Minha pele tá gritando, eu tô todo me coçando, todo me tremendo, mas aí já não sei se é de nervoso ou se é uma pneumonia, porque tivemos a brilhante ideia de flechar esse humano num dia frio e nublado, e meus pulmões são fracos para dias frios e nublados, além de que por algum raio de motivo alguém achou que seria uma brilhante ideia os cupidos irem a campo vestidos nessa droga de paninho mixuruca – ele agarrou a própria túnica, puxando-a bem para mostrar a Paris com toda indignação que cabia em seu serzinho. – Sério, POR QUÊ?! Essa coisinha sem-vergonha não protege de nada! Sem falar que deixa meu bumbum todo de fora quando a gente voa, e o vento frio nessas partes nem sempre é algo agradável...

— Loukás, você tá surtando.

— Eu sei!! – Ele gritou por fim. Apontou então o rapaz que, deitado sobre a cama, continuava todo emboladinho feito um tatu – E ele também!!

Paris seguiu o seu olhar. Massageou as têmporas em seguida, numa angústia mais contida.

— Eu tô morrendo de pena dele, Paris – Loukás prosseguiu – nunca pensei que as nossas flechas pudessem fazer alguém sofrer assim, e não me aguento de culpa. Por favor, por favor, precisamos de Eros. Precisamos do nosso pai!

— Ele vai acabar com a gente! Enterrar minha reputação!

— Mas é por um bem maior!

— Não há bem maior nessa história, irmão! Estamos todos no mesmo barco aqui. Nós e esse pobre mortal.

Ambos voltaram os olhares para a figura encolhida de Benjamin. Ele respirava forte, mas pelo menos aquele ataque insano de adrenalina tinha passado, e por isso parecia bem mais calmo – talvez tivesse conseguido até dormir! Era difícil dizer com certeza, uma vez que ele estava de costas. Loukás sentiu as mãos de Paris sobre os seus ombros, e, tirando os olhos do humano, encarou com tristeza a face experiente do bebê mais velho.

— Me escuta – disse o anjo, tentando soar o mais calmo possível – vamos continuar como já estamos: Você vigia o humano, eu pesquiso nos arquivos. Ninguém vai notar a sua ausência, já que você vivia... hã... isolado... mas eu realmente não posso sumir por muito tempo, ou vão desconfiar. É só uma questão de tempo até eu achar o pergaminho com a cura para os efeitos da flecha, e aí vai tudo se resolver! Só confia em mim, tudo bem?

Loukás fungou. E então o enlaçou num abraço forte, que o outro cupido recebeu com imensa e desajeitada surpresa.

— Eu confio em você – disse.

Paris sentiu o coração amolecer, mas assim, só um pouquinho. Estava quase soltando uma palavra de carinho ao menor, talvez a primeira da sua vida, quando alguém bateu à porta e enfim interrompeu aquele momento histórico o acordando para a realidade.

— Benji...?

Era Emi. Paris empurrou o irmão longe.

Benjamin deu um pulo assustado na cama, e a esta altura o leitor Sherlock Holmes já deve percebido que dormindo é que ele não estava. Ergueu o rosto para a porta, os cachos volumosos se rebelando em todas as direções, e por um momento raciocinou se era uma boa ideia interagir com outro ser humano naquelas condições – mas ah, era a Emi. Ele podia ser qualquer coisa perto dela.

— Entra – pediu.

A porta se abriu timidamente, enquanto o rapaz aproveitava esse tempo para empurrar a franja desgrenhada para trás, a fim de não parecer tão miserável quanto se sentia. Seu cabelo era crespo e descia em generosas camadas até metade do pescoço, então a arrumação desajeitada acabou ficando até que bem legal.

Emiko sorriu docemente, ainda agarrada à maçaneta. Era bonitinho a forma como seus lábios finos emolduravam os dentes numa leve forma de coração quando ela fazia isso.

Benjamin retribuiu o sorriso, todo desajeitado.

— Oi... – começou ela então, cautelosamente – você quer conversar?

Não, ele não queria – mas sentia que devia isso a ela: o mínimo de diálogo. Algo sempre tão fácil entre os dois, mas que passara a basicamente nem existir, e justamente quando ela enfim estava lá, fisicamente perto, em carne e osso, e não mais em pixels instáveis de chamadas ocasionais no Skype.

O jovem engoliu um suspiro. Balançou a cabeça.

— Tudo bem... – disse – chega aí.

Silêncio. Emiko pareceu hesitar um pouco, estranhando o estado caótico do quarto; mas afinal acabou fechando a porta com toda delicadeza, mal fazendo barulho, e enfim cruzou a bagunça aos pulinhos, contornando as pilhas de roupa, cuidando para não pisar nas partituras, até que finalmente conseguiu se sentar ao lado dele sobre o colchão. Ambos trocaram leves sorrisos de mútuo entendimento e solidariedade. Paris e Loukás acompanhavam tudo, bem quietinhos.

— Dia difícil? – Começou ela, devagar.

— Tu nem imagina... – Benjamin respirou fundo.

— A senhorita Elisabete me contou um pouco.

— Sabe que pode chamar ela de tia, não é? – Ele sorriu.

Novamente aquele risinho em formato de coração. Emi levou uma mão à boca para disfarçar.

— Eu esqueço – respondeu ela – é costume.

— Eu sei. Lembra que quando tínhamos treze anos tu chamava ela de Lago-san?

— , não! Esse história de novo não!

Ah, sim! De novo sim!

Se Loukás adorava repetir a mesma história da bomba que quase o explodira em sua última missão, Benjamin adorava repetir a mesma história de Lago-San apenas porque 1) ela era extremamente besta, e ele, apesar da sua fama de sério, amava histórias extremamente bestas, e 2) Emiko odiava relembrar aquela gafe, por menorzinha que tivesse sido, e esse era o tipo de oportunidade que melhores amigos que se prezem jamais deixariam passar.

Para entender essa piada interna, basta lembrar que garota, apesar de ter passado boa parte da sua vida viajando pelo mundo com a família, fora criada segundo os famosos costumes orientais recheados de formalidade. Benjamin sabia disso desde o primeiro momento em que a disse um tímido “oi” numa colônia de férias da escola, e recebeu um “olá” carregado de sotaque como resposta. Por isso, quando a apresentou à tia, tentou fazer do jeito que um típico japonês faria segundo as suas minuciosas pesquisas na internet: dizendo o sobrenome primeiro.

— Essa é a minha tia, Lago Elisabete – dissera ele, com sua vozinha falha do auge do constrangimento da puberdade masculina.

E Emi, ciente que os brasileiros não estão nem aí para sobrenome, chegou a achar engraçado alguém se chamar “Lago”, mas não seria indelicada a ponto de comentar.

— Prazeru, Lago-san – Cumprimentara ela, com um sorriso, um leve inclinar de cabeça e o famigerado sufixo -san em respeito.

É claro que o garoto percebera o mal-entendido – mas ele é que não ia corrigir. Elisabete também se calou, achando que essa era, sei lá, a tradução do seu nome para a língua da garota. E assim tia e sobrinho engoliram aquela pequena gafe, esperando ver até quando que ela iria durar.

— "Olá, Lagô-sán!" – O Benjamin do presente relembrou, afinando a voz e tentando reproduzir o antigo sotaque forte da moça – "A Benjamin pôdê sair hojê, Lagô-sán?"

— Aarrghh, para! – Emiko riu, escondendo o rosto entre as mãos. — Xenofobia!

— Aí a tia falava pra mim: "mas que raios que essa menina só me chama de Lago-san? Será que ela acha que eu tenho cara de Lagosta?"

Nenhum dos dois ouviu, mas um certo anjinho de olhos violeta foi o primeiro a rir daquela historinha boba. Paris o repreendeu com um clássico tabefe na nuca, enquanto dessa vez foi Emi quem reagiu jogando um enorme travesseiro no amigo, apesar de também sorrir.

Benjamin o agarrou no ar, rindo, quase esquecido que há minutos atrás estivera no auge do mal humor. Porém ultimamente suas emoções se desregulavam muito rápido, indecisas, confusas, sem saber exatamente qual divertidamente devia assumir o controle do restante do cérebro naquela vez. A Tristeza decidiu então que estava muito triste, mas a Alegria continuava muito alegre, então ambas saíram no tapa para resolver essa parada, enquanto o Raiva e o Medo corriam loucos em plano de fundo, observados com desdém pelo restante das emoções que já tinham aceitado o Caos e agora jogavam pôquer num cantinho.

Enfim a Tristeza venceu a porradaria. Benjamin abraçou o travesseiro jogado, sentindo-se muito deprimido.

Emiko percebeu. Ela levou uma mão suavemente ao joelho dele, que estava entre as pernas cruzadas sobre a cama, e recebeu um sorrisinho triste como resposta.

— Foi mal... – disse ele. – Eu não sei o que há de errado comigo hoje.

— É, nós percebemos... estamos preocupadas, Benji. Você mal fala... não come... está com olhos pretos...

"Olhos pretos?" ele estranhou por um momento. Mas aí entendeu o que ela quis dizer: olheiras. Fazia sentido, estava cheio delas.

Benjamin suspirou mais uma vez; na verdade se sentia uma fonte inesgotável de suspiros. Se pudesse coloca-los num vidrinho e vender a um real cada, daqui a pouco estaria no páreo para disputar a compra do Twitter.

Deitou-se então, agora de barriga para cima, deixando a cabeça pender para fora da cama. A moça, após novamente ponderar um pouco sobre a ideia de dividir a cama com um rapaz solteiro, acabou o imitando. Permaneceram então assim, em silêncio, por alguns confortáveis segundos, apenas ouvindo a respiração um do outro e observando o espaço bagunçado do quarto se desenrolar de ponta cabeça diante deles.

— Você pode me contar o que está acontecer? – Emi tentou novamente, com todo cuidado. – Sabe que pode confiar em mim.

E Benjamin, adivinha? Suspirou mais uma vez.

— Tá bom... – começou, hesitante. – Na verdade... nossa, isso não vai fazer muito sentido... mas eu também não sei o que está acontecendo. Eu me sinto, sei lá... esquisito.

— Esquisito como?

— Eu não sei. Não tenho fome. Não tenho sono. Meu corpo parece estar num estado constante de alerta, como se estivesse prestes a ter uma daquelas crises brabas de ansiedade que eu tinha quando era mais novo, lembra?

— Sim...

— Só que nesse caso a crise nunca vem. Ela parece estar ali, na portinha, prestes a começar, mas... trava. Sei lá.

— Não seria bom ir em psiquiatra? Talvez ansiedade esteja voltando.

— É... – Ele pousou as mãos na barriga. – Talvez.

Silêncio. Tia Betty agora cantarolava Tim Maia na cozinha, e sua voz desafinada fazia algum passarinho chorar em câmera lenta no ninho feito naquela árvore perto da varanda.

— Desculpa... – Benjamin pediu de repente, baixinho, agora buscando os olhos castanhos de Emiko. Os encontrou sobre os seus facilmente – Eu sei que tenho sido um péssimo amigo. Quer dizer, tu acabou de chegar na cidade, e tem toda a questão local, e da faculdade, e do seu pai...! Eu nem perguntei do teu pai!

— Ei, tudo bem. – Ela pegou uma das mãos do amigo, confortando-a com carinho – Nós temos todo tempo de mundo agora... Vai ficar tudo bem.

O rapaz esboçou um sorrisinho imprensado para ela, sentindo-se enfim realmente acolhido de algum modo. Deixou que suas mãos se entrelaçassem uma na outra, sentindo um quentinho do encontro das peles que produziu um efeito levemente apaziguador sobre a angústia constante que sentia no peito.

Ficaram então os dois em silêncio, de mãos dadas, apenas olhando para o teto branco do quarto. Benjamin pouco a pouco sentiu os olhos pesarem; os fechou só um tiquinho, exausto, esvaziando os pulmões numa longa lufada de ar.

Ao lado deles, Loukás abrira um sorrisinho todo derretido. Sussurrou para Paris:

— Eles são fofos juntos.

Paris concordou.

— Sim – respondeu – são uma escolha do Destino. Ele nunca erra.

E naquela noite, pela primeira vez no que parecia ser uma eternidade, Benjamin Lago enfim dormiu como um bebê.


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