Errar é Divino escrita por Jubs


Capítulo 11
10. O Sol, a Lua, e um anjinho tagarela




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Loukás encarava o teto.

E o teto, desafiado, o encarava de volta.

Não saberia dizer há quanto tempo estariam os dois naquele jogo do sério, tão envolto estava o anjinho num emaranhado de pensamentos que não lhe largavam da mente desde que chamara por Paris e não obtivera uma resposta.

Apesar do silêncio, sua voz não ecoou pelo recinto. Apesar da porta fechada, ele viu o quarto ir pouco a pouco ganhando mais luz conforme os raios de sol se apoderavam das sombras. E quando ouviu os passarinhos gorjearem à janela, quase se perguntou se eram Rogério e Luciana que estavam fazendo aulas de canto com aqueles serafins metidos lá do plano mais alto.

A Grande Ficha. Ela demorou a cair. E quando caiu foi como um pedacinho de céu se espatifando bem em cima da sua cabecinha loira, tal qual o filme do galinho Chicken Little.

Loukás estava... livre.

Ai meu Deus.

E agora sem a supervisão de Paris.

Ai meu Deus de novo.

Fazia tanto tempo desde a última vez. Tanto tempo que nem saberia contar.

Ele piscou mais uma vez para o teto descascado, o corpo paralisado na cama denunciando mais um momento de extrema agitação, onde queria fazer tanto ao mesmo tempo que acabava não conseguindo fazer nada— exatamente como tinha acontecido na rodoviária, quando suas mãos falharam em soltar a primeira flecha. Precisava se acalmar se quisesse se mover.

Bom..., começou a pensar; sim, estava livre. Porém não totalmente: tinha uma missão a cumprir. Tinha ainda algumas regras vitais a seguir. E precisaria fazer tudo certinho se quisesse de fato voltar a ser um artilheiro um dia.

Ok, essa era uma motivação decente. O anjo enfim conseguiu se sentar na cama, pronto para pôr a mão na massa.

Se bem lhe dizia a experiência, uma das receitas mais fáceis da atração era a famosa 123, consistindo em: 1) convencer dois humanos de que eles gostavam um do outro, 2) criar uma coisinha aqui e acolá para pintar um clima, e 3) deixar a mágica acontecer – tudo isso, se possível, sem causar algum pré-apocalipse.

Ele só precisava, portanto, se aproximar deles. Um pouquinho só.

Qual foi o conselho que seu irmão tinha dado mesmo?

— Não se aproxime deles – dissera Paris – apenas o que for estritamente necessário. 

Não, esse não, aquele outro conselho lá.

— Emiko Hashimoto – é, esse mesmo. Foi o que disse Paris, no caminho para a casa de Elisabete, lembrando do que tinha lido na ficha dos humanos durante sua última visita ao Paraíso. – Vinte e três anos, filha mais velha, a típica boa garota da família. Parece que recentemente se rebelou contra os pais que não queriam que ela seguisse carreira de ambientalista, e deu no pé. Um desperdício de cérebro e talento, se quer saber minha opinião.

— Não acho que isso me ajude em muita coisa – ponderou o mais novo, caminhando ao seu lado. Ele carregava uma bolsa estampada de pano que tinham comprado na orla, só para não chegar com as mãos abanando no apartamento (e porque, aqui entre nós, aquela estampa de gatinho feliz com os polegares para cima dizendo “me sinto MIAUtástico” era, de fato, miautástica). – Me diz do que ela gosta, do que não gosta, o que procura nos homens, essas coisas.

Paris parou para pensar. Checou então seu caderninho de anotações que apareceu magicamente com um barulhinho de “puff” em suas mãos.

— Hum... gosta de Disney. E planejar passeios. E, claro, animais, natureza, essas coisas veganas aí. Nada muito extraordinário – deu de ombros. – Quanto a homens, parece que ela prefere os altos, os gentis...

— Hum...

— ... E que tenham mãos grandes.

— Hah! Nossa – Loukás soltou uma risada de surpresa. – Específico, tá bom. Violinistas têm mãos grandes? Não sei, nunca parei para reparar. Vou procurar uma trena pra medir a mão dele quando ele estiver dormindo.

Paris meneou a cabeça e chacoalhou o indicador no ar.

— T-t-t-t-t-t-t— estalou a língua, enfático. – Não vai não.

— Ah, mas...

— Não, Loukás!

— Humpf, tá bom... – ele revirou os olhos, conformado – e o que é que você pode me dizer sobre esse humano, então?

— Ah... Benjamin Lago. – Paris trincou os dentinhos, como se só a menção daquele nome já despertasse o pior em si. Despejou num fôlego só: – Vinte e um anos, tia doida, mãe morta, pai caipira, odeia tudo e todo mundo, exceto aquele estúpido violino.

— Uau. Isso tudo estava mesmo escrito na ficha dele, ou...

— Eu meio que sintetizei e resumi por experiência própria. – Ralhou o cupido, fechando o caderninho que desapareceu com uma nova fumacinha mágica, e resmungando em seguida. – Nunca tive tanto trabalho com um rapazinho que mal saiu das fraldas... se ele não fosse tão cheio de “não-me-toques” eu já o teria flechado há muito tempo e nada dessa palhaçada estaria acontecendo.

Vale mencionar que o poder dos anjos do amor, apesar de inegavelmente irresistível e poderoso, não é de todo absoluto. Seu papel sobre a Terra era cumprir os deveres inicialmente atribuídos ao pai, Eros, e jogar amor, paixão, taquicardia e essas frescuralhadas todas nas costas dos pobres mortais que só se preocupavam em chegar vivos na próxima sexta-feira. Para isso, o belo deus havia criado e distribuído suas famosas flechas, que reuniam em suas pontas uma boa dose de paixão em seu formato mais concentrado.

Acontece que a paixão por si só não é a única coisa necessária para fazer nascer o amor. Ela é apenas um dos ingredientes, apesar de ser também o mais arrebatador deles. Para concluir a receita, os humanos precisavam colaborar um pouquinho.

Só para começar, por exemplo, eles deveriam se conectar, se atrair por alguém – era nesse ponto que Benjamin tinha saído uma completa negação, e era nesse ponto que os Irmãos Mais Azarados do Paraíso (como Paris dramaticamente os chamava agora), estavam colocando todas as suas esperanças.

— Tá legal, e o que é que ele gosta nas mulheres? – Insistira Loukás, que já alcançara a escadaria.

Um velhinho barrigudo estava na frente da porta de casa lutando com a miopia e o buraco da fechadura, e não disfarçou um longo olhar encucado para aquele rapazinho esquisito que subia os degraus falando sozinho daquele jeito.

— E eu sei lá – devolveu Paris – já cheguei até a pensar que nem de mulher ele gostava.

— Sério?

— Pois é, pra você ver! Não há nada claro sobre preferências na ficha dele, e nunca o vi reparar em ninguém. Mas tem o registro de uma única pessoa-teste, Letícia, e nome de homem isso não é.

— É, eu acho que não. – Loukás respondeu, parando já de frente para a porta de tia Betty. Um tapetinho fofo de “Bem-vindo” descansava sob seus sapatos. – Enfim, é alguma coisa, pelo menos. De resto eu mesmo posso dar um jeito de perguntar para ele.

— Hah! – Debochou Paris – boa sorte com isso. O garoto vai te odiar de cara.

— Ei – ele franziu o cenho, ofendido – não vai não!

— Ele é um desses jovens intelectuais insuportáveis, e você um bobão tagarela que não sabe nem atirar uma simples flecha sem se atrapalhar todo. – Meneou a cabeça, num suspiro de piedade – Coitado. Esse humano vai fazer picadinho desse seu risinho frouxo aí.

Ai. Aquela doeu.

Paris tocou a campainha.

— Pois eu sou um bobão tagarela muito insistente — o mais novo rebateu, meio na defensiva – E se ele não quiser interagir comigo por bem, vamos ver quem é que vence pelo cansaço.

— É. Vamos ver.

Foi aí que tia Betty abriu a porta, o anjinho disfarçado foi recebido com um gigantesco abraço todo torto pela significativa diferença de altura, e Paris voltou a focar nas suas queridas – e insuportáveis – reclamações.

De volta ao presente, silêncio todo mundo que Loukás estava finalmente tendo sua ideia genial do momento. E dessa vez vamos dar um desconto ao pobrezinho, porque até que não era mesmo tão ruim assim.

Em seu extenso repertório memorizado de Situações Românticas para Humanos (volume I de IV, editora Só Love Só Love, recomendado para todos os alunos do segundo período da Academia de Cupidos) havia um capítulo inteiro dedicado apenas a jantares e lanches porque, aparentemente, comida e velas eram algumas das combinações mais românticas que existem no mundo – contanto que não estivessem colocadas numa encruzilhada, ou algo assim.

Ora, ele estava na casa de humanos. Certamente ainda haveria comida em... bom... algum lugar da cozinha, provavelmente. E não, sopa de mariscos não era uma opção.

Animado, nosso anjinho deu um baita pulo da cama, vestiu a camisa de qualquer jeito e saiu saltitante corredor afora. Iria preparar um belo de um almoço, o mais galante, apaixonante e delicioso de toda história dos almoços! Não saber cozinhar era só um detalhe. Não saber usar um fogão, só mais outro. E o cheiro de queimado que vinha da sala definitivamente não era um mal presságio.

Se bem que, espera. Cheiro de queimado?!

Ele parou diante da divisória da bancada, onde pôde ver um corpinho pequerrucho e entroncado todo envergado em direção ao forno, fazendo chacoalhar um pano de prato enlouquecido que espalhava a fumaça lá de dentro.

Caramba. Tinha esquecido completamente da existência de Elisabete Lago por alguns minutos.

— ... porcaria de forno! – Brigava ela com o pobre do fogão que, apesar das quatro bocas, não tinha voz nenhuma para rebater o desaforo.

Olhando por cima de seu ombro dava para ver as pontinhas pretas de alguns quitutes dispostos em fileiras sobre duas formas de alumínio. Nem a formas redondas com marcas de garfo, nem o cheiro doce de manteiga vencendo o cheiro de queimado deixavam confundir o que eram: biscoitos. Deliciosos biscoitinhos amanteigados, que àquela altura já eram tentação demais para um pobre anjo guloso suportar.

— Me dá um? – Ele não se aguentou em pedir.

Elisabete deu um pulo de susto, bateu a cabeça na borda do forno, e enfim se levantou com uma careta de dor.

Estava vingado o fogão.

— Uh... desculpa – Loukás sorriu amarelo – tá tudo bem com a senhora? – Indagou. Tia Betty o lançou um olhar assassino que o fez emendar – com você. Tá tudo bem com você?

— Bom... – a velha começou a responder – eu estou suja, estressada, queimei uma fornada de biscoitos, meu sobrinho está no hospital, e eu sou oficialmente a pior tia do mundo. Então é, sim, eu estou muito bem, obrigada.

Hum... por que será então que ela parecia tão pouco convencida disso?

— Ah, que é isso – o rapaz arriscou um apoio, meio sem jeito. – Você é uma ótima tia. E o seu sobrinho vai ficar bem.

— É que ele tem andado tão... diferente esses dias! E nem se preocupa em falar comigo. Será que não confia mais em mim? O que foi que eu fiz pra ele decidir que não pode contar comigo dessa vez?

Loukás trincou os dentes, tomado por um acesso de compaixão. “Não se aproxime deles” foi o que dissera Paris... Mas, ah, que difícil pedir isso a um literal anjo diante de alguém em sofrimento! Ainda mais se era um alguém tão pequenininho e frágil daquele jeito, vestido num avental estampado de biquíni, e com fios de cabelo grisalho escapulindo pela redinha na cabeça. A vontade que dava era de pegar aquele mini ser humano nos braços e fazer carinho agressivamente em seus cabelos, repetindo em voz chorosa que tudo ficaria bem.

— Ei... – ele se aproximou então. Segurou Elisabete delicadamente pelos ombros, e conseguiu os olhos dela sobre os seus – confia em mim. Você é uma boa tia, e o seu sobrinho não corre nenhum perigo. Ele vai ficar bem, tá bom? Te prometo isso.

A velha o olhou de volta, fungando. E havia algo naqueles olhos... talvez fosse a doçura que eles emanavam, ou o tom pálido das íris, ou a paz angelical com que eles a encaravam. O fato é que ela ouviu a promessa. E por mais sem lógica que fosse isso, acreditou nela com todo o seu coração.

Um sorrisinho agridoce se formou no enrugado de seus lábios.

— Você é um menino iluminado, Lucas...

— Loukás – ele corrigiu.

— Sim, Loukás. Eu vou me acostumar. – ela deu uns tapinhas amigáveis no antebraço dele e apoiou os punhos nos quadris para observar o forno novamente. – Bem, seja como for, os dois devem estar de volta para o almoço, e eu quero já deixar tudo pronto. Os biscoitos vão pro lixo. Uma pena mesmo.

Oh! Palavras mais cruéis jamais foram proferidas aos ouvidos de um cupido!

— Enfim... – tia Betty o encarou sobre o ombro – quer me ajudar?

Ok, esquece o drama. Loukás voltou um par de olhos vibrantes para ela.

Ajudar?

— É, homem, ajudar. Podemos cozinhar e conversar besteira juntos, que tal? – ela já foi logo abrindo uma gaveta e pegando um avental que tratou de ajustar na cintura do jovem, contornando seu corpo para amarrar as pontas em suas costas. Loukás abriu os braços, surpreso – vamos desopilar, que também somos filhos de Deus e temos barrigas para encher! Ah – piscou – e sem mariscos dessa vez.

— M-mas...

— Sem “mas”!

Ela catou um biscoito sobrevivente e enfiou na boca dele, calando-o instantaneamente.

Loukás arregalou os olhos. Começou a mastigar lentamente, absorvendo a novidade da coisa. Fogos de artifício explodiam em suas papilas gustativas recém-despertas, uma vontade estranha de dançar se apoderava do seu corpo, um coral de aleluias certamente cantava em homenagem ao momento lá de algum lugar dos céus.

Por Eros... isso que era comer?!

— Hum! – foi tudo que ele conseguiu dizer, emocionado.

— Agora fecha o bico e vamos começar. Abre ali a geladeira. Vai me passando o que eu te pedir.

 

 * ☕ *

 

Quando Benjamin e Emiko chegaram em casa algumas horas mais tarde, o pequeno apartamento cheirava a tempero e enchia de inveja os coitados dos vizinhos que não conseguiam pensar em nenhuma desculpa decente para pedir para almoçar por lá.

Emi estava falante e sorridente. Após uns bons pares de anos, tinha vivido uma experiência típica brasileira ao parar para comer num carrinho de lanches duvidoso logo em frente ao hospital, no meio de umas crianças encapetadas correndo para lá e para cá, ao lado de um cachorro caramelo a quem uma delas oferecera uma coxinha, e sob um bonito ipê amarelo que os protegia do impiedoso sol tropical.

Benjamin, por outro lado, vinha com a autoestima abaixo de zero pelo motivo bastante razoável de que, enquanto tinha se sentado ao meio fio para esperar a amiga terminar de comer, um homem literalmente passou e jogou uma moeda em seu colo.

— Ei, eu não sou...! – o jovem começara a reclamar para as costas que se afastavam, indignado. Mas aí desistiu, suspirou, e agarrou a moedinha. – Obrigado, eu acho.

Pelo menos ela deu para comprar um cafezinho, sabe?

Tinha sido uma manhã pacata até então, apesar de cansativa. Na boa e velha UPA do bairro, o disfarce que deveria o fazer passar despercebido tinha acabado surtindo o efeito oposto, e no final ele teve que fingir não perceber os olhares de soslaio daquelas velhinhas agarradas às suas bolsas. Foi atendido pelo mesmo médico da consulta passada, e ambos deram um pulinho assustado ao se reconhecerem – mas a presença de Emiko, com seus sorrisos simpáticos e habilidades de liderar uma conversa, logo deram conta de acalmar os ânimos.

O fim da saga hospitalar tinha se dado na sala de medicação, com o rapaz tendo o braço espetado, dois saquinhos de soro pingando lentamente, e uma foto nos storys de Emi onde ela posava ao lado de um Benjamin completamente apagado na poltrona, com direito a filtro de orelhinhas brilhantes de cachorro, saliva escorrendo pelo canto da boca, e a hashtag HospitalDay sob um emoji de curativo feliz.

Mais tarde ele chamaria aquilo de humilhante. Nós chamaremos de ✨ kawaii ✨.

— Ahh, casa... – suspirou Benjamin, enfiando a chave na fechadura da porta – me lembre de nunca mais sair daqui sem um saco na cabeça.

— Īe, você não é feia — Emiko o repreendeu, ainda lambendo os dedos para limpar o restinho do molho do seu finado cachorro-quente.

— Eu fui literalmente confundido com um mendigo.

— Um mendigo bonitão.

— Emi...

— Hahah, ok, ok, olha... você não é feiaEstá feia. É diferente.

— Hah, então tá bom – ele achou graça – ajudou muito, japinha.

A porta se abriu sob um novo protesto das dobradiças, e o cheiro de comida imediatamente deliciou as suas narinas. A garota soltou uma risada ao mesmo tempo que o amigo a encarava com as sobrancelhas bem levantadas – ele a tinha avisado do tamanho do banquete que os esperava em casa, se bem conhecia sua tia – e juntos caminharam até a cozinha trocando alguns sorrisos de cumplicidade que desapareceram assim que eles alcançaram a divisa do balcão.

Isso porque Elisabete estava de costas, encurvada, cantarolando despreocupada como sempre – e Loukás estava bem atrás dela, segurando uma baita de uma faca apontada direto para a sua coluna.

Convenhamos que podemos entrar em pânico.

“Psicopata!” Berraram os divertidamente de Benjamin. E aí cada um agarrou um controle diferente do corpo para tentar fazê-lo fugir, o fez ter um único destino: tropeçar nos próprios pés e cambalear para trás. Na metade do processo ainda colocou um dos braços na frente de Emi, quase levando a coitada junto.

— Ai! – A garota o apoiou no instinto. Foi o que atraiu a atenção dos dois lá da cozinha, Elisabete enfim endireitando o corpo para revelar uma bela travessa de lasanha que ela terminava de tirar do forno.

Benjamin piscou, incrédulo. A tia, em contrapartida, abriu um grande sorriso, apoiou a comida na mesa, e pegou a faca das mãos de Loukás para colocar ao lado da travessa, murmurando um “obrigada querido” que o sobrinho conseguiu ler em seus lábios.

— Ah, olha só quem está de volta! – ela se aproximou do garoto. O puxou pelas bochechas até a sua altura e encheu de beijos risonhos aquele pobre rosto aterrorizado. – Como foi lá no médico, hein, meu doentinho mais lindo da tia?

Tia Betty cheirava a massa e sujava um pouco suas bochechas de farinha. Lá atrás, Loukás posava orgulhoso, vestido num avental estampando o corpo atlético de um homem de sunguinha – presente que havia sido dado a Benjamin para fazer par com o da tia, mas que ele nunca na vida que ia usar por motivos de dignidade mesmo.

Emi olhou bem para aquela cena. Corou. Depois engoliu um acesso de riso e desviou os olhos, não muito orgulhosa de antes tê-los corrido pelo desenho musculoso de sunguinha vermelha, cima-baixo, cima-baixo.

— Foi... foi... – Benjamin hesitava, querendo responder. Respirou fundo e tentou se acalmar – ... tranquilo... – apoiou uma mão na testa e suspirou baixinho – Jesus, acho que preciso me deitar...

— Hipoglicemia, né? – O loiro sorriu lá atrás.

Ele não teve forças para não responder.

— É... – disse – m-mas tá tudo bem. Me medicaram, passaram uns exames e um estimulador de apetite. Só isso.

— Bem que eu disse – o anjinho alargou o sorriso, triunfante – viu, tia? Não foi nada sério. Eu disse que ia ficar tudo bem.

Benjamin sentiu um algo estranho. Era um revirar nauseento no estômago. Um incômodo em algum lugar da garganta, mesmo sem parecer ter um ponto certo.

Tia. Ele a chamou de “tia”.

Tia esta que o respondeu cheia de risinhos, caminhando até o loiro para limpar um pouco de molho de tomate que lhe sujava o nariz. Deu um tapinha leve numa daquela bochechas rosadas e soltou alguma piada sobre ele estar quase pronto para ir para a panela, fazendo os dois – e Emi – rirem de um jeito todo cúmplice.

Benjamin, portanto, ficara de fora, observando, alheio à estranha intimidade entre os três como um perfeito peixe fora d’água. Desceu os olhos para a tal silhueta masculina com aquela ridícula sunguinha vermelha, que tantas vezes ele tinha se recusado a usar amarrado ao corpo... mas que era seu avental, ora essa!

Sua casa. Sua cozinha. E mesmo assim aquele cara estranho metido a propaganda ambulante do Pinterest caminhava por ela com toda familiaridade do mundo, como se nunca tivesse o nocauteado ali mesmo para início de conversa.

Franziu então as sobrancelhas, incomodado. E aí se incomodou com o fato de estar incomodado, porque poxa, ele se julgava mais maduro do que isso. Lembrou então de como se exaltara tantas vezes num mesmo dia – primeiro com a suposta panela voadora, depois com o homem da moeda, e finalmente com o inquilino com a faca – e pensou que pelo amor de Deus, precisava de um banho, uma xícara de café, sua cama e um cobertor, que era para chegar logo o dia seguinte de uma vez.

Suspiro. Iria começar pelo banho.

Quando voltou para a cozinha, já devidamente limpo, de roupa trocada e com a animação de trinta e dois cavalos mortos, o que o jovem violinista viu foi o mesmo furdunço de quando a tinha deixado, com a mísera diferença que Emi agora fazia parte dele.

Eles pelo visto tinham achado pouca aquela comida toda já feita, porque agora preparavam mais uma; e era a moça oriental quem dava as ordens, com uma bacia apoiada num braço, uma colher de pau na mão, e parte da blusa branca de farinha, sorrindo fácil para o rapaz ao seu lado.

— ... Agora baunilha – pedia ela. O inquilino alcançou um potinho e a entregou – obrigada.

Ela misturou à massa e bateu mais um pouco. Tia betty acompanhava tudo, atenta, que era para não perder a receita.

Benjamin se resignou então a observar mais afastado, encostando-se aos armários. Cruzou os braços, tentou não bufar, falhou miseravelmente. “Não estou com ciúme” ralhou consigo mesmo. E agora levanta a mão quem acredita.

Como se adivinhasse ser o alvo de tão agradável energia, Loukás ergueu os olhos em sua direção. O humano grunhiu e desviou o olhar para qualquer outro lugar que não fosse aquele. Implorou mentalmente para que o loiro não fosse falar com ele, depositando nisso toda sua fé, que ia diminuindo e diminuindo conforme o som de passos se aproximava.

— Oi...

Ah, meleca...!

— Oi.

Silêncio. Loukás se encostou casualmente ao seu lado, meio ressabiado.

— Er... – Começou o cupido, hesitante. Vamo lá, qualquer assunto serve! – Você... você tá bem?

Silêncio. Ele lançou uma olhadinha de esguelha para Benjamin.

— Huhum. – Murmurou este então, tentando deixar claro de forma sutil que não estava a fim de conversa – mas não graças a você.

Silêncio novamente. Loukás virou o rosto para ele.

— Do que está falando?

— Você sabe do que estou falando.

— Espero que não seja aquele papo de panela de novo, porque isso teria sido algo de extrema violência, e eu sou totalmente contra qualquer coisa tipo – o anjo respondeu, levando uma mão solenemente ao peito musculoso da estampa. – Eu tenho princípios de vida, sabia? “Viva e deixe viver”, “faça amor não faça guerra”, “atire flores, não frigideiras”... essas coisas todas aí.

Assentiu com a cabeça, satisfeito. Quando voltou a procurar os olhos do humano, porém, percebeu que este tinha desistido de o encarar, e agora observava as mulheres cozinharem com um certo ar de impaciência.

É, ok. Precisava dar um jeito de recuperar isso.

 – Bom... – Loukás tentou novamente. Arriscou estender uma mão para ele, que a observou de soslaio apenas. – No meio daquela confusão toda acho que acabei nem me apresentando direito... enfim, eu sou o Loukás. É um prazer conhecer você, Benjamin.

O humano encarou aquela mão branca que lhe era oferecida, mantendo os braços muito que bem cruzados ao corpo, e sem fazer lá muita menção de que mudaria algo quanto a isso.

O clima estava constrangedor o bastante para até Loukás, que não era chegado a sutilezas, conseguir perceber. Soltou um pigarro, recuou a mão de volta, e tentou desesperadamente contornar aquela situação com uma torrente de coisas aleatórias que escaparam sem muito controle garganta afora:

— É um nome grego – dizia ele, nervoso – sabe? Boa parte da minha família é da Grécia, o que é engraçado porque não faço a menor ideia de como é por lá. Mas já conheci por alto alguns outros países, inclusive aqui da América do Sul, e lembro até que cheguei a comparar algumas culturas, só que não lembro de nada muito diferente, assim, que valha a pena mencionar. A não ser que existem lhamas. É, elas são tipo cabras que cruzaram com ursos, e talvez uma girafa ou um camelo, mas são fofas mesmo assim. Ei, você já esteve no exterior? A Emi eu sei que já, porque nossa, a gente estava batendo um lero e...

E, caramba, ele continuava falando! Falando, falando, e falando. Benjamin permanecia quieto ao seu lado, olhando distante através da cozinha, sendo um forte candidato a tomar o lugar de Paris naquela corrida pela canonização de ouvintes de anjinhos tagarelas.

Chegou, porém, o inevitável momento em que o loiro percebeu o próprio monólogo. Ele parou, inspirou, cruzou os braços e também se deixou assistir em silêncio Emiko e Elisabete que já estavam no processo de fechar as sobremesas – fofas bolinhas de mochi cor-de-rosa, recheadas com um pouco do feijão doce que a garota trouxera de presente na bagagem.

O gosto da derrota era amargo. A voz de Paris ressoava em sua memória.

“Boa sorte com isso”, ele tinha dito. “O garoto vai te odiar de cara.”

— Hum... – recomeçou então, meio desconsolado – você não é de falar muito, não é?

E dessa vez, por impulso, Benjamin rebateu:

— Já você fala bastante, não acha?

Eles enfim trocaram um longo e significativo olhar. De repente foi como se aquela cozinha ficasse pequena para abrigar o sol e a lua, primavera e outono, dia e noite – dois polos opostos de um mesmo imã olhando nos olhos um do outro como se enxergassem neles a obviedade de seu contraste.

Loukás foi o primeiro a desviar os olhos, desconcertado. Prensou os lábios numa linha reta, cruzou os braços, e observou com muito interesse uma partícula qualquer de poeira sobre o piso, tentando fingir que não estava sentindo o olhar do humano ainda queimar em sua pele como se quisesse perfura-la até flagrar o menor vestígio da sua alma.

— Hum, eu... – murmurou então o anjinho, todo sem jeito, apontando de maneira incerta para as mulheres do outro lado da cozinha. – Eu vou... eu acho que... – tentou de novo. Desistiu. – É.

Deu uma batidinha leve nas laterais da calça. Soltou um suspiro frustrado. E enfim se afastou na direção de Emiko e Elisabete, deixando o jovem para trás.


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