Eternidade — Um Conto da Terra-Média escrita por O Elessar


Capítulo 3
Capítulo 2 — Ouvidos Moucos


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Continuamos nossa história com mais um capítulo semanal. Espero que gostem!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/807352/chapter/3

O cavalo segue sob a égide de um entardecer sombrio, adentrando os meandros de uma cidade de pedra e barro. Encurvado sobre a montaria, Alatar permanece atento, conforme seus olhos azuis recaem sobre os distintos moradores daquele lugar maldito. 

Os edifícios são antigos, o marrom de suas paredes puído pelo tempo. Sua arquitetura é rústica e muito particular. Olhos desatentos poderiam não fazer diferença entre o material das construções e o próprio solo: tudo parece compartilhar uma única cor, dando a impressão de que toda a urbe foi escavada do chão, e não erigida sobre ele. Não há telhados em parte alguma, vez que a chuva não os assola; por outro lado, é comum que os edifícios se aloquem uns sobre os outros, cada vez mais altos e precários — como audaciosas Torres de Babel —, de modo que as escadas de mão são até mais numerosas que as ruas. No geral, tudo passa a percepção de que se trata de um imenso formigueiro humano, com seus inumeráveis cidadãos vagando por todos os lados — e para cima e para baixo. 

Estes cidadãos não são amistosos com nosso amigo Alatar — tampouco trazem a mais agradável das visões. 

Antes vos disse que o Leste era assolado por maldições diversas: o clima hostil, as guerras, a fome, a natureza ímpia dos homens. Isto, é claro, se reflete em suas sociedades. Aqui as pessoas não costumam confiar umas nas outras, e todos tentam levar vantagem sempre. A riqueza e o poder são mantidos com avareza, jamais dispostos com benevolência: os mandatários do lugar veem os que pedem ajuda como parasitas incapazes de alcançar a grandeza por esforço próprio. Assim, provocam nos outros nada melhor do que a inveja — inveja que, por vezes, se expressa nos roubos, nos assassinatos e em outras expressões de rebeldia. A escassez de recursos faz com que todos deem valor demasiado aos próprios bens, e até mesmo o vizinho de anos é encarado com desconfiança: todos podem querer roubar o que é teu. 

Alatar visita este e muitos outros lugares similares há séculos. Já é velho conhecido deste povo, mas isso não se traduz em amizade: a maioria o encara com desprezo ou medo. Conforme ele segue pelas ruas, há quem cuspa em seu caminho e há quem se esconda de seus olhos. 

— Rato de Gondor — explica uma mulher a um jovem rapaz, mesmo que ele já tenha ouvido as mesmas palavras muitas vezes. — Veio pra mentir, pra nos dividir. Tudo pra fazer com que nos dominem mais fácil. Quer nos afastar de nossos aliados e de nossos libertadores para proteger seu amado povo em suas malditas muralhas brancas... acha que nos engana com sua língua de cobra! 

O mago desmonta e caminha lentamente a uma taverna, ignorando a placa de “FECHADO”. A sineta toca quando ele abre a porta. Do outro lado de um salão sujo, um anão o encara de trás do balcão. 

— Ora, se não é o conspirador do Oeste! — diz, um sorriso irônico no rosto. — Ainda interessado em me levar à falência, Mago? Já disse que não quero ser visto com tipos como o seu. Saia daqui antes que os outros voltem a me evitar. 

Alatar ignora as palavras do sujeito e, apoiado em seu cajado, caminha até o balcão, tomando um assento. 

— É bom te ver de novo também, Mîm. Gostaria de hidromel e fumo, se não for pedir demais. 

O anão o olha com antipatia, meneando a cabeça. 

— Pedir demais... como se já não estivesse acabando com o meu negócio... — Apesar de praguejar, ele obedece, servindo uma caneca de bebida e buscando na despensa erva de fumo. 

Alatar começa a beber enquanto analisa o lugar. 

— Fechado a essa hora... é atípico, até mesmo para você. Não diga que a idade enfim o alcançou. 

— Bem que você gostaria, não é? — responde o Anão, ainda revirando suas prateleiras. — Anões são fortes e robustos, e minha linhagem não é tão frágil quanto daqueles outros que você deve ter conhecido no Oeste. Não espere ver fios brancos na minha barba antes de meu ducentésimo aniversário. — Ele enfim traz a erva, jogando-a sobre o balcão. — Você, ao contrário, está cada dia mais parecido com um cadáver. 

Alatar termina de beber, puxando o cachimbo de um dos bolsos e começando a encher de fumo. 

— Acho que já era hora, não é? Começo a sentir que já vivi mais do que deveria. — Suas palavras são verdadeiras, embora guardem muito mais do que um mero anão poderia imaginar. — Mas ainda tenho deveres a cumprir. 

Mîm meneia a cabeça novamente, mostrando indignação. 

— Ainda insiste em suas maluquices, uh? Nunca vi alguém tão cabeça dura em toda minha vida. 

— Ideais verdadeiros sobrevivem ao tempo e às chacotas dos homens, meu caro. Talvez devesse experimentá-los algum dia. 

— E acompanhá-lo em suas pregações alucinadas sobre a volta das sombras, os sinais dos céus e o veneno no vinho dos homens do Sul? Agradeço o conselho, mas estou bem como estou. 

O mago aperta os olhos. 

— Os Orcs marcham novamente sobre Mordor. As figuras de outrora voltaram a vagar, no Leste ou no Oeste. Os Elfos fogem pelo mar. Um suposto Necromante foi visto em Dol Guldur e cada criatura desta terra está mostrando medo, percebendo a instabilidade do clima ou armazenando provisões. É impossível que nada disso tenha chegado aos teus ouvidos, Mîm. Os sinais são ainda mais fáceis de enxergar aqui, tão perto de onde as sombras se deitam. — Suas palavras são graves, e ele estuda o rosto de seu interlocutor com cuidado. — Me pergunto se você é cego ou se simpatiza com os ideais das trevas... o que, de certo, seria uma decepção para seus ancestrais, que jamais se enganaram com Sauron. 

— Ah, sim, sim. O terrível Sauron e seu exército de orcs, que irão nos escravizar e fazer ensopado com nossas crianças. E só você, o grande mágico, está enxergando e avisando a todos sobre a ameaça que nos ronda. — Mîm diz suas palavras com ares teatrais e exagerados. — Os seus truques de ilusionismo não me impressionam, Alatar. Já vi muitos homens hábeis com magia; nada disso vai me encantar ou me convencer das tuas habilidades como profeta. Milhares de vozes se erguem dizendo o contrário do que dizes, mas quer que eu acredite no único louco que anuncia o fim dos tempos? 

— Não quero que acredite em ninguém, mas que use seus próprios olhos e enxergue o que se passa ao teu redor. Só espero que não tenha se esquecido de como usá-los. 

Um momento de silêncio e reflexão se impõe entre eles, seguido por um movimento brusco do taverneiro, que se volta para a limpeza da caneca. 

— Enfim... não diga que veio ao meu encontro apenas para me importunar sobre isso. O que quer? 

O mago acende seu cachimbo e leva longos segundos para responder à pergunta. Após tragar, expele a fumaça fazendo anéis brincalhões. Os hobbits estavam certos em chamar aquilo de “arte”.

— Não. Há dois motivos para que eu traga a falência ao seu negócio... além, é claro, da sua grata e sempre alegre companhia — afirma. — O primeiro deles é o seu bom relacionamento com o governador Ulfang, com quem gostaria de me encontrar. 

O anão bate as mãos sobre o balcão. 

— Enlouqueceu? — A irritação é clara em sua voz. Seus olhos arregalados encaram Alatar, abaixo de suas espessas sobrancelhas. — O governador não quer ouvir suas palavras. Na verdade, meramente repeti-las já pode causar problemas a homens desatentos. 

— Isso quer dizer que há quem as ouça. 

— É claro que há quem as ouça, seu idiota. Se um Mago ou cavaleiro aparecer amanhã dizendo que viu borboletas virarem unicórnios enquanto caminhava sob o poente, haverá quem acredite. Ainda mais se o sujeito tiver a sua insistência desleal. Mas a maioria não fala muito a respeito; eles sabem que muitos o odeiam, e são covardes demais para enfrentar multidões, mesmo que sejam atacados apenas com palavras. Além disso, alguns que ousaram comentar demais sobre os teus agouros foram levados às masmorras... e quer saber? Digo que foi justo. 

O mago ergue uma sobrancelha. 

— Presos? Não vejo guardas atrás de mim que sou o profeta. Por que perseguiriam meros curiosos? 

— Nem mesmo Ulfang é estúpido o bastante para mandar prender um mago. Mesmo que fosse possível, não conhecemos seus amigos e não sabemos do que são capazes. Mas os crédulos podem muito bem ser presos e espancados se ousarem falar demais. Até porque muitos deles insinuaram besteiras sobre o próprio governador. 

— Agora preciso vê-lo ainda mais

Mîm meneia a cabeça, levantando as mãos. 

— Não conseguirá nada comigo. Perdão, Alatar, mas já estou arriscando demais só de tê-lo aqui. 

— Mudará de ideia após ouvir a segunda questão — afirma, colocando as mãos sobre o balcão e se aproximando. O tom repentinamente muda: é evidente que o que será dito agora se trata de um segredo, e mesmo antes que ele seja dito, um laço é criado entre quem conta e quem ouve. A voz do mago agora é sussurrante: — Eu posso recuperar o tesouro dos Pés-de-pedra. 

O taverneiro derruba a caneca, que se espatifa no chão. 

— Está blefando. Ele desapareceu há eras. 

— Se digo que posso, é porque posso, meu caro anão. Afinal, Thorin Escudo-de-Carvalho não foi capaz de retornar à Montanha Solitária e reclamar seu tesouro? Tudo o que ele fez foi sob a tutela de um Mago como eu; não azul, mas cinzento. 

— Eu ouvi as histórias. Mesmo assim, o seu Mago cinzento precisou de uma dúzia de anões, um hobbit e muita ajuda para conquistar o que conquistou. 

— Era um tesouro maior e um dragão maior — afirma. — Estamos falando só do anel, afinal de contas. Imagino que você o deseje. 

— Todo Pé-de-pedra o deseja, mas não sabemos sequer onde está. 

Alatar, mais uma vez, aperta os olhos. Sua mão direita se move discretamente em um estranho gesto conforme as pupilas do anão se dilatam. 

— Eu acho que você sabe onde está, ou ao menos tem uma boa ideia. Acho que você o quer e que vai me revelar o que sabe, e eu lhe trarei o anel em troca de uma reunião com seu governador. O que me diz? 

Há algum tempo de hesitação, durante o qual Mîm cerra o punho com raiva. 

— Ah, está bem... que seja, Mago. Eu lhe direi o que sei. Mas com uma condição: você cumpre sua parte do trato primeiro. 

Nosso herói sorri. Com vigor renovado, bate seu cajado no chão e se levanta. 

— Considere feito, meu pequeno amigo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Bem, apenas uma nota importante: Tolkien descreve bastante sobre a História do cultivo da erva de fumo em "A Sociedade do Anel", de modo que alguns podem estranhar sua aparição aqui, em terras tão distantes do Condado. Há uma explicação para tal, mas não a inseri ainda neste capítulo porque não era conveniente. Embora pareça pouco importante, é bom prestar atenção aos detalhes...

Seja como for, espero que tenham gostado. Sintam-se livres para comentar se assim desejarem! Até a semana que vem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Eternidade — Um Conto da Terra-Média" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.