Sombras de Cerejeira escrita por Kaline Bogard


Capítulo 1
Eu ainda estou só


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!! Demorou, mas veio!



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hana chirite
ko no ma no tera to
nari ni keri

Ao perder as flores
Com o templo se confunde
A cerejeira.
(Busun)

O som do shamisen era agradável. Vinha em notas claras, rápidas e animadas, cantando sobre a primavera de Konoha. A estação tingida de flores exuberantes, quando o vento parecia se tornar rosa ao carregar as pétalas desabrochadas.

Era a estação atual, quente e iluminada, exato oposto do coração de Aburame Shibi, sentado à sombra da varanda, degustando o pacifico chá da tarde enquanto uma serva dedilhava um shamisen. Para ele, sempre seria inverno.

Foi numa primavera que conheceu a Ômega que o encantou e que se tornou sua companheira por quase dois anos. E foi igualmente em uma primavera que Kazumi partiu, levada pelo vento, livre e inalcançável, como uma pétala a cumprir seu ciclo.

Shibi nunca se iludiu. A mulher deixou claro que não fixaria raízes, nem se apegaria a um lar. Sinceridade foi o alicerce da relação que mantiveram. E, ainda assim, doeu quando ela partiu.

Levou consigo a esperança de viver aquele amor. Mas deixou para trás a certeza de que ainda teria chance. Kazumi não era sua Alma Gêmea. Apesar de muito compatíveis, de combinarem como poucos casais, o destino não lhes ofereceu aquele laço raro e belo.

Talvez a vida planejasse trazer um novo amor, ainda que seu lado Alpha sussurrasse nas noites solitárias: isso nunca vai acontecer.

Aburame Shibi era homem de um único amor. Perfeito ou não, seria sempre único.

Mas também era o senhor de um feudo, e um dos mais proeminentes de Konoha, já que os Aburame eram responsáveis pela maior plantação de arroz do país. E como um líder responsável, Shibi sentiu a diferença entre ter uma Ômega ao seu lado por quase dois anos, e o vazio que restou ao local quando Kazumi os abandonou.

Havia uma ausência quase visceral, a falta de um elo da corrente que trazia uma insegurança da qual nunca se deram conta antes. Por dois ciclos das estações tiveram as castas unidas, sentimento que mudou tudo.

Shibi aceitou o conselho de Minato, atual Hokage e grande amigo de infância. Permitiu que o homem servisse de elo de ligação com um clã que vivia em outro país, onde parecia haver um Ômega ainda não comprometido. Aquela casta registrava o menor índice de nascimento entre as três, os assim nascidos eram comumente usados como moeda de troca e em negociações para fortalecer laços de poder e hierarquia.

Shibi estava naquele instante lendo a carta resposta enquanto bebia o chá de valeriana (cuidado que a cozinha teve ao notar o leve estado de agitação de seu senhor). Refletia sobre os termos do acordo para ter o novo enlace com um Ômega.

Já sabia que o pretendente era do sexo masculino, mas isso não era impeditivo para seguir com o enlace. Shibi não agia movido por sentimentos românticos, talvez nem sexuais. Ele queria apenas um vínculo para completar a perfeita união que ligava seu feudo.

O clã que… forneceria? Doaria? Cederia? Venderia?

O clã que enviaria o Ômega exigia apenas uma anistia de vinte por cento no valor do arroz e alguns ninjas habilidosos para trabalhar em suas terras treinando outros guerreiros. Era um preço surpreendentemente justo. Ou não tão surpreendente assim: tendo um Ômega vinculado ao líder Aburame, era só questão de tempo até que conseguissem mais vantagens, valendo-se da posição do cônjuge.

Shibi enrolou o pergaminho com cuidado e deixou ao lado da almofada em que estava sentado. Por fim retomou o chá e tomou o restante em um gole. Já estava morno. Pagaria o preço pedido, mesmo que não lhe fosse confortável negociar algo assim. Se para ele era difícil, como seria para o Ômega? Usado como troca para o bem do Clã, quase um sacrifício. Na verdade, não muito diferente do próprio Shibi, que escolheu esconder fundo no peito a esperança de um dia reencontrar Kazumi, de que um dia a mulher voltasse e aceitasse terminar seus dias ali, ao lado do homem a quem fortemente amou.

No fim, eram marionetes do destino, dançavam na ponta de fios invisíveis sem reais chances de um dia se libertar. Shibi daria o próximo passo pensando no bem do feudo, em fortificar os laços e em suplantar aquele vazio doloroso que a ausência do vínculo impôs a todos.

E quem sabe, talvez, espantar um tiquinho daquela solidão execrável e eterna.

tsure mo naku
no ni suterareshi
fuyu no tsuki

Sem ter companhia
E abandonada no campo
A lua de inverno.
(Roseki)

Terminadas as negociações, ficou acertado que o Ômega passaria aquele ano junto à família, aproveitando a primavera e o verão junto aos entes queridos. Então viajaria em meados de outono, durante o clima úmido e ameno da estação. Destarte chegaria à Konoha antes do inverno e de tal modo abrigando-se em segurança.

Para a cerimônia de casamento nada foi definido. Shibi queria conhecer o rapaz antes de mais nada. Incompatibilidade não era inédito no mundo shifter. Caso não houvesse o mínimo de empatia entre as partes animais (e humanas) não adiantaria de nada.

Por isso Shibi não se permitiu sonhar muito com a solução encontrada. “Muito”, já que houve sim alguma fantasia. Como não pensar no rapaz que se tornaria seu companheiro? Como ele seria? De que tipo de coisas gostaria?

Shibi apreciava passeios a cavalo no fim da tarde. Sentia-se bem lendo ou treinando a escrita, era muito bom desenhando kanji elegantes, elaborados e complexos. Não dispensava o chá da tarde ou um pouco de meditação sob a luz da lua.

Tornou-se um excelente observador, devotado às sutilezas das estações, encantado por detalhes… características que sempre associou à personalidade introspectiva e séria. E que acabaram revelando o quão solitário se sentia, por ansiar que o futuro companheiro apreciasse esses momentos, desejasse partilhá-los.

Saborear o chá da tarde era um gesto confortante que, a cada dia, sentia como se pudesse ficar dividindo-o com alguém.

Era tal o nível de solidão em que se via envolvido, que fingiu não ver, que acreditou não o afetar. Decidiu não se encher de expectativas, embora os servos, a guarda, o braço direito e responsável pela segurança, enfim, todo o feudo se viu preso pela leve ansiedade tão atípica em seu senhor.  Um Ômega vinha viver ao lado dele! Um Ômega completaria a equação e tornaria tudo uno outra vez!

A felicidade corria a meia boca, a euforia se camuflava em planos amiúde. A decisão de oferecer uma festa de boas-vindas veio dos servos e Shibi não os proibiu. Independente do resultado, era algo a se comemorar. E o Ômega merecia o reconhecimento após fazer a longa viagem indo colocar-se à disposição de um Alpha que jamais viu na vida.

Enquanto a festividade tomava forma, Shibi ocupou a mente com outra coisa: como deveria receber aquela pessoa? Na sala principal? No salão de jantar? No espaço das artes? Deveria oferecer algo na simplicidade da varanda? Decidiu pelo conselho de Torune, o escritório parecia adequado para a primeira recepção: nem formal demais, nem tão informal. Trataria o primeiro contato como era em essência: uma negociação. Dali sairia a configuração final da relação entre Alpha e Ômega.

E foi naquele escritório com forte aspecto ocidental que Shibi levou um dos maiores golpes que o destino poderia lhe dar. Estava parado perto da janela, aguardando o cortejo estrangeiro recém-chegado ser recepcionado. Pouco tempo depois uma voz pediu licença antes de correr o shoji estampado com cerejeiras, dando passagem a dois servos estarrecidos e ao Ômega prometido.

Aburame Shibi compreendeu a expressão impactada de seus servos e partilhou do sentimento, ainda que a própria face nada revelasse enquanto observava o Ômega que sequer chegava a um metro e meio de altura e com muita boa vontade se calculava uns trinta quilos. Talvez (e muita ênfase no “talvez”) tivesse completado doze primaveras.

Uma criança.

Shibi perdeu segundos observando o garotinho de cabelos castanhos bagunçados e marcas vermelhas nas bochechas rechonchudas. Tão marcantes quanto os olhos selvagens arregalados que brilhavam com um quê de lágrimas, ansiedade e medo.

Sem reação tentou puxar pela memória e lembrar em que parte da troca de correspondências o país aliado deixou claro o fator fundamental referente a idade do Ômega. Não conseguiu.

Deduziu desde logo que tratavam sobre um adulto, afinal, era para fins de matrimônio e companheirismo! Como ousavam enviar uma criança para cumprir com as obrigações?!

— Olá — por fim encontrou a própria voz. Cumprimentou baixo, enquanto fazia um gesto de cabeça dispensando os servos.

— O-Olá! Aburame! — o garotinho respondeu muito alto, esticando os bracinhos ao longo do corpo vestido com um kimono formal e desconfortável — Sama!!

O título oficial veio depois de certa pausa, quase uma gafe de esquecimento.

— Qual o seu nome?

— Inuzuka Kiba! — a resposta continuou no tom gritado.

Shibi suspirou tentando ganhar tempo. Não restava dúvidas de que era um Ômega, mas… era o referente ao acordo?!

— Veio outro Ômega com você?

— Não! Sou Inuzuka Kiba! O Ômega escolhido pra honrar meu clã e viver com o senhal feudor… AH! — confundiu-se de puro nervosismo, corrigiu-se em voz mais constrita: — Ah, com o senhor feudal Aburame! Ah! Sama!!

Ao final da longa frase as lágrimas, mais do que um brilho suspeito, ameaçavam transbordar.

— É uma honra recebê-lo, jovem Ômega Inuzuka-sama — Shibi respondeu cheio de tato e experiência — Sente-se aqui, vamos negociar.

O pequenino não esperava ser tratado com tanta deferência. Em segundos a surpresa e curiosidade varreram as lágrimas para longe, assim como aquele terrível cheiro de medo que entristecia o olfato de Shibi. Só podia deduzir que seu Ômega prometido fez a pior viagem de toda sua infante vida.

Ao sentar-se de frente para a escrivaninha, Kiba tratou de observar todos os objetos desconhecidos para si sobre o tampo da grande mesa. O adulto observava um tanto penalizado, a mente arguta trabalhando rápido. Não precisava ser um gênio para compreender as entrelinhas: o clã daquele garoto faria qualquer coisa por um bom negócio, inclusive rifar a vida de uma criança enviando-a para tal destino. Um Ômega adulto podia lançar mão de artifícios e artimanhas. Já um garotinho? Como podia ao menos se defender?

E o que aconteceria com ele caso Shibi o mandasse de volta? Sofreria algum castigo? Seria enviado para outro Alpha? A mãe de Kiba teria concordado com o arranjo? Seria conivente? não que fizesse muita diferença, Shibi sabia de famílias inteiras que eram dizimadas sob ordens de senhores feudais, para que pudessem se apropriar de Ômegas. Não era um fato isolado de Konoha ou do País do Fogo. Tal barbárie ainda acontecia em inúmeros pontos do mundo.

A conclusão da história de ambos era clara: jamais aconteceria. Jamais teria um vínculo com alguém tão jovem. A ligação Inuzuka Aburame em prol do feudo desapareceria antes mesmo de existir, pois…

Pois Shibi foi atingido pelo segundo golpe fulminante, tendo minutos separando-o do primeiro recebido. Ele viu todas as tramas melindrosas do destino, foi uma das vezes em que se aceitou mero marionete preso a fios que controlavam sua vida e a vida de pessoas ao seu redor.

O feudo teria a ligação completa entre Alpha, Beta e Ômega. E aquele rapazinho seria sim companheiro do líder do Clã. Quando percebeu isso, sua convicção nunca se abalou. As cartas distribuídas eram todas marcadas.

— Sabe o dever do companheiro de um senhor feudal?

— Sim! — a resposta veio depressa.

— Está pronto para cumprir o seu dever?

— S-sim! — dessa vez houve uma breve hesitação.

Shibi levantou-se da cadeira e Kiba o imitou depressa. Então o Alpha estendeu a mão e recebeu a do garotinho. Seus dedos longos e fortes envolveram aqueles pequenos; frios e trêmulos de nervosismo.

Caminharam em silêncio pelos inúmeros corredores da casa principal, Shibi sabendo que olhos curiosos e incrédulos espiavam entre as frestas. Mas logo seus servos também compreenderiam os arabesco daquela arte.

O destino que sabia ser irônico, cruel e impiedoso; destarte mostrou-se complacente e sábio. Foi o que pensou ao observar o pequenino discretamente, notando que andava ereto, com passos firme e decididos, embora a mãozinha livre estivesse fechada com força revelando os reais sentimentos por sob a fachada de coragem.

Parou o avanço em frente ao shoji da sala das artes, decorado com flores de ameixeira, e correu a porta para o lado. Em seguida esticou o braço e fez Kiba entrar sozinho na sala.

— Você precisa conhecer o senhor do feudo Aburame — Shibi falou baixinho — Converse com ele. Decidam juntos se um dia haverá chance de se vincularem e trazerem honra a esse lugar.

Kiba olhou em volta confuso, até notar o outro garotinho acomodado no fundo da sala. Um Alpha que parecia ter a sua idade, e que usava óculos escuros parecidos com os do adulto que o recebeu. O garotinho parou com a atividade que fazia: treinar a escrita, e passou a observar o Ômega com igual curiosidade.

Shibi quase sorriu quando o pequenino ex-prometido saiu correndo desajeitado com o traje cerimonial e foi jogar-se ao lado do Alpha, que era seu filho primogênito. Único e inquestionável presente que provava seu grande amor vivido com Kazumi.

Deslizou o shoji com delicadeza, sem pressa. Escondendo lentamente de seus olhos a interação que começava entre as crianças. Mais tarde procuraria informações sobre o garotinho, sua família e as circunstâncias que envolviam o acordo com Konoha.

Naquela noite permitiria que a festa de boas-vindas acontecesse, que comemorassem e festejassem o companheiro do líder do clã (em um futuro um tanto distante).

Shibi aprendeu com aquilo o quão solitário se sentia, que nutria esperança de encontrar um companheiro, ainda que o alívio de não ter dado certo fosse maior. Sentia-se solitário sim, mas a dor por enterrar a esperança e o desejo de reencontrar a amante era imensurável. Relegaria a responsabilidade do vínculo para seu filho e seguiria em frente tendo a solidão como conhecida companheira. E então, brindá-la com um golinho de sake.

namida no
hitori yuki
hitori omoshiroki

Às lágrimas
De andar sozinho
De rir sozinho.
(Shiki)


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! ♥



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