Jovens Afortunados escrita por Taigo Leão


Capítulo 5
V




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Alego,

Acho curioso a forma como adultos conseguem parecer crianças às vezes. Da mesma forma, nós, quando nos vemos. A timidez sem sentido, a falta de palavras... Temos tanto para dizer, mas, na hora, parece que não há nada mais importante do que estar frente o outro. É como se meu silêncio compreendesse o seu e isso fosse o bastante.
Costumávamos passar dias inteiros juntos, mas hoje sinto que lhe ver é como um castigo cruel. Entende o que quero dizer?
Não vejo mal em ficar próxima de ti, na realidade, até desejo isso, mas só de me lembrar como me sinto à sua presença; é como se meu coração fosse sair pela boca. Nesse sentido, meu amigo, permanecer frente ti por demasiado tempo seria uma grande tortura. Eu me engasgaria em minhas palavras, soaria frio e decerto sentiria um enorme pavor, ao ponto de até mesmo desmaiar! Entende isso?
Recentemente conheci Clemence, um homem curioso, veja só.
Estava no jardim, cuidando das rosas, quando mamãe o trouxe com ela, com um sorriso exuberante no rosto. Nunca havia visto aquela figura que estava atrás dela. Um homem animado e figurão, com um terno azul escuro e óculos escuros. Não sei o que brilhava mais, se era sua cabeça sem cabelo ou seu sorriso, mas me senti curiosa ao vê-lo, e confesso que me impressionei com o anel que carregava no dedo do meio de sua mão direita. Era um grande anel dourado.
Mamãe me disse seu nome e nos apresentou, dizendo o meu. Ele quis apertar minha mão, mas após ver que as mesmas estavam sujas, abaixou a sua e começou a dizer as palavras que agora escrevo para ti. Da mesma forma que lhe narro agora!
"Ah, fabuloso! Então tu é Natasha? Ouvi muito sobre ti!". Ele realmente parecia animado e ansioso frente à mim, mas lhe confesso que eu não estava em minhas melhores condições, pois como já lhe relatei a pouco, estava cuidando do jardim. Estava com vestes simples, meu cabelo estava preso e minhas mãos estavam sujas de terra. Oh, que vergonha, Alego! Mamãe disse para tomarmos um chá, então corri para o banheiro para lavar as mãos e retirar o avental. Tentei puxar mamãe para me contar quem era aquele homem, mas minhas tentativas de sutileza e disfarce não eram imperceptíveis para aquele homem atento, que parecia analisar nossa cozinha atentamente, observando sutilmente cada minúsculo detalhe daquele lugar.
Ele manteve o silêncio e o sorriso no rosto até o momento em que me sentei ao seu lado. Nesse momento, se arrumou na cadeira – antes estava com as pernas cruzadas e as mãos juntas em cima de seu joelho, com a coluna completamente ereta. Parecia até mesmo um pouco aéreo –, se virou para mim e tocou minhas mãos. "Natasha! Irei direto ao ponto! Visitei minha amiga Vânia a algum tempo e vi um pequeno quadro novo em sua sala de estar. Um quadro tão magnífico! Algo tão belo que não pude deixar de notar. Lhe importunei tanto por tal, que ela logo me revelou o que sabia sobre uma pequena artista que acabara de voltar do exterior. Ela me disse sobre ti, Natasha, e logo me apresentou tua mãe."
Para não me estender muito, pois não tenho muito tempo, cortarei suas próximas falas e irei direto ao ponto. Clemence me pediu um quadro. Um quadro com um tema livre. Me remunerando por tal. Clemence não disse muito, apenas que voltaria dentro de seis dias e gostaria que eu mostrasse meu talento e meu modo de ver a vida neste quadro único, que poderia ou não ter um significado profundo. Raios, ele quer um de meus quadros! Desde que recebi essa visita inesperada estou fazendo as tarefas domésticas com rapidez, para ter mais tempo para finalizar esse quadro, pois mamãe me disse que Clemente não apareceria aqui à toa e ele realmente estava interessado em meu trabalho. Pois bem, agora terminarei este quadro. Não tenho saído muito de casa e pedi para mamãe cuidar das rosas por mim, para me dedicar de corpo e alma nisso. Ela diz que ando eufórica e com pressa para tudo. Até mesmo um pouco aérea, mas apenas quero finalizar logo esse tipo de trabalho que me agrada tanto. De forma que só agora consegui parar para lhe escrever sobre.
O que achas, Alego? Tenho medo de não conseguir impressionar este homem, pois temo que minha mente trapaceie minhas ações, mas aqui está, meu segundo cliente!

Animada,
N.O.

P.S: aceite essa outra rosa que lhe envio com essa carta. Estou um pouco sem tempo, mas com certeza lerei tua próxima carta.

~~~~~

Natasha,


Se soubesse como prezo por ti e o quanto rezo, apenas para que Deus cuide de ti, não se preocuparia com intervenções alheias, principalmente com as internas.
Tenho a certeza de que impressionará este homem, pois é de sua natureza. Tudo que tu faz, faz com extrema dedicação e sutileza; se empenha tanto por tal que seria um grande erro dizer que o resultado não é magnífico para os olhos alheios. Tu sempre se cobra por não atingir a perfeição, mas não entende que o resultado que consegues em teus feitos já é o bastante. E se não for, tu ainda respira, então podes tentar novamente. Não faz mal. Faça um, dois, três quadros e mostre todos para ele. Sei que um irá agradar à Clemence. Tenho a certeza disso.
Agradeço pela rosa, a antiga murchou e já não era mais a mesma. Acabei me desfazendo dela. Com as rosas que me dá, consigo fantasiar que entendo sobre e poderia construir um jardim, mas sei que o todo é muito mais complicado do que parece. Assim como precisamos aguentar os espinhos pela beleza de uma rosa, também precisamos ter o zelo e responsabilidade para manter um belo jardim, e agora, não me vejo em plena capacidade para tal. Ao menos tenho essa rosa como companhia. Uma bela rosa que sempre me remete à bela flor que a separou e enviou para mim.
O trabalho anda muito puxado e assustador. Alguém derrubou os guias e manuais de instruções em um balde com água, então os perdemos todos. Aceito o fato de que eles foram feitos em uma linguagem estrangeira que ninguém entendia, mas, mesmo assim, pelas imagens, conseguíamos ter uma noção do que fazer em situações atípicas. Agora estamos totalmente à deriva, dependentes da sorte, apenas disso! E tomamos cuidado para nada de errado acontecer. Que Deus esteja conosco, anjinha.


Com amor,
Alego.

~~~~~

Alego!


Tinhas razão!
A vida sempre há de nos surpreender e tenho isso como certo.
Ao final do quinto dia ainda não tinha feito o quadro como Clemence solicitou. Fiz um, dois, três esboços, mas não fui capaz de fazer um único quadro que atendesse minhas expectativas. Eram idéias que, quando retiradas da mente, não passavam tanta credibilidade e segurança assim, então acabei desistindo delas.
Quando dei por mim, vi que meu maior problema era eu mesma! Na realidade, minha ansiedade, veja só! Eu não conseguia dormir direito! Passava horas pintando e esboçando, e quando finalmente conseguia pegar no sono, acordava assim que o sol raiasse para continuar a pintar. Que decepção, Alego! Mas veja, dias bons hão de vir, meu amigo.
Percebi que passei dias inteiros em meu quarto, olhando para uma tela tão vazia quanto eu. Eu comia mal, dormia mal e vivia mal, até que mamãe me fez sair de casa. No início, confesso que me zanguei, mas logo a chateação sucumbiu, pois tive a esperança de, talvez, lhe ver pelo centro. Foi para lá que eu fui.
Ali haviam várias pessoas, como bem sabes, mas não vi nada semelhante a ti. De toda forma, o que quero contar é outra coisa! Vi um homem velho e barbudo sentado na pequena praça e me recordei do homem que você tinha me falado antes! Eu estava parada, do outro lado da rua, quando senti uma mão em meu ombro. Confesso que me assustei, mas adivinhe, era Vânia!
Quando menos esperava, eu já estava em sua casa, em seu grande sofá, tomando chá com aquela mulher. No começo estive acanhada e envergonhada. Primeiro pelo local desconhecido até então para mim e pela diferença de idade entre nós – o que eu poderia conversar com alguém assim? –, e o segundo pelo meu quadro estar ali, pendurado na parede como se realmente fosse uma obra de arte. Confesso que me sentia muito envergonhada e estava a um passo de ir embora, até que sua filha chegou.
Clara! Sim, a pequena Clara! Uma garota divertida e fascinante. Quem sabe eu não lhe apresente ela um dia? Viramos amigas!
Antes, conversava sobre coisas levianas e banais com Vânia, talvez pelo modo como eu estava tímida. Mas com Clara, conversei muito. Com Clara consegui me abrir mais e perdi a ansiedade de voltar para casa e terminar meu quadro. Eu queria estar ali.
Clara me contou sobre sua escola e sobre o que vê para o futuro, além de me falar sobre sua irmã que está no exterior. Eu lhe contei sobre o quadro que precisava fazer e após elogiar muito o meu que estava na parede – não entendo bem o motivo, era apenas um jardim –, me deu uma grande inspiração!
"Natasha! Deves mostrar tuas raízes! Tua forma de ver o mundo. Então se perca em suas memórias, use sua mente!", Foi o que ela me disse. Isso pode não significar nada, mas a princípio me deu uma grande idéia. Agradeci pelo chá e me retirei, prometendo sair mais vezes com Clara.
Então cheguei em casa e fiz um quadro! Irei descrevê-lo pois sei que bem provável tu não tenhas a chance de vê-lo e sei como aprecia meus feitos e orgulhos. O quadro possui um prédio com janelas e um pequeno jardim no térreo, com algumas pessoas vivendo suas vidas enquanto são observadas. Na terceira fileira de janelas, na penúltima da esquerda, há uma aberta, e ali há uma mulher entediada, olhando para o jardim.
Clemence chegou pouco tempo depois que finalizei esse quadro e simplesmente adorou! Me agradecendo milhares de vezes antes de levá-lo consigo, deixando 50 moedas comigo, eu mesma as contei!
Estou tão, mas tão excitada pela experiência, que não consigo dormir! Então te escrevo essa carta enquanto estou aqui, olhando as estrelas. Oh, a luz de seu quarto apagou nesse mesmo instante, então acredito que deves ter ido dormir. Tentarei fazer o mesmo, então, até mais, Alego!

Com amor,
Natasha!

P.S.: Espero que dê tudo certo em teu trabalho. A perca dos guias são uma lástima, mas sei que tu és capaz, pois assim como diz sobre mim, tu também é capaz de feitos formidáveis! Aguardo notícias tuas.

~~~~~

Natasha,


Recentemente comecei um novo livro, chamado "As estrelas são para nós", que tem grandes passagens sobre a liberdade. Um fato curioso sobre a literatura para mim é que sempre absorvemos e pensamos conforme, ou refletimos demasiadamente, sobre os pontos de vista que nos são apontados nos livros, seja eles quais são. Os homens gostam de uma boa história e uma boa fantasia, onde às vezes eles podem se imaginar nos personagens que lêem sobre e que possuem mais coragem do que aqueles que escrevem sobre. Um autor de histórias é uma espécime sonhadora, que não possue a coragem de viver conforme imagina, então faz com que seus personagens o façam e até mesmo com que eles pensem e falem sua opinião, como se fossem meras marionetes do entretenimento. Talvez eles realmente sejam isso.
Esse é o meu livro favorito no momento, pois é difícil pensar em outro quando dou tanta atenção a este. É um bom livro, então continuarei lendo até o fim. Aos poucos chego lá.
Que orgulho sinto ao saber que teu trabalho deu certo e foste bem recompensada por isso! Este é mais um passo rumo ao teu incrível destino. A história de uma grande artista, qual tive o prazer e sorte de conhecer.
O que consigo imaginar pela tua descrição do quadro é uma obra de arte, que representa teu tempo no exterior, estou certo? Me diga, meu anjinho, se era assim que passava os teus dias, vendo a vida passando pela janela. Mas não como uma curiosa, e sim como uma pessoa entediada, que não se importa muito com aquelas pessoas ao ponto de querer conhecê-las mais a fundo, ou apenas que não sentia ânimo para tal. Espero que hoje se sinta melhor, e sei que tudo que consegues ver através de tua janela é a minha, que tem ficado fechada nessas noites, mas a manterei aberta hoje, pois sinto saudade da visão das estrelas no verão.


Com amor,
Alego.


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