O Landau Vermelho escrita por Matheus Braga


Capítulo 7
Capítulo 6




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O resto da semana fluiu sem maiores novidades, a não ser pelo convite que Adam fez a Fernanda para jantarem no shopping na sexta-feira à noite. Convite esse que ela — obviamente — aceitou. O gerente cordialmente a buscou em casa às sete e meia da noite e seguiram para o shopping Itaú Power no Fiat Toro verde dele. Fernanda usava uma calça jeans com uma blusa de mangas compridas, mas lá estava Adam com seus sapatos de verniz e um blazer social. Chegando ao shopping, a princípio ficaram apenas andando de loja em loja, olhando um ou outro produto que lhes interessasse e jogando conversa fora. Fernanda acabou comprando uma blusa de que gostou e Adam levou também um perfume. Já passava das nove horas quando desceram para a praça de alimentação.

Para a encarregada, aquele momento não demorou muito a adquirir um ar de naturalidade, como se ela já estivesse acostumada a sair com ele há muito tempo. Caminhando ao lado de Adam, parecia a ela que o período de ausência dele era muito menor do que realmente havia sido. Ela acabou se dando conta — mais uma vez — de que os sentimentos que ela nutria por ele, que haviam ficado latentes por todos aqueles anos, agora fluíam como água corrente. Então ela decidiu apenas aproveitar.

Para Adam, no entanto, estava sendo diferente. Voltar a ter aquele tipo de convívio após viver tanto tempo sozinho ainda lhe causava uma certa estranheza. Por mais que Fernanda fosse uma pessoa conhecida e de quem ele gostava imensamente, ele ainda sentia dentro de si uma certa resistência em deixar vazar suas emoções. O receio de se permitir ser feliz e sofrer um novo trauma, qualquer que fosse, o fazia avaliar cada sentimento com o máximo de cautela. Mas Fernanda, entretanto, não merecia um tratamento frio ou “cuidadosamente calculado”, por isso ele se esforçava para agradá-la.

Lembrando-se dos gostos dela, levou-a até uma lanchonete que servia deliciosos crepes recheados. Após fazer o pedido e se sentarem, continuaram conversando. Falaram sobre a empresa, sobre o cenário econômico e político do país e mais uma porção de coisas, mas ambos sabiam que estavam falando mil coisas sobre tudo e sobre todos apenas para “maquiar” o que realmente sentiam. Por várias vezes seus olhares se cruzaram, e apressavam-se em desviar os olhos. Também pegavam-se falando juntos, e ambos sorriam timidamente e se calavam. Também esbarravam as mãos sobre a mesa, e rapidamente as recolhiam.

O clima entre eles era de romance. E ambos sabiam disso. O impulso natural fazia com que ambos desejassem urgentemente se beijar, mas alguma força invisível parecia criar sobre eles uma sensação de receio. Parecia que, de alguma forma, não era o certo a se fazer. Por fim, os crepes recheados chegaram e eles se puseram a comer. Mas mesmo assim, vez ou outra se pegavam espiando um ao outro pelo canto dos olhos.

No fim das contas, acabaram falando sobre livros.

— Foi isso que me atraiu em Jogos Vorazes. — Fernanda estava dizendo, enquanto cortava seu crepe recheado com queijo e goiabada — Porque não é uma simples história modinha, e sim um verdadeiro romance político.

Adam deu de ombros.

— Romances policiais e de suspense fazem mais meu estilo. Já li todos os livros do Sidney Sheldon. — Ele emendou, bebendo um pouco de refrigerante — Mas meu livro preferido é O Último Passageiro, do Manel Loureiro. Não é o melhor que eu já li, mas a forma com que o autor conduziu o enredo do livro, deixando para revelar quem é “o último passageiro” na última linha da história, foi fantástica.

— Nunca ouvi falar. — Fernanda devolveu — Fala sobre o quê?

— Sobre um transatlântico encontrado abandonado no meio do oceano Atlântico em 1939. Ele passa os setenta anos seguintes abandonado numa base militar secreta, mas um magnata o compra e o reforma para levá-lo de volta ao mar. Uma jornalista viúva embarca para acompanhar a viagem, mas começam a acontecer coisas muito estranhas à bordo, levando-a a crer que o navio é, de alguma forma, amaldiçoado.

A encarregada ergueu uma sobrancelha.

— Navio mal-assombrado. Que coisa clichê.

— A temática é, com certeza. Mas esta história em específico passa longe de ser clichê. — Ele defendeu, comendo o último pedaço do seu crepe.

— Ok, se você diz. — Fernanda continuou — Você já leu O Vôo da Libélula?

— Já. — Adam assentiu, ainda mastigando — Uma história interessante, mas a narração é muito chata. A idéia do autor de transformar noventa por cento do livro no diário de um personagem morto foi deprimente. Já li fanfics melhores na internet.

A encarregada empertigou-se na cadeira, surpresa.

— Não creio.

— No quê?

— Você, Adam Peixoto, lendo fanfics na internet?

— Sim. E daí? — O semblante dele era de obviedade.

Fernanda fez um gesto negativo com a cabeça.

— Isso, sim, é uma surpresa para mim.

— Não entendi esse seu drama. — Ele fez um gesto vago com a mão direita — O universo das fanfics é muito mais extenso e diversificado do que o da literatura “culta”. Você se permite viajar muito mais na imaginação.

Mais uma vez, lá estava ele a surpreendendo. Fernanda fez questão de lembrar a si mesma que esse havia sido um dos motivos que a levara a namorá-lo. O convívio com Adam era constantemente permeado por novas informações, novas sensações e novas experiências. Ele sabia como ninguém como não ser monótono.

E já que o assunto da vez era sobre fanfics, Fernanda decidiu continuá-lo.

— Conte-me mais.

Adam cruzou as mãos embaixo do queixo, pensando no que falar.

— Ah, sei lá. — Ele disse — Semana passada, por exemplo, descobri um site de fanfics muito bom. Tem muita coisa sem noção por lá, mas também achei textos excelentes. Lá mesmo eu descobri uma fic chamada Folhas de Outono, que fala de uma agente secreta que se apaixona por um mafioso. Apesar de faltar uma coisinha ou outra, achei muito bem escrita e muito original.

Fernanda fez que sim com a cabeça, admirada. Nunca iria imaginar que ele, que agora passava uma imagem tão sóbria, passasse parte de seu tempo livre lendo fanfics. E lá estava ela com cara de paisagem novamente, com a cabeça vazia e encarando-o sem dizer nada. E lá estava ele, correspondendo o olhar pela primeira vez naquela noite. O ar ao redor deles pareceu ficar subitamente carregado de eletricidade estática, como se os dois fossem polos opostos de um imã e se atraíssem mutuamente.

O ato de inclinar o corpo, um em direção ao outro, foi inevitável. Aproximar os rostos e levar as mãos ao queixo um do outro era algo que já estava no modo automático. Ia finalmente acontecer. Após tanto tempo afastados e após um reencontro que havia deixado um enorme ar de incerteza entre eles, iriam finalmente descobrir se havia alguma chance de ficarem juntos novamente. Aquele beijo seria a confirmação — ou negação — necessária que precisavam.

Suas bocas já estavam a poucos milímetros de distância. Sentindo o perfume inebriante que ele exalava, Fernanda permitiu-se fechar os olhos, em total deleite. Foi inevitável lembrar-se do quão bem ele beijava e do quanto ela desejava sentir os lábios dele nos seus novamente.

E ia acontecer. Ia...

— Ora, ora. Então é verdade mesmo. — Uma voz masculina e desagradável se fez ouvir — O almofadinha realmente voltou.

Adam e Fernanda se afastaram rapidamente, como se tivessem recebido um choque. Diante deles estava de pé um homem moreno, de cabelo curto e semblante desaforado. Fernanda conhecia-o de algum lugar, mas não se recordava de seu nome. Adam, no entanto, nem hesitou.

— Olá, Jefferson. — Ele cumprimentou, gélido.

O outro fez um gesto negativo com a cabeça.

— Achei que você também já tivesse morrido. — Ele soltou, num tom venenoso.

A espinha de Fernanda congelou. Subitamente, temeu pela reação que o gerente teria. Entretanto, Adam apenas ajeitou-se na cadeira e sorriu. Um sorriso frio e calculista coroado por olhos semicerrados e suas sobrancelhas angulosas, deixando-o com o ar mortal de uma cobra.

— O que eu posso fazer? — Ele disse, suavemente — Não podemos ter tudo, não é?

— Infelizmente. — Jefferson concordou, num tom ácido — Oi pra você também, Fernanda.

E então, ela se lembrou. Era um antigo colega de classe deles, da época do ensino médio. Antes de namorá-la, Adam havia flertado com a irmã de Jefferson por algumas semanas, mas nada muito sério. Como ele nunca havia aprovado o relacionamento e alfinetava Adam constantemente para afastá-lo da irmã, passaram a se odiar desde então. E para piorar ainda mais a situação, no dia do acidente de Alan no colégio Jefferson não havia tido sequer a discrição de ocultar sua expressão de satisfação ante o acontecido.

— Boa noite, Jefferson. — Ela devolveu o cumprimento, subitamente apática.

E fez-se o silêncio. Adam e Jefferson permaneceram calados, fuzilando um ao outro com os olhos, e Fernanda sobrando como um castiçal entre eles. A coisa ia ficar feia, ela podia pressentir.

— Adam. — Ela chamou-o, baixinho — Porque nós não...

— Você não devia ter voltado. — Jefferson sibilou — Não há mais nada nesta cidade que te interesse.

— Antes de qualquer coisa, Jefferson, como você soube que ele havia voltado? — Fernanda se pronunciou, indignada.

— Ah, por favor, Fernanda.  — Ele alterou o tom de voz, fazendo com as pessoas em volta olhassem — O bairro inteiro já está sabendo. Você sabe o quanto a dona Graça é fofoqueira. Todo mundo já está dizendo que ele só voltou pra embolsar o dinheiro que o pai dele deixou.

Apesar de ver este tipo de cena acontecer constantemente na televisão, Fernanda nunca pensou que um dia passaria por algo semelhante. Uma acusação tão chula e infundada chegava a ser ridícula. Adam, por sua vez, permanecia sentado de forma elegante com a mão esquerda pousada sobre a mesa, enquanto segurava o queixo com a direita.

— Pense o que quiser, Jefferson. — O gerente disse, polidamente — Mas agora nos dê licença, por gentileza. Estamos no meio de um encontro.

E apesar do climão que dominava o ambiente, Fernanda ficou estática. Ele havia mesmo dito que estava em um encontro? Sim, ele havia dito que estava em um encontro. Então isso confirmava que ele ainda sentia algo por ela e que ele também estava disposto a dar uma nova chance a eles. Se estivesse em um desenho animado, a encarregada vomitaria arco-íris.

Mas aquele não era o momento de pensar naquilo. Ela só foi trazida de volta à realidade quando Jefferson continuou com seu ataque desnecessário a Adam.

— Por que você não volta para o túmulo de onde saiu? — Ele devolveu para o gerente.

— Jefferson, pare! — Fernanda se pôs de pé, exaltada — O Adam não te fez nada! Vá embora e nos deixe em paz!

A movimentação já havia atraído o olhar das outras pessoas no shopping. Um segurança prestava atenção neles, mas mantinha-se a certa distância. Seu olhar, no entanto, foi notado por Adam. O gerente se levantou, ajeitou o paletó e pousou a mão delicadamente no braço de Fernanda.

— Não, Fernanda. Está tudo bem. — Ele disse, num tom neutro — Vamos embora.

A encarregada pegou sua bolsa, que estava dependurada na cadeira, e passou-a pelo ombro, virando-se para Adam e indicando que poderiam ir. Quando fizeram menção de deixarem o local, Jefferson avançou sobre o gerente.

— Isso é bem típico de você, Adam. Virar as costas e nos deixar falando sozinhos. — Ele gritou, erguendo o punho no ar — Volte aqui. Ainda não acabei com você.

O soco teria atingido a bochecha direita do gerente desastrosamente, mas ele se virou numa fração de segundo e segurou a mão de Jefferson em pleno ar. O impacto entre as mãos dos dois gerou o som inconfundível de um tapa, e uma criança que estava próxima a eles começou a chorar, assustada.

— Não é questão de ser típico de mim ou não, Jefferson. — Adam disse, quase num sussurro — A questão é que eu procuro viver com elegância, e você não passa de um favelado inconformado.

— Ora, seu...

Jefferson ergueu o outro punho, tentando atingir Adam no rosto novamente, mas sua mão foi segurada por ele novamente. Num movimento fluido e incrivelmente rápido, o gerente torceu os braços do moreno, produzindo um desagradável som de estalo, e chutou-lhe a parte de trás dos joelhos, deixando-o prostrado no chão. Jefferson soltou um grito de dor. Mantendo os braços dele seguros com as mãos, Adam abaixou-se.

— Primeiro eu peço com educação. Depois eu parto para a ignorância. — Ele disse — Eu não voltei para Contagem porque eu quis, Jefferson, e sim por uma obrigação moral. E independente do motivo, você não tem nada a ver com isso. Então não me perturbe novamente.

As pessoas ao redor se colocavam de pé para observar a cena, e a criança que chorava era amparada pelos pais, que olhavam para Adam com um ar severo. O segurança do shopping aproximou-se rápido.

— O que está acontecendo aqui?

— Nada. — Adam respondeu, soltando Jefferson e ajeitando o paletó novamente — Já estamos de saída.

E após Fernanda passar seu braço pelo do gerente, viraram-se e caminharam em direção à saída. Mantiveram-se em silêncio até chegarem ao Fiat Toro dele. Depois de educadamente abrir a porta da caminhonete para que a encarregada entrasse e ir se sentar no banco do motorista, Adam deixou escapar um suspiro.

Fernanda percebeu.

— Está tudo bem? — Ela perguntou, afagando-lhe o braço.

Ele empertigou-se no banco, olhando para frente com um semblante vazio.

— Me desculpe, Fernanda. Eu sabia que isso ia acontecer. — Ele lamentou — Mais cedo ou mais tarde.

— Adam...

— Não estou dando razão a ele, Fernanda, mas eu também não sou lá o queridinho da cidade. Tenho muitos desafetos por aqui, e era por isso que eu estava tão receoso em voltar pra cá. Não sei por que...

Ela esticou o braço e pousou o dedo indicador sobre a boca dele, calando-o. Apesar da surpresa que o gesto lhe causou, ele não protestou.

— Não importa se a cidade inteira te odeia, Adam. Ninguém aqui te conhece de verdade. — Ela disse — Mas eu conheço. Sei quem você é. E vou estar aqui para te dar todo o apoio que você precisar.

Dito isso, Fernanda recolheu-se de volta ao banco do passageiro, pousando as mãos sobre os joelhos e observando-o, aguardando a resposta dele. Por um segundo chegou a recriminar a si mesma, julgando seu ato ousado ou desesperado demais. No entanto, decidiu deixar que o gerente decidisse por si mesmo.

Adam permaneceu como estava por alguns segundos. Calado, com o maxilar retesado e uma aparência pensativa, mas com os olhos fixos nela. Parecia estudá-la enquanto absorvia o que ela havia acabado de dizer. E quando ele finalmente decidiu agir, não precisou dizer uma única palavra sequer. Era o certo a se fazer, e o momento era totalmente adequado.

Ele queria aquilo. E ele sabia que ela também queria.

Inclinando-se sobre o console central do Fiat Toro, Adam agarrou Fernanda pela gola da blusa e beijou-a com intensidade.


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