Suave como o Passar dos Dias escrita por MT


Capítulo 1
Bola Quadrada


Notas iniciais do capítulo

Hora do poema:
...
Assim em cima da hora é difícil
Devia ter tido mais tempo
Mas agora a frente não há mais campo
Saco, acabou mesmo?
Quem cogitaria
Em um piscar a morte diria a esmo
´´Simbora, arrombado``



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Entre as vias. Cercadas por casas de paredes verdes, amarelas, brancas. Com duas janelas abertas a cada cinco. Bandeiras com as cores do céu e das maçãs atadas em cordas.

O fluxo dos pés e vozes enchendo o ar. Manhã com brisas frescas.

Vestígios de músicas. Bardos e pessoas com garrafas de cerveja nas mãos e passos trôpegos. O cheiro do álcool subindo junto a milho assado. Carne, fumaça de churrasqueiras.

Existiam três grandes colheitas ao longo do ano. E três comemorações com três dias de duração para cada.

Andava com sandálias de palmilhas acolchoadas. Rentes ao pé, confortáveis. Uma camisa lilás sobre o tronco, quimono curto e vermelho amarrado à cintura. Garrafa de vinho na mão.

Bebeu mais um gole. Chutou um bêbado sentado com pernas esticadas na calçada. Riu.

Ele rolou. Cabeça acertou degrau. Primeiro dos três que levavam a bancada do restaurante ''FrangOlavo''. Aberto, os bancos ocupados por clientes já servidos.

Chapéus de palha na cabeça das três crianças. Acompanhando-as duas duplas de adultos. Os jovens e um dos responsáveis riram e apontaram o homem chutado. A mulher com cabelo amarrado em duas tranças laterais censurou. ''Isso é errado, parem''.

O bêbado praguejou. Palmas contra o terceiro e segundo degraus. Camisa xadrez azul, curta pelagem cinza sobre a pele. Orelhas felinas e uma cauda quieta e longa.

A agressora aproximou-se, agachou a um passo dos sapatos negros dele. Observando. O arrastar, o dobrar das pernas, o forçar dos braços para erguer-se, a tênue movimentação da cauda.

Bebeu um gole do vinho. Estava a dois ou três mais do término. A risada escapou da boca.

O sujeito a xingou. E escorregou. Queixo encontrou pedra e o odor do sangue licantropo subiu. Então inércia.

Morto?

Cutucou a panturrilha sob a calça desgastada do homem. A carne resistia ao pressionar. Pôs um pouco mais de empenho. Sentiu ceder o músculo.

Sorriu. Deslizou o indicador até o calcanhar do licantropo com traços felinos. A cauda dele mexia-se, às vezes tocando a mão da oni. Mulher com longos chifres, cabelos negros. Olhos púrpuras brilhando em interminável malícia.

Pessoas passavam pela rua. Encaravam, ignoravam, seguiam. O grupo no restaurante, os adultos, murmuravam a cena. Os menores comendo e a falar ruidosamente. Sobre teatros de fantoches, gincanas, cães com um olho só.

A oni bebeu o penúltimo gole. E fez a garrafa pairar mais inclinada, a colocar-lhe dentro também o último. Era doce, forte. O calor espalhava-se pelo tronco conforme descia ao estômago.

''Pedia acompanhamento, pedia carne''. Riu mais um pouco, íris lilases vasculhando as costas do indivíduo. A barriga dele ultrapassava ligeiramente o peitoral em volume as laterais. A bunda amassada e larga.

''Eis aqui vossa carne'' murmurou com sorriso bêbado e segurou a cauda cinzenta do sujeito.

A pós a frente da boca. Pelos macios. Quentes. Fiapos tocavam a entrada do nariz. Cheiro de manhã em campos verdejantes.

Casa tinha fragrância similar. Lugarzinho sete anos no passado. Amplo, cercado por paredes negras com silhuetas brancas de pessoas e criaturas pintadas em si. Árvores de pétalas vermelhas e rosadas pontilhando a grama entre as treze residências.

Crianças de pele branca, cornos longos e olhos lilases. Adultos com estas características, mas também alguns negros e vermelhos. Dotados de pequenos chifres e íris negra.

Papai e mamãe. Sujeito alvo e distante. Mulher escura e rígida. Conhecera pouco dele além da posição social na família, conhecera pouco mais dela que a professora e figura de quem esperava futilmente comentários afetuosos. Que as notas morressem, que o desempenho despencasse num abismo. Ame o indivíduo, não uma maldita performance.

A oni riu. Deu um puxão na cauda do licantropo. O gemido deixou a boca dele alto e agudo.

''E não seja o idiota que espera desesperadamente algo de alguém''. Durante noites sozinha em um quarto escuro. Sob ordens para limpar as varandas, colher frutas, fazer exercícios físicos e acadêmicos, lavar pratos. A falta de qualquer outra palavra dirigida unicamente a si. Estivera absurdamente certa de que teria ''algo de alguém'' por bastante tempo.

O lábio fincou-se reto. Agarrou a gola da camisa xadrez azul. As mãos dele subiram ao local. Protestando, praguejando. As pessoas no restaurante pondo-se de pé. O dono do estabelecimento esticando a face balcão a fora.

A oni fez o tronco do homem deixar o chão. Quadris e pernas ainda no solo. Dobrado, tenso. A base da coluna prestes a soltar um estalo.

Paraplégico? Dividido ao meio? A língua da oni umedeceu os lábios. Mágico, musical. Qualquer das opções.

Lambeu o pescoço do bêbado. Ele soltou sons. Gemidos? Xingamentos?

''Quem liga?''. Ficou de pé. O levantando sob a mão. Ouvia-o. Ouvia o grupo no restaurante. Ouvia os transeuntes. Com suas pequenas vozes. Seus sustos, dúvidas. Os mudares de calçada. Os apressares de ritmo. Os murmúrios.

Ovelhas percebendo o lobo.

Gargalhou com calor crescente. Levando o rosto do licantropo contra parede. O baque foi tênue. Ele movia-se fracamente, as palavras emboladas e lentas.

''Ninguém importa''. Lágrimas. Descendo pelas bochechas do sujeito. O fez recuar um dedo da parede. ''Despido de valor como tudo que o cerca e todo ser que cerca''.

Membros dele quietos e soltos.

''Acooorde, dorminhooooco!''. O mandou contra parede. O concreto pintado de verde rachou sob ruidoso som de impacto. Aromática melodia vermelha escapou da face do sujeito.

Sorriso, toda prazer. A mão livre descida ao próprio membro reprodutor. Aproximou o licantropo da boca e lambeu. Como um gato a um pires de leite, o rosto repleto de rubro do homem.

Passos envoltos em metal ecoaram nas vias. Haviam ocorrido gritos, o grupo nos bancos do restaurante partido e ovelhas tinham balido ofensas e ordens.

Eletricidade tênue tocou a pele da oni. A sensação de energia mágica pairando no ar. Pouco maior que a do gado olhando-a a distância. Três, som das botas denunciou.

Ovelhas com dentes. As deu um vislumbre do lilás de seus olhos. ''Que gentil vir visitar o lobo mau''.

Cinco, dois usavam sandálias e um peitoral simples de couro. A mulher à frente, com longas orelhas e íris azuis, tinha a mão no cabo da espada.

Lábios da elfa negra moveram-se. Som saiu. Uma ordem? Pergunta?

''Quem se importa?''. Ninguém importa. Lambeu o sangue do licantropo do rombo na bochecha. Segurando-o pelas costas da camisa, os joelhos dele dobrados e sem tensão contra o chão.

A elfa negra gritou uma ordem. A energia mágica, ''mana'', de dois que a acompanhavam espalhou-se pelo solo. Ligeiros toques de eletricidade dedilhando a pele. Fraco, muito fraco.

Aço foi desembainhado enquanto círculos mágicos eram desenhados por mana controlada remotamente. Em curta meia lua ao redor da oni. Azul da elfa e lilás da figura demoníaca encarando um ao outro. Solidez e malícia. A soldada suava. Seu alvo lambia calmamente o rosto do homem desacordado.

Voz foi solta novamente pela militar. ''Ouroboros'' reconheceu em meio a elas. Uma interrogação no final? Era uma questão? Parou de degustar o bêbado.

Jormungand Ouroboros. Agora adotava o nome Laís. Um nome mais curto, menos atado a família incompetente que teve.

A soldada avançou. Estruturas cilíndricas feitas com o solo subiram.

Piscou. Língua movendo-se na boca, checando vestígios do vinho que tomara. Os olhos passearam pelo assoalho. A garrafa pairava deitada ao lado do degrau. O que colocara naquilo mesmo?

Fizera a bebida com a habilidade de recriar substâncias. Misturara o vinho da safra élfica do ano oitocentos e... semicerrou as íris. Girou, pondo-se de frente aos militares. Corpo do bêbado largado.

Terra na forma de tentáculos enrolavam os pés de Laís. A lâmina, da elfa gritando, partia rumo ao ombro reta.

Ergueu um dedo. ''Psssiu'' fez soar o pedido de silêncio. Ponta de espada encontrou-lhe indicador a seguir.

''O'' tomou o formato a boca da oni por um momento. Então o dedo dobrou sobre a arma, prendendo-a. Um fio vermelho escorrendo do ponto de encontro.

Dentes da mulher com longas orelhas cerravam-se. Músculos tensionavam e eram marcados por veias. Empurrando a lâmina.

Três segundos. Laís fechou os olhos. Não fazia ideia do que colocara naquela bebida.

Fitou as pernas. Os cilindros de pedra controlados por magia já alcançavam-lhe as coxas. Dois dos soldados restantes faziam suas armas rasparem couro da bainha a fora.

Podia ouvir-lhes os balidos. Mas as palavras...

Pousou a mão na testa, arrancou a espada da elfa com a outra. Atirando a arma contra um poste. Que partiu ao meio e caiu sobre uma velha fuxicando com outras duas. Terror ecoou das bocas. Os magos, parte dos soldados enfrentando Laís, fitaram rumo as senhoras. Restos de público dividiram-se em fugir e se afastar um pouco. Para assistir.

A elfa negra virou a face para seu grupo. Som, som.

O estômago da oni girou. Gasosa tontura subindo até o cérebro. As vozes tornadas agulhas pinicando-lhe violentamente os ouvidos.

Pisou a frente, as amarras de terra quebradas sob o movimento. A perna da oni tremeu e dobrou. Tensionou os músculos. Uma veia pulsando na têmpora. Fitou a boca em movimento da soldada.

''Calada'' murmurou. A mão acertando um tapa na mulher. Dentes, elmo e sangue voaram. Como um fantoche com as cordas partidas, a elfa negra bambeou dois passos à esquerda. E despencou.

O sol pairava no meio dos céus. Luminoso e quente em demasia. Laís abanou a si com o puxar da gola da camisa. A garganta seca.

Então pancada. Espada contra lateral do seu crânio. O tronco pendeu a direita, rosto virou a mesma direção. A falta de espera de algo assim estampado na face de Laís. Seguido de frieza.

Sentença de morte. A expressão.

A arma foi erguida novamente. Um dos soldados que acompanhavam a elfa negra. Os magos tinham dividido-se entre ir a líder e a senhora. O restante, o esbravejar indicava, se aproximava zangado.

Aço tornou a descer para o pescoço da oni. Foi quando o silêncio recaiu sobre o homem empunhando a espada. Mestiço, cabelos amarelados como vampiros e elfos, íris negras de humanos. Atlético, sem barba.

Laís olhou a cabeça dele. Despida do corpo que deixou caindo a suas costas. O vermelho da vida escorrendo por entre os dedos. A expressão violenta que o rapaz tinha um décimo de segundo atrás ainda ali. Antes da oni o decapitar e dar dois passos a frente.

O levantou com ambas as mãos a altura do rosto. Lilás fitando a musculatura da face do morto relaxar. A ligeira centelha de vida no olhar sumir.

Laís sorriu. Mais puramente que qualquer anjo. Em pé do outro lado da rua, encostado a parede, o bêbado. A garrafa ao lado dos degraus que levavam ao balcão do restaurante. Na borda da calçada a elfa negra com a cabeça no colo do mago. Cinquenta passos a direita o segundo mago encarava a carcaça de carne, ossos e sangue sob o poste.

''A velha... uou, essa morte foi tão inesperada que estou até sem palavras''.

O soldado restante ainda virava-se para procurar pela pequena figura demoníaca. A mulher com longos chifres manchados de carmim no topo. Com olhos lilases de más intenções.

''Ah! O réquiem da vida!''. Beijou os lábios da cabeça sem corpo. Afastou, encarou o nariz fino e longo. Gargalhou.

E o arrancou com dentada. E o mastigou soltando leves gemidos de prazer. E o engoliu de olhos fechados. Sentindo cada partícula do calor divino espalhar-se pelos nervos.

A enxaqueca passava. Os sons eram só sons.

O vermelho e quase plano rombo no centro do rosto humano. Respirou fundo. Insignificante e impotente humano mestiço. O sujeito em suas mãos.

''Mas delicioso, pedaço de paraíso embalado em banalidade''. Lambeu o antigo local do nariz.

Diminuiu o circular de mana pelo corpo. Estava rápida demais, as pequenas ovelhas não conseguiriam notá-la nesse ritmo.

Apenas sete na extremidade direita da via. Transeuntes comuns. Que gritaram diante o homem sem cabeça e então a cabeça sem corpo. A ergueu com uma mão. Sorriu para eles. Clara sob luz da manhã. Nítida quando pesadelos deveriam ser delírios do sono.

Sentiu a ponta da espada do soldado tocar-lhe as costas. ''Mons'' conseguiu discernir no vociferar dele. Então girou antes que camisa sequer fosse rasgada. O sujeito passou reto. Negro, olhos esticados e rubros. Papada coberta de barba sob o queixo, nuca nua.

Ele foi dois passos à frente antes de parar, piscar e virar o rosto. Laís atirou a cabeça que tinha na mão. Filetes de sangue voaram. Até o atingir sem que reagisse, mandando o soldado a beijar calçamento.

Melado com a vida de seu companheiro. A face dele duas mãos de seu rosto.

''Seriam amigos? Um casal? Inimigos forçados a união pelo trabalho como guardas?''. Riu. ''Isso daria um bom conto, seja qual for a resposta''.

Laís começou a estalar os dedos, balançar levemente os quadris. Restos de sangue pingando das mãos. Musical. Fechou os olhos. Estendeu a palma para o homem que acabara de derrubar.

Ele se ergueu sobre punhos e joelhos. Fitou a face do colega de trabalho. Lágrimas e lamúrias desceram.

A oni girou sobre a ponta dos pés. Desequilibrou-se. Rindo a bunda encontrou o calçamento de pedra marrom pálido. ''Merda, isso é bom demais''. Lambeu o sangue do decapitado que restava nas mãos.

Fogo explodiu contra sua bochecha. Quente, súbito. Fazendo o estalo de rosto batendo em solo soar. Laís piscou. Caída de lado no calçamento. Chama dançando na pele. Bateu nela com punho envolto em película de água.

Ardor persistiu na bochecha esquerda, a direita o ressoar da pancada. A íris lilás moveu-se na órbita até parar nele. No homem ao lado do poste caído. Observou os últimos segundos que precediam a morte do indivíduo.

Quietamente, pesadamente.

Cada desnível na pele rubra. Rugas, formato da sobrancelha negra. Transpiração

As orelhas lupinas baixaram. A pele vermelha empalideceu. Não moveu-se, não respirou, olhos presos no purpura da oni. O rabo canino fincado entre as pernas.

De joelhos, pôs-se. Rosto virando ao chão. Mãos tocaram o solo. Submissão a um animal maior. Comportamento instintivo ainda presente em alguns licantropos. O mago era em parte um. Diante a certeza da impossibilidade de vencer, os instintos o deram aquela rota para tentar sair vivo.

A oni se levantou. No centro da rua, as bandeiras nos cordões amarrados as residências balançando sob o vento. Semblante frio. Andou até o sujeito. O soldado que atingira com uma cabeça levantava, o mago que apoiava a elfa negra se erguia.

Como formigas mergulhadas em melado. Incapazes de chegar ao objetivo antes que fosse tarde.

Laís pairava diante o guarda em posição de submissão antes que terminassem. Pisava na cabeça sob elmo prateado. Pressionava o rosto do sujeito contra o assoalho.

Os passos dos dois soldados começaram a subir. Os expectadores reuniam-se a duas vias de distância.

Esmagou. Fim.

''Próximo, por favor?''. Virou a cabeça sem pressa. Sob o aroma das vidas que findara. Passando o lilás por um canteiro com árvores sem folhas, uma parede pichada com o desenho de um cachorro mijando. Uma bola quadrada...

Parou. ''Droga''.

Localizou no organismo a substância que bebera e liberou na corrente sanguínea o antídoto. Em meio segundo estava sóbria.

Girou. Mão direita em pé, esquerda deitada sobre as pontas dela.

— Tempo - pediu, fez a cabeça pender a direita. O projétil do mago raspou-lhe dois fios de cabelo ao lado da orelha. Um retângulo irregular de pedra. O cavaleiro acertado pela cabeça despida de corpo seguia melado de vermelho em metade do rosto e parte do ombro. - Acabo de lembrar de outro compromisso, podemos continuar outra hora?

O soldado lançou a lâmina reta após estar perto o bastante. Olhos semicerrados e veias tomando-lhe as têmporas. Dentes de cima pressionando os de baixo. Estavam a três passadas do poste que esmagara a velha. A um pisar do canto da calçada onde pairava o bêbado mais a frente. Sangrando, ainda desacordado.

Laís fitou o metal. Do tamanho do braço dela. Riscos alvos pontilhavam a estrutura, o fio da arma apresentava três ondulações. Lascas, pedaços perdidos em assassinatos anteriores... ''não''.

Em falhas. No acertar de outra arma, uma pedra, parede, armaduras. Não no furar de carne ou ossos.

A segurou. Tomou. Jogou para trás.

Breve como um piscar.

— Encerramos, por aqui, sim? - perguntou, deu um passo à frente. Segurou o queixo envolto em papada do soldado. No tempo em que as pálpebras dele desciam e subiam. - Escutou, amigo mago aí atrás? Vamos ter amor próprio e se afastar dessa bela criatura demoníaca aqui, certo? Obrigada, que amável da sua parte entender. A funerária pode não ficar tão animada com isto... mas ela terá de se contentar com três enterros.

Soltou o sujeito. Encarou o mago seis passos adiante. Camisa de couro grossa, careca, esguio. Lábios trêmulos, suor deslizando até a ponta do queixo

— Entenderei como um: ''sim, minha deusa!''. Tchau.

Pegou a bola quadrada e partiu. E parou duas ruas laterais depois. Desceu a vista a camisa, ao short. Passou a mão ao redor da boca. Enxergou as mãos. Vermelho. Lambeu os punhos e os lambeu de novo após esfregar do rosto o sangue.

Suspirou. Ainda havia as roupas e cabelo. Pôs a bunda a descansar no telhado e vasculhou.

Os edifícios com larguras de cinco a vinte metros. Altos e baixos. Deslizando o olhar sobre as estruturas abaixo de pequenas bandeiras atadas em barbantes. Até parar na segunda construção da rua à esquerda. Branca, telhado redondo, borda inferior de madeira com dois degraus até a porta.

A placa pendendo no centro ''Casa de Banho Completinha''. Riu e foi. Comprou uma muda de roupa similar, blusa roxa e short branco. Encheu de perfume o quimono pela falta de um novo à venda. Após um breve banho seguiu caminho.

Quinze vias, quinze segundos.

Para a rua circular recheada por turba com dezenas de cabeças. Ao redor de um balcão de madeira. Ocupado por um homem e duas mulheres. Vestindo ternos e cartolas de mágico. O tecido fino do blazer azul balançando sob a brisa. Sorrisos quase estáticos no rosto. Vigas sustentando cortina e curto teto de pano atada a estrutura. A sombra cobria metade do palco.

Cestas a esquerda e direita. Dos adultos andando de um lado ao outro no palanque. Preenchidas com bonecos, peças de vestuário, jogos de tabuleiro. Um gato preto com olhos de cores diferentes tinha a coleira atada à última da esquerda. Suas vozes subiam duas vezes a cada objeto deixado nas caixas.

Laís pisou na extremidade da formação semicircular de telespectadores. Bola quadrada segurada acima do ombro. Passeou os olhos pelas crianças vagando escada acima e abaixo. A frente e aos lados do palanque. Acenou para o pirralho vestindo um uniforme infantil de marinheiro.

Ele estava sentado em uma placa solta do pavimento da rua. Mãos apoiando as bochechas proeminentes. Grandes olhos negros e redondos fitavam o chão.

Orfão, dez anos. Acolhido pelo ''Casarão no final da rua''.

A menina sardenta a viu. O gordo primeiro. Correram. Empurrando pirralhos que pairavam na rota até a oni. Gritando "sai do mei filho da p...!". Pés tropeçaram numa rachadura em sincronia. Braços balançaram por instantes. E o equilíbrio encontrado foi seguido de continuarem. ''Que triste... teria sido engraçado''.

Olhos arregalados de bestas enlouquecidas. O fedelho de chapéu verde com longas laterais fez o mesmo ao notar o rebuliço. Rápido, ruidoso.

Encontravam-se como membros do mesmo abrigo para despidos de pais. Tinham onze, doze e dez anos.

— É minha! - a sardenta. Primeira a pousar diante de Laís. Estendendo as mãos.

— Saí fora, mêu! - o trajando chapéu verde um segundo depois. Pulando ao lado da menina. E a acertando com o quadril. - Você fico com o pacote de biscoitcho!

O gordo arfando levantou a mão três segundos mais tarde. A boca abriu-se para abrir passagem. Nenhuma palavra atravessou. Atrás de ambos dobrou o tronco e apoiou as mãos nas coxas.

— Já prometi entregar pro Frederico ali - a oni, dedo indicando o bochechudo. - Que pena para vocês, sacos de piolho. Agora com licença. Não quero que o ranho de vocês rele em mim.

Protestos soaram para a oni. O gordo se uniu, a reclamação tornou-se discussão. Entre eles.

O caminho de Laís foi barrado. Ela pôs a mão livre na boca. E soltou breve risada.

A sardenta e o rechonchudo a fitaram. Bocas subitamente quietas.

— Tudo culpa dessa velha chifruda... - o de chapéu continuou. A frase morrendo conforme o silêncio dos demais era notado. O preto das íris subiu lentamente ao lilás do demônio. Arregalados. Mão puxou o cordão que ligava a calça aos ombros, deslizando para cima e para baixo. O fitar descendo ao calçamento. - É que me escapuliu.

Um passo adiante. As duas outras crianças se afastaram dele em um rápido pisar lateral. Sob o barulhento murmúrio de inúmeras testemunhas. Encarando-o com um sorriso gélido. A mão do demônio do sul se ergueu.

As pontas do quimono balançadas pelo vento. Assim como fios do negro cabelo. O rubro no topo dos chifres mais vivo abaixo do toque matinal.

— Vou comprar chocolate para todo mundo, mas você ficará sem e lembrará desse momento - pousou a mão na cabeça dele. Deixando parte do peso descansar ali. As pernas do garoto dobraram ligeiramente. A mão era firme. Quente e, o garoto soube instintivamente, onipotente sobre sua vida e morte.

A oni fez um breve bagunçar de cabelos sobre o boné. Encarando o empalidecer da pele, o ondular dos lábios. E seguiu em frente.

Passando por dezenas de crianças. Sendo esbarrada. Evitada por um triz. Acertada pela saliva de pequenas criaturas incapazes de falar sem cuspir. Até o alcançar.

Traje negro com linhas duplas e brancas partindo do curto decote. Uma gravata longa e vermelha atada a veste. Chapéu sem abas e colorido. Fedendo ao caro perfume de frutas cítricas.

Manchas de lágrimas na face. Vermelhidão tênue tocando os olhos.

Laís se agachou, pôs a bola quadrada ao lado do moleque. Estava a dianteira do palanque. Poucas passadas da escada do canto direito.

— Aqui está, ranhento. Foi mal ter lançado-a longe.

O bochechudo abraçou a bola. Riu. A balançou de um lado ao outro. Pôs-se de pé e saiu correndo até os outros sacos de piolho.

Três pessoas morreram no caminho a recuperá-la. Por motivo nenhum, sem necessidade alguma. Tão suavemente quanto os dias seguem um após o outro indiferentemente. Tão interessados quanto pessoas a quinze ruas de distância.

''Hoje foi um bom dia''. Andou rumo às barraquinhas nas calçadas. Mão checando as moedas no bolso. 

 


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Notas finais do capítulo

É... o poema podia ter sido melhor. Mas fiz na hora de postar, em cima da hora.

E aí, o que achou do conto? Bem despropositado, não parece? É, é sobre momentos. Irrelevância. Tá respirando e depois ´´pam`` cabou, não tá mais respirando. Sobre liberdade, porque um demônio deve ser só um demônio?
Ninguém se importa e se importa está sendo bobo. Seja tudo, seja nada. No final o resultado será zero... como na formula matemática da identidade de Euler(haha, cultura no seu rabo).
E sim, temos uma fucking Chaves reference no final. Pode vibrar.

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