Marco zero escrita por Elie


Capítulo 1
Nunca




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ANTES

— Tudo bem, moça? - alguém me interrompeu. 

Eu estava perdida numa poesia quando ele me chamou pela primeira vez.

— Oi? - Fiquei atordoada.

— Desculpa interromper, mas não consegui não reparar em você. Acabei te desenhando nesta folha de papel toalha. Arte em caneta esferográfica. Vai valer cem mil reais em trinta anos, vale o investimento.

Olhei o desconhecido de cima a baixo. Ele não era lindo, mas não era feio. Magro, maxilar marcado, cabelo cacheado e despenteado. Jeans e camiseta listrada. Imaginei que deveria ser hipster. Coloquei meu cabelo atrás da orelha, liso, sem volume e sem graça como sempre, em seguida fechei meu livro, tomando cuidado para deixar a página que eu estava lendo marcada. Estendi a mão e peguei o papel toalha. 

O desenho estava péssimo, mas dava para ver que era eu. Uma menina cabeçuda com cabelo de espaguete, olhos enormes, bochechas salientes e um sinal do lado direito do queixo. Eu todinha. Dei uma gargalhada.

— Não sei o que achar desta obra de arte - disse, ainda sorrindo.

Ele me entregou o papel, que eu olhei por um tempo, dobrei com cuidado e guardei com carinho num bolso da minha bolsa.

— Nunca diga te amo se não te interessa. Nunca fale sobre sentimentos se estes não existem - murmurou.

Franzi a testa e fiquei olhando aquele rosto por uns dez segundos por não entender a mudança brusca de assunto. Parecia que ele estava esperando que eu o entendesse.

— É "Nunca", de Mário Quintana - explicou e apontou para o meu livro.

Olhei para o livro e olhei para o desconhecido. Mário Quintana em letras garrafais. Levei a mão à testa, meio envergonhada. Eu deveria saber.

— Desculpa por não conhecer. Parece ser boa - e aí tive uma ideia. - Espera um pouco. 

Peguei meu celular, digitei "Nunca de Mário Quintana" na busca e cliquei no primeiro link. Lá estava a poesia que hoje é minha favorita. Terminei de recitar.

— "Nunca toque numa vida se não pretende romper um coração. Nunca olhe nos olhos de alguém se não quiser vê-lo se derramar em lágrimas por causa de ti. A coisa mais cruel que alguém pode fazer é permitir que alguém se apaixone por você quando você não pretende fazer o mesmo" - então bloqueei a tela do meu celular e tomei alguns segundos para digerir aquela belezura.

— Nunca mesmo - ele continuou.

Eu ri várias vezes durante aquele bate-papo aleatório, essa foi uma delas. Gostei do senso de humor dele desde a primeira vez.

Naquele momento, eu não sabia nada sobre ele e ele não sabia nada sobre mim. Poucas vezes nessa vida eu tive curiosidade de conhecer alguém como eu tive vontade de conhecê-lo. Pensei um pouco e apontei para o espaço vazio ao meu lado no banco. Ele olhou para um barzinho do outro lado da rua e voltou seus olhos para mim.

— Vou só pegar minhas coisas ali - ele explicou. Saiu correndo, meio desajeitado, e sentou-se no espaço vazio.

— A propósito, eu me chamo Sara - estendi a mão.

— Marco - ele apertou minha mão. - E eu tenho uma missão hoje. 

— Dar uma aula sobre poesia? - brinquei.

— Ah... - ele parecia satisfeito. - Isso também. Mas a missão principal é não passar. Sabe os outros? Que aí estão atravancando meu caminho? Que tentarão te desenhar em telas caras e tintas importadas?

— Esse poema eu conheço - falei.

— Eles passarão... - Marco começou.

— Eu passarinho - terminei. Acho que pareci uma boba sorrindo de tanta besteira.

— Eu! Eu passarinho - ele me corrigiu.

— O que será que ele quis dizer com isso? - perguntei.

— Sobre o que você quiser. É sobre passagens e pássaros. Passarões e passarinhos que passam por aí... - então Marco ia acender um cigarro do meu lado, foi a primeira coisa que não gostei nele.

— Por favor, não gosto de cigarros. Meu avô faleceu que câncer no pulmão. Ele era uma chaminé. Não gosto de cigarros.

Marco apagou o cigarro e colocou de volta no maço.

— Você é provavelmente mais esperta que eu.

Talvez quando o assunto era cigarros e otimismo. Quando falávamos de física e filosofia e poesias e família e afins Marco sempre brilhava mais que seres humanos comuns.


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