1918 escrita por muffin paradise


Capítulo 1
If You Were the Only Girl In The World


Notas iniciais do capítulo

Sentem-se em algum lugar confortável, pois iremos para Chicago de 1918.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/806291/chapter/1

1918

 

Branco.

Essa era a cor do teto de gesso sem ornamentos acima dele, muito diferente do elegante estuque que decorava sua casa, com aquela mistura de mármore e dourado que ele havia memorizado desde a infância. Branco era também a cor dos lençóis que o cobriam, lençóis de tecido áspero sob o toque, bem diferentes dos finos lençóis de algodão no qual ele estava acostumado e nos quais sua mãe tanto prezava, ela sempre atenta aos mínimos detalhes, desde as porcelanas chinesas até as toalhas de linho sobre a mesa de jantar.

Óbvio que coisas como lençóis de algodão, porcelanas e teto de estuque não tinham mais a mínima importância, mas se lembrar do conforto de seu lar havia se tornado um hábito desde que ele chegou ali, horas tendo se arrastado como dias e dias passados como anos – ele estava longe de casa há quase uma semana, mas poderiam ter sido há décadas. O tempo passava diferente naquele lugar.

“Não... Não o lugar em si”, ele se corrigiu: o tempo passava diferente para as pessoas que estavam na mesma situação dele.

Edward respirou arfante, o ar com cheiro asséptico de álcool e clorofórmio enchendo seus pulmões doloridos, ele tentando ao máximo não transformar a respiração em uma tosse seca e sanguinolenta; Após inspirar, ele soltou o ar pela boca entreaberta, seus lábios ressecados trêmulos enquanto a garganta doía por aquele esforço mínimo.

— Edward? – a voz o chamou. – Edward, sou eu... Consegue me ouvir, meu bem?

Por um momento ele achou que estava sonhando, mas o toque carinhoso de dedos em seu cabelo oleoso pela transpiração o fez ter certeza de que não estava.

Edward abriu os olhos, suas retinas machucadas pela luz enquanto a mente entorpecida registrava quem estava ali: olhos verdes cansados, olheiras e pálpebras pesadas, lábios finos pressionados e cabelos ruivos emoldurando o rosto oval bonito porém exausto.

Elizabeth Masen estava ali, sentada na beirada da cama, algo não recomendado pelos médicos naqueles últimos tempos, estes dizendo para que todos mantivessem distância e o mínimo de contato com os doentes. Se tivesse forças e energia, ele diria para sua mãe se afastar, para se cuidar e se proteger, mas ele sabia que ela não iria ouvi-lo.

Não havia ninguém no mundo que impediria Elizabeth de estar perto de seu filho, nem a doença, o medo de se contagiar ou até mesmo o luto pela morte recente de seu marido.

Vinte anos de casados e ela apenas se limitou a se vestir de preto para o rápido funeral no qual só havia ela, um coveiro apressado e um bispo com horário cheio, o cemitério de Chicago cheio de covas recentes e várias outras sendo abertas, covas que esperavam por mais vítimas daquela terrível doença que avançava implacável sobre todos.

E mesmo quando seu marido, o amor de sua vida, foi enterrado, a mente de Elizabeth apenas se voltou para Edward ainda vivo no hospital, seu único filho, seu orgulho e alegria, e agora, a única pessoa que ela tinha. Ela precisava estar com ele, precisava garantir que estivesse bem. E somente depois disso, ela se preocuparia consigo e lidaria com sua perda de alguma forma.

— M-Mãe… – ele a cumprimentou baixinho e voltou a fechar os olhos, sua mão sendo segurada.

— Como está querido? – ela indagou, preocupada – Está confortável? Precisa de mais travesseiros? Mais lençóis?

Edward dava respirações curtas, sentindo a mão dela tocar a lateral de seu rosto que ardia em febre e pegajoso pelo suor frio, dedos o acariciando daquela maneira maternal no qual ele adorava. Ele gostaria de respondê-la, de ir contra seus princípios e mentir para ela ao dizer que estava bem, mas falar era um enorme e doloroso esforço.

Ele estava cansado demais para tentar atenuar o que era óbvio.

— Aqui… – ela disse, levando um copo de água até seus lábios secos, cuidadosamente erguendo a cabeça dele para não engasgar – Beba até onde puder.

Edward obedeceu, sentindo líquido escorrer pela garganta seca, a água aliviando por alguns segundos o desconforto antes de voltar a se afundar no travesseiro. Enquanto ele respirava e retornava para seu estado de torpor, ela o assistia em silêncio da mesma forma que fazia quando ele ainda era um menininho doente e ela a sua enfermeira particular.

“Sempre será o meu menininho!”, ela pensou cheia de amor e também com um profundo medo no qual ela nem mesmo ousava pensar sobre.

— O doutor, já está vindo, tudo bem? – ela esfregou o braço dele coberto pelo lençol após vê-lo tremer – E... E logo estaremos em casa. Vai ficar tudo bem, querido.

Edward negou com a cabeça, se esforçando para abrir os olhos, se esforçando para que pudesse fazê-la ver que ele estava tranquilo para o que iria naturalmente acontecer. Elizabeth o encarava com os olhos marejados, lábios pressionados de maneira teimosa como se não aceitasse o que era óbvio.

Ele não estava bem e não iria ficar bem.

Abaixando os olhos, ele viu sua mão ainda sendo segurada com força por ela, como se ela inconscientemente estivesse o impedindo de ir para qualquer lugar.

Edward apertou de leve a mão, vendo os diamantes do anel de noivado dela cintilarem na luz fraca, seu polegar acariciando a forma oval cravejada pelas pedras. Em algum momento de sua curta vida até então, ele imaginou que daria aquele mesmo anel para alguma moça no qual tomaria como esposa, em um futuro não tão distante quando ele resolvesse ter sua própria família.

Mas isso nunca iria acontecer.

— S-Sinto m-muito, mãe... – ele disse com a voz rouca, se esforçando para oferecer um sorriso reconfortante, mas conseguindo apenas um remexer leve no canto dos lábios.

Dessa vez foi ela que negou com a cabeça, abrindo a boca para dizer uma repreensão por aquela tentativa de despedida, mas ficou calada ao ouvir uma batida na porta aberta.

— Sra. Masen...? – a voz masculina a chamou, seguida por passos na direção deles.

Edward viu a figura já familiar de seu médico, Dr. Cullen, ficando feliz por ele estar ali e ainda mais por sua presença evitar uma conversa que apenas terminaria em lágrimas para Elizabeth; Edward não gostava de vê-la chorar, não era nenhum pouco cavalheiresco fazer uma dama chorar, ainda mais sendo a mãe dele.

— Dr. Cullen, graças a Deus! – ela o saudou em alívio, se levantando da cama para que ele pudesse checar seu filho – Estava dizendo a Edward que logo ele irá para casa, que ele irá melhorar. Pode dizer isso a ele? Ele é teimoso como o pai dele, se é que me entende... Mas ele vai melhorar, não vai?

O homem de beleza dourada e rosto gentil sorriu com educação para ela, mas voltou sua atenção para o rapaz deitado no leito; Edward sentiu um alívio indescritível quando a mão gelada do médico pousou sobre sua testa ardente, os botões da camisa de seu pijama sendo abertos enquanto o estetoscópio era posto sobre a pele nua de seu peito trêmulo.

Ele conhecia o procedimento: inspirava e expirava lentamente enquanto olhava para o teto de gesso branco, seu coração e pulmões dizendo ao médico o que sua voz não poderia.

— O senhor poderá curá-lo, não é Dr.? Diga-me que sim, diga-me que irá. – Elizabeth suplicou.

Dr. Cullen pôs o estetoscópio ao redor do pescoço e a encarou com seus olhos dourados gentis, visivelmente relutando em dizer algo no qual ela não gostaria e não aceitaria ouvir.

— Sra. Masen... – ele disse em uma voz baixa – A senhora poderia me acompanhar por um instante?

Elizabeth olhou para ele apreensiva, seu rosto ficando ainda mais pálido, mas assentiu por fim, tendo antes dado um beijo na testa e mão de Edward, ignorando o olhar de repreensão do médico preocupado com ela.

— Descanse querido... Voltarei quando puder, tudo bem? – ela prometeu, acariciando o cabelo dele pela última vez.

Edward viu sua mãe ir com o homem, ambos saindo do quarto e fechando a porta, mas ainda permanecendo no corredor. Ele viu pela vidraça da porta a expressão de compaixão do médico ao explicar a situação enquanto que sua mãe arregalava os olhos, a boca tremendo ao respondê-lo com crescente desespero e lágrimas.

Ele não precisava ouvi-los para saber o que estava sendo dito.

Ele apenas fechou os olhos, exausto e grato pela inconsciência que se seguia e que o privava daquela agonia e fez a única que poderia: esperar.

...

...

Demorou um tempo até ele compreender onde estava, mas quando o fez, sabia que era um sonho. Um sonho aleatório, estranho, mas ainda agradável.

Ele estava parado na sombra de árvores cobertas por musgos, samambaias cobrindo o chão onde pisava descalço e que iam até os joelhos, a terra úmida sob seus pés. Olhando para cima, ele viu a luz solar filtrada pelos galhos e folhagens, o ar fresco carregado com o odor de terra pós-chuva e de clorofila da vegetação ao redor.

Edward respirou, feliz que ali ele não sentia dor, podendo apreciar a sensação mesmo que fosse irreal.

Com passos lentos, ele chegou na borda do que parecia ser uma clareira rodeada por árvores altas, estendendo em sua frente uma relva verde escura salpicada de flores silvestres multicoloridas, o aroma delas realçado pela luz quente e dourada do sol de meio-dia. Era lindo, tão lindo como se ele estivesse dentro de uma pintura de Monet.

“Edward?”, uma voz doce e feminina o chamou, fazendo-o olhar ao redor para ver de onde vinha, mas não avistando ninguém. Caminhando sobre a relva florida e ensolarada, ele continuou a procurar a dona daquela voz, mas não teve sucesso.

Ele estava sozinho.

“Olá?” ele respondeu, sua voz ecoando ‘olás’ como se ele estivesse em uma caverna, aos poucos voltando ao silêncio.

Sem respostas e tendo certeza de estar sozinho, ele se deitou em meio às flores e observou o céu azul acima de si, apreciando a brisa que soprava em seu rosto, uma brisa que carregava o fino perfume doce de lavanda, frésia e lilás, três flores que não cresciam naquela campina, mas que o fez se sentir em paz.

Após horas de sono e inconsciência (em algum momento ele tinha sido alimentado, parcialmente limpo e medicado, mas não se lembrava ao certo de quando ou como), Edward despertou antes mesmo de abrir os olhos, a luz atravessando as pálpebras enquanto ouvia o som da chuva bater no vidro da janela próxima de seu leito.

Ele abriu os olhos, piscando até se acostumar com a luz ao fitar o teto branco acima dele, deixando que a consciência voltasse aos poucos: ele ainda se sentia fraco, cansado e dolorido, mas não tanto quanto no dia anterior, tornando a experiência um pouco mais tolerável. Respirar também não exigia tanto esforço, mas ele ainda não podia se dar ao luxo de fazer isso profundamente.

Junto do som da chuva, havia também o som de uma respiração mais arfante e pesada que a sua, chamando de imediato a sua atenção: no lado esquerdo de seu leito, havia um biombo hospitalar que o separava de um segundo paciente internado, o que era incomum pois sua mãe estava pagando uma fortuna para que aquele quarto fosse de seu uso privado, ela não permitindo que ele ficasse no dormitório público junto de outros tão doentes quanto ele.

Os pensamentos de Edward foram interrompidos quando a respiração do rapaz ao seu lado ficou ainda mais instável, o sofrimento dele evidente; olhando ao redor, Edward constatou que não havia ninguém no quarto além deles dois.

— Inspire pelo nariz, m-mas não profundamente... – ele aconselhou, sua voz um pouco rouca mas ainda compreensível - ...E solte o ar devagar pela boca.

O desconhecido parecia ter atendido o conselho, sua respiração cada vez menos afoita.

— Isso... Inspire devagar... Solte o ar aos poucos... – Edward orientou, fazendo o mesmo. Pelo menos alguma coisa aquela doença o tinha ensinado.

Lentamente, o estranho estabilizou a respiração até ficar mais calma, o som da chuva voltando a ser o ruído mais alto daquele quarto.

— Melhor? – ele indagou, pousando as mãos sobre seu peito enquanto olhava para o teto.

— S-Sim... Muito m-melhor. Obrigada! – a voz doce e feminina o respondeu, ainda fraca, mas estável.

De imediato Edward virou o rosto para o biombo que os separava, chocado ao constatar que seu colega de quarto era na verdade uma moça ao invés de um rapaz como ele.

— Oh! – ele exclamou, piscando os olhos, consternado – Eu não... Eu não sabia que...

— ...Que sou uma garota? – ela completou com a voz rouca pela tosse, mas ainda doce.

— Sim. Eu imaginava que seria um homem.

Ela suspirou.

— Ah… Eu peço desculpas. Eles... Eles me realocaram para cá, nessa m-manhã. Se soubesse que havia alguém aqui, eu teria... Teria insistido para me deixarem onde estava. – ela explicou. – N-Não quero incomodar.

Edward voltou a olhar para o teto, sua mão alisando o lençol que o cobria.

— Não há problema. – ele respondeu, sorrindo um pouco para si mesmo – Só acho que poderia ser... Ser escandaloso para uma dama estar sozinha no quarto de um homem solteiro... Sem acompanhante... O que irão pensar?

O som de uma risada tímida e rouca flutuou por detrás do biombo, Edward sorrindo ao ouvir aquele som, mas se arrependendo ao ouvir a risada se transformar em uma tosse longa, alta e dolorosa. Demorou um pouco até que a tosse diminuísse e mais um pouco até a respiração ficar próxima do estável.

— Perdoe-me... Não queria causar-lhe mal. – ele disse olhando para o objeto que estava entre eles.

— N-Não há... Não há o que perdoar. – ela respondeu, a voz ainda sem fôlego – Eu que agradeço... Por me fazer rir... Faz muito tempo que não dou uma risada... As coisas estão meio mórbidas ultimamente.

Edward se remexeu, compreendendo o que ela o dizia.

— Sim… Elas de fato estão.

Ele não conseguia se lembrar da última vez que rira sobre algo. A gripe, o contágio e morte rápida de seu pai, sua própria doença, o medo de sua mãe... Tudo isso eclipsou a leveza no qual levava sua vida até então.

Ambos ficaram em silêncio, ouvindo o som da chuva e do ruído abafado de vozes e tosses vindos das instalações públicas naquele mesmo andar.

— Mas... Mas respondendo sua pergunta... – a moça murmurou, parecendo um pouco mais disposta – ...Não acho que formalidades como essa estão sendo observadas… Quando tantos estão morrendo como moscas só neste hospital.

Edward suspirou e sorriu.

— Sim. Acho que tem razão. – ele respondeu, voltando a olhar para direção onde ela estava e expressar a boa educação que recebeu – Gostaria de me apresentar: me chamo Edward. Edward Masen. E a senhorita é...?

— Senhorita Beatrice... – ela respondeu, fazendo as molas do leito rangerem ao se virar de lado – Beatrice Schwan, ao seu dispor.

— É um p-prazer conhecê-la, Srta. Schwan... – Edward disse, seus dedos alisando a borda do lençol – Mesmo esse não sendo o lugar m-mais apropriado... Ainda é um pr-prazer.

Beatrice soltou o ar pela boca.

— Digo o mesmo, Sr. Masen. – ela respondeu, engolindo a saliva ao sentir a garganta seca.

O silêncio novamente prosperou junto das vozes e tosses abafadas, a chuva ainda batendo contra a janela, os dois imersos em seus próprios pensamentos.

— Então é assim que tudo termina? – Beatrice disse, sua voz um pouco mais rouca. – É assim que se morre?

Edward olhou para o biombo.

— Não diga isso, senhorita. Eu... Eu tenho certeza de que logo irá melhorar e... – ele tentou confortá-la.

Beatrice o cortou com um som de impaciência, fazendo-o ficar quieto.

— Por favor, nem mesmo você acredita nisso. – ela disse melancólica – Nós dizemos isso para os nossos pais ou familiares, mais para... Para reconfortá-los de que morrer não é tão ruim q-quanto parece. Nós dois sabemos que iremos morrer... Nós só estamos...

— ...Esperando. – Edward completou ao fechar os olhos.

— S-Sim. Só estamos esperando. – ela pontuou – Esperando como passageiros a espera de um trem no qual n-ninguém quer embarcar… Não sabemos que horas ele virá, mas sabemos que está chegando.

Edward sorriu um pouco ao visualizar o quadro oferecido por ela.

— Não poderia ter colocado isso em palavras melhores.

Ela arfou.

— Eu sou boa com palavras... Ou pelo menos foi isso o que me disseram. – ela respondeu, seu tom de voz dando a entender que também sorria, mesmo ele não podendo vê-la.

Mais uma pausa silenciosa.

— Você vê, Sr. Masen... Eu não tenho medo de morrer. Eu não... Não me sinto triste por estar morrendo. – ela disse em um tom mais baixo, como se compartilhasse um segredo – Sim, eu me sinto triste por estar deixando meu pai sozinho. Eu não queria deixá-lo, não dessa forma, depois que minha mãe se foi...

Ela fungou e prosseguiu.

— Mas o que me deixa ainda mais triste é não ter vivido o suficiente... De não poder ver o que uma vida plena pode oferecer... Os altos e os baixos… Tudo o que pode acontecer.

Edward manteve os olhos fechados, absorvendo as palavras que ouvira.

— Eu estava esperando essa Guerra, essa... Essa Guerra horrível e abominável terminar... Esperando que minha vida pudesse, de alguma forma, começar ou ter um pr-propósito. – ela explicou. – Acho que deveria ter aproveitado enquanto eu podia... A vida não espera por nós.

Edward suspirou, sorrindo com tristeza.

— Digo o mesmo, Srta. Schwan. – ele murmurou, sentindo a sinceridade fluir em sua voz – Mas ao contrário de você, eu esperava que a Guerra durasse o suficiente para poder me alistar…  Para poder ser um soldado, entende? Era algo que me dava sentido ou propósito…

Beatrice soltou o fôlego com impaciência.

— Francamente, eu não entendo vocês, homens... – ela o repreendeu – Somente um tolo corre em direção ao perigo de uma batalha... E somente um sádico pode desejar uma Guerra.

Edward sorriu, podendo ver o rosto de sua mãe ao ouvir aquelas palavras, recordações de orações antes das refeições no qual sempre repetia variações daquela mesma sentença.

— Minha mãe me disse a mesma coisa. – ele respondeu com leveza – Ela, mais do que ninguém, orou para que a Guerra terminasse só para fr-fustrar meus planos como militar...

— Uma mulher de incrível bom senso. – ela elogiou.

— Ela é. – Edward respondeu com afeto – Mas acho que as orações d-dela apenas evitaram minha morte heróica em uma batalha, enquanto lutaria pelo nosso País.

— As orações dela evitaram que você fosse morto com um tiro no peito e na cabeça vindos de algum alemão, Sr. Masen. – Beatrice argumentou com um traço de bom-humor – Melhor morrer no conforto de uma cama em seu próprio país, do que ter como cova alguma trincheira enlameada em Deus sabe-se lá onde!

As palavras dela foram um gatilho para Edward soltar uma risada honesta, seus pulmões despreparados para o consumo excessivo do ar, a risada logo dando lugar a tosse que fazia seu corpo tremer e se encolher. Edward levou o lençol até a boca e o nariz, abafando o som para não perturbar a dama ao seu lado. Aos poucos, após controlar de novo a respiração, ele se acalmou, retirando o lençol do rosto.

‘Ah…’, ele pensou ao ver a mancha vermelha de sangue sobre o tecido branco.

— P-Perdoe me… N-Não foi apropriado de minha parte, eu n-não… – Beatrice se apressou em dizer.

Edward afundou no travesseiro, segurando a borda do lençol manchada de sangue ao voltar a fitar o teto.

— Não há o que perdoar… – ele respondeu rouco – A senhorita me deu o prazer de uma boa risada em um longo tempo!

Beatrice não respondeu, respirando de maneira sincronizada com a respiração lenta e calma de Edward. Aquilo demorou um tempo, tempo o suficiente para que um deles caísse no sono, mas ambos se mantiveram acordados, pensando sobre tudo e sobre nada.

— Sr. Masen?

— Sim?

Uma pausa.

— Você já pensou no que teria feito de diferente se não tivesse próximo de… Você sabe… – ela disse baixinho.

Edward suspirou, refletindo a pergunta no qual ele mesmo já se fizera em momentos de consciência e lucidez, tendo a resposta na ponta da língua. Por um momento, ele considerou desviar do questionamento, afinal, era algo íntimo, pessoal, inapropriado de falar com uma dama e ainda mais sendo uma desconhecida.

Mas Edward sentia que não havia o porquê de se esconder em etiquetas e formalidades, quando Beatrice e ele estavam unidos pela mesma doença no qual poria fim em suas vidas. Não fazia sentido fingir quando só restava a honestidade.

— Eu… – ele engoliu a saliva, deixando os pensamentos fluírem  – Eu teria tentado me aproximar e… E conhecer melhor o meu pai. N-Nunca fui próximo dele, como gostaria de ter sido… Ele era um homem bom… Só não t-tinha tempo… Mas era bom.

Ele pausou ao pensar em Edward Masen Sênior, seu pai, sempre sério, rígido, prático, mas também justo e íntegro. Seu pai morreu, e Edward nem mesmo pode se despedir dele.

Ele limpou a garganta, mudando o pensamento antes que fosse chorar.

— Também tocaria para minha mãe uma música que fiz para ela. Ela me ensinou a tocar piano… Tudo o que sei, eu devo a ela. – ele disse, se lembrando de quando era criança e se sentava no colo de sua mãe, ele observando as mãos elegantes dela dedilhar o teclado de ébano e marfim do piano – Eu sempre prometi a ela que iria compor uma peça para ela… Eu terminei… Mas não tive oportunidade para tocar.

Edward fechou os olhos, respirando ao refrear o choro que ameaçava vir. Segundos se passaram até que ele se recompôs.

— E você, Srta. Schwan? – ele perguntou – Tem algo que gostaria de ter feito?

Edward ouviu Beatrice suspirar, assim como um som que parecia o estalo da língua no céu da boca.

— Receio que seja algo tão… Tão fútil e trivial e tão diferente do que sou… Mas ainda assim… É algo que estive pensando muito sobre. – ela confessou, parecendo envergonhada.

Edward ficou quieto, curioso para saber o que se tratava.

— Veja bem… Eu… Eu tenho esse vestido de baile azul... Vindo de Paris… Pendurado no meu guarda-roupa… Nunca usado… – ela confessou – Minha mãe insistia para que um dia eu v-vestisse em algum baile... Para quando eu resolvesse tirar minha cara dos livros e debutar… “Viver a vida real”.

Ela pausou, buscando mais ar.

— Eu s-sempre evitei dançar. Tinha medo de não ser tão... Tão elegante e graciosa quanto as outras... Sempre fui terrivelmente tímida, se me entende... – ela explicou – Ou em outras palavras, eu sou consciente que não sou uma boa dançarina.

Edward riu baixinho, tomando cuidado para tossir.

— Eu achava que as damas soubessem valsar antes mesmo de aprenderem a caminhar. – ele disse.

— Deixe-me c-contar um segredo antes de morrermos, Sr. Masen: nem todas as garotas g-gostam ou são boas em bordar, dançar, ou pintar aquarelas... – ela disse, e mesmo não a vendo ou nem sabendo como era, Edward teve certeza de que ela disse isso com um sorriso – Se não somos boas em algo, somos ótimas em fingir que sabemos.

Aquilo o fez sorrir.

— De qualquer forma, eu queria ter tido uma boa valsa… Uma valsa bonita… Com esse meu vestido azul que nunca irei usar… Com um cavalheiro gentil que me p-perdoaria por todas as vezes em que eu pisei sem querer no pé…

Ambos riram, não se importando pelo tosse seca e dolorosa que se seguia, pois valia a pena.

— Se eu pudesse… – Edward disse após a tosse ter acalmado, sua voz com um pouco da confiança que lhe restava – Se eu pudesse ter tido a honra da oportunidade... Teria sido um prazer convidar-lhe para uma valsa, Srta. Schwan... M-Mesmo eu sendo um desconhecido... Ou que f-fosse inapropriado.

O silêncio marcado por respirações pesadas se seguiu, Edward encarando o biombo hospitalar que os separava à espera de alguma reação.

Beatrice suspirou de forma entrecortada, e Edward se perguntou se aquilo era por conta da doença ou se (tomara que não fosse) ela tivesse chorando.

— E-Eu... – ela disse por fim, fungando baixo – Eu t-teria dito sim, Sr. Masen.

Ela suspirou e disse por fim.

— Teria sido uma honra dançar com v-você.

Edward manteve sua atenção na direção dela.

— Qual valsa a senhorita tinha em mente? – ele tentou tranquilizá-la.

— Algo fácil como o “Danúbio Azul”... Ou aquela música bonita... Conhece “If You Were the Only Girl in the World”?

Edward sorriu. Era uma de suas canções favoritas, e talvez de todos os soldados que estavam longe de casa, longe de suas esposas, noivas ou namoradas.

— Sim, srta. Eu conheço.

— Se eu fechar bem os olhos, eu consigo ouvir... Consigo ouvir perfeitamente... – ela respondeu, cantarolando baixinho a melodia.

Edward fechou os olhos, sendo embalado pela canção sobre dois amantes e suas juras de amor sobre todas as coisas maravilhosas a se fazer no mundo e se permitiu, por um momento, sonhar com tal coisa.

Eles conversaram sobre mais coisas, claro. Edward descobriu que ela gostava dos mesmos livros que ele, literatura sendo a grande paixão dela. Ambos compartilhavam também o gosto sobre músicas, sobre peças de teatro e sobre lugares que um dia gostariam de ter visitado.

Eles conversaram até o onde o fôlego deles permitia, e após as refeições e os exames de rotina, conversaram ainda mais, até o anoitecer. Beatrice foi a primeira a descansar, Edward velando seu sono através da respiração calma e ritmada, aos poucos adormecendo também enquanto a chuva continuava a cair do lado de fora.

 

Edward não acordou de forma natural como na manhã anterior.

O som de passos, rangidos metálicos e de vozes sussurradas e apressadas o acordaram do sono sem sonhos que tivera naquela noite. Abrindo os olhos, ele fitou o teto branco já familiar, sentindo seu corpo dolorido e peso sobre o peito ainda mais opressivo.

Olhando para o lado, ele viu a origem daqueles sons que o despertaram: ao invés de ver o biombo que separava ele de sua colega de quarto, ele viu uma enfermeira e seus dois assistentes ao lado do leito, eles conversando baixo para não despertá-lo, o que foi em vão.

Edward então compreendeu o que estava acontecendo, ao ver um dos assistentes se mover para o lado e revelar a razão deles estarem ali.

— N-Não...! – Edward se sussurrou fracamente ao ver enfim sua colega de quarto temporária.

Deitada no leito, com o rosto voltado para sua direção, estava Beatrice, a dona da voz no qual ele havia conversado.

Ela tinha o rosto delicado, de queixo pontudo e fino e maçãs-do-rosto proeminentes, dando a sua face o contorno similar de um coração.

Seus lábios eram cheios, o inferior mais que o superior, bem desenhados e sensuais, seguidos por um nariz bonito, sobrancelhas escuras e arqueadas dando a ela um semblante maravilhosamente doce. Seu era cabelo era longo e escuro, emoldurando o rosto jovial e ressaltando a palidez cadavérica da pele clara, o sangue da vida já ausente de suas bochechas e dos lábios esbranquiçados.

Os olhos dela já estavam fechados e sua cor seria para ele um eterno mistério.

Ela era a garota mais linda que Edward já tinha visto...

...E ela estava morta.

Edward fungou, seus lábios tremendo.

“A morte que sugou todo o mel do teu doce hálito, não teve efeito nenhum sobre tua beleza”, ele recitou mentalmente, sabendo que ela seria uma das poucas a apreciar a beleza de Shakespeare, mesmo em momentos como aquele.

— Com cuidado... Cuidado com ela... – a enfermeira orientou  o assistente, ele retirando o corpo dela do leito e colocando-a sobre a maca removível.

A enfermeira olhou para a garota com pesar, cobrindo o corpo com o lençol branco para que outros não pudessem vê-la vestida apenas com a camisola, preservando assim a modéstia dela mesmo após a morte. O longo cabelo escuro de Beatrice caiu da maca como uma cascata feita de mogno, enquanto sua mão delicada ficou descoberta, os cabelos e a mão sendo os dois únicos indícios de sua figura.

Enquanto a enfermeira e os assistentes saíam com maca com destino ao necrotério do hospital, Edward silenciosamente chorou, seu coração apertado pela moça que ele tinha conhecido por tão pouco, mas que o fez desejar que tivessem tido tempo, tempo o suficiente para poderem ter se conhecido melhor, para terem tido uma dança: ela no vestido azul nunca usado e ele não se importando de seus pés terem sido pisados.

Talvez se tivessem em outras circunstâncias, em outra ocasião, talvez se não fosse naquele lugar, se não fosse por aquele estado... Talvez... Talvez... Tantos “talvez” sobre cenários que não iriam acontecer.

Olhando novamente para o teto de gesso branco, Edward continuou a chorar até onde seu corpo permitia, antes de cair de novo na inconsciência.

...

...

A hora dele estava se aproximando, ele sabia disso.

Em horas que durava uma eternidade, ele sentia seu corpo perder cada vez mais a força, seus músculos muito doloridos, seus pulmões incapazes de absorver o ar que precisava e o coração enfraquecido lutando para continuar batendo. A febre alta o fazia tremer e suar frio, a transpiração grudenta escorrendo de sua testa e pescoço, fluindo de suas axilas, tronco e pernas, encharcando o pijama que usava e o lençol que o cobria, fazendo-o exalar o odor pungente de corpo não-lavado e moribundo.

Ele estava morrendo.

Ele sabia disso.

Não demoraria muito até seu corpo ceder pela doença e finalmente decair, terminando aqueles dias de agonia.

Em momentos que iam de consciência para inconsciência, Edward se perguntava onde estaria sua mãe, ela não tendo mais ido ali vê-lo, apesar de no fundo saber a razão para isso. Não importava. Em breve, ele se reuniria com seus pais, no além-da-vida, assim como a garota do vestido de baile azul.

Era só esperar.

...

...

Edward abriu os olhos esperando encontrar o teto de gesso branco de seu quarto no hospital, mas ao invés disso, ele viu um teto alto, escuro, feito de madeira com um acabamento rústico. Estava escuro, a luz alaranjada de uma vela lançando mais sombras do que propriamente iluminando, ele repousado em uma cama mais macia do que o leito onde repousava.

Olhando para o lado, ele viu a figura de um anjo sentado na cadeira, este com um semblante torturado, de pura angústia enquanto o fitava intensamente, dor estampada em sua bela face. Edward mantinha os olhos entreabertos ao olhar para o anjo, sua mente confusa.

Porque ele parecia triste? Será que o anjo não poderia levá-lo para o Paraíso?

Edward sentiu sua mão sendo segurada por algo que parecia mármore frio, envolvendo seus dedos de maneira cuidadosa. Olhando para o anjo, Edward viu sua cabeleira tão dourada quanto uma auréola, olhos cor de topázio o encarando com compaixão.

Edward fechou os olhos, sabendo que o anjo o levaria ali para um lugar melhor.

— Perdoe-me! – ele ouviu a voz do anjo o dizer perto de seu ouvido.

Porque um anjo lhe pediria perdão? Edward, apertou os olhos, incapaz de dizer algo. Ele estava apenas pronto pra descansar na eterna paz.

Mas enquanto era sugado para a inconsciência, ele sentiu uma dor aguda vinda de seu pescoço, sendo seguida de um fogo infernal que começava a queimar seu corpo com fúria, despertando-o de seu estado de estupor, seus olhos se arregalando ao ver o anjo com a boca manchada de seu sangue enquanto o assistia queimar.

Aquele anjo não o levaria para o Paraíso.

Ele o atirou no Inferno.

Com o resto de energia que ainda tinha, Edward gritou, seus pulmões e garganta a ponto de estourar pelo esforço violento, seu corpo convulsionando em agonia, mas eram incomparáveis com a imensa dor de ser queimado vivo.

No dia 13 de Setembro de 1918, ele, Edward Anthony Masen Jr., morreu aos 17 anos, vítima da gripe espanhola.

E três dias depois, em uma cabana no meio da floresta, nascia Edward Cullen.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Há uma razão bem específica para ter escolhido o nome Beatrice, não apenas pela sonoridade, claro, mas por conta de uma referência literária do nível que Edward e Bella entenderiam e que faz sentido no contexto dessa fic hehehe

“If You Were the Only Girl In The World” foi uma balada romântica muito popular durante a 1ª Guerra Mundial. Essa fic foi inspirada em uma cena de “Downton Abbey”, quando o casal principal canta ela em um dueto (https://youtu.be/SXFO11kC8Zk).

Caso ouçam, imaginem um rapaz de cabelos cor de bronze em seu uniforme de soldado valsando com uma garota em um vestido azul. Eles merecem isso.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "1918" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.