Maple's leaf, everlasting grief escrita por SophieRyder


Capítulo 5
Track 5: Learning to Fly


Notas iniciais do capítulo

Track 5: Learning to Fly [Pink Floyd, A Momentary Lapse of Reason, 1987]

I'M ALIVE

Olá crianças, a tia Sophie pegou covid quando estava terminando o capítulo. Mas! Depois de um mês miserável, eu estou me sentindo inspirada de novo.
Esse capítulo estava com quase 10 mil palavras, então eu acabei dividindo ele em dois. O que é um problema, porque significa que eu preciso achar outra música para a segunda metade, o que é um pesadelo particular para o meu perfeccionismo. Mas eu já tenho bastante coisa escrita e ele está quase pronto, então a próxima atualização não deve demorar muito (se a vida não resolver me sacanear de novo).

Bônus: fiz uma playlist com as músicas da fic, e vou atualizar ela conforme sairem novos capitulos. Se alguém quiser ouvir, tá aqui
https://open.spotify.com/playlist/0r2pgqymnDqUB3S8MC3Yzg?si=dpcjUVEnTy65wO6X6A8n6Q&utm_source=copy-link

É isso ai, boa leitura!



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“Looking at him, Xie Lian couldn’t help but remember the saying: ‘for men to look handsome, they must dress in all black’. He thought deeply about the truth of this statement.” TGCF, capítulo 106.

—----

 

Track 5 – Learning to Fly

Into the distance, a ribbon of black

Stretched to the point of no turning back

A flight of fancy on a wind swept field

Standing alone, my senses reel

A fatal atraction is holding me fast

How can I escape this irresistible grasp?

 

Can’t keep my eyes from the circling sky

Tongue-tied and twisted, just an earth-bound misfit, I

 

O primeiro a quebrar o silêncio foi Hua Cheng.

“Who we are,” ele disse com a voz um pouco rouca, “Scorpions.”

Xie Lian não conseguiu entender muito bem o que ele estava dizendo. Seus ouvidos pareciam tampados pelo som de sua própria pulsação.

“Gege...”, Hua Cheng continuou, e havia tensão em sua voz. “...Eu preciso te dizer algo.”

Os olhos de Xie Lian se arregalaram um pouco mais. Hua Cheng o analisava, talvez procurando avaliar sua reação. Xie Lian sabia disso, mas estava aéreo demais para conseguir pensar em controlar suas expressões faciais.

Ele viu Hua Cheng engolir em seco antes de falar.

“Eu...”

Hua Cheng respirou fundo, como se procurasse forças para dizer algo importante. Ele desviou o olhar por um breve momento, antes de colocar um sorriso tímido no rosto, apenas um pequeno movimento dos lábios. Xie Lian prendeu a respiração.

“Eu não gosto de Beatles.”

Foi como se todo o ar perdido retornasse bruscamente para seus pulmões. Xie Lian primeiro enrijeceu seus ombros, depois relaxou, depois endureceu novamente. Ele abriu a boca, gaguejou um som indistinguível, e depois levou as duas mãos para o rosto, cobrindo a sensação de ardor que se espalhava por ele.

“San Lang!”, Xie Lian grunhiu por trás das mãos, sem conseguir disfarçar sua vergonha.

Ele ouviu um ruído seco vindo da direção de Hua Cheng, provavelmente uma risada presa na garganta.

“Não ria!” Xie Lian protestou, ainda escondendo o rosto. “Como eu ia saber?”

“Gege não precisa ficar constrangido. Apesar do péssimo gosto musical, ele tem uma ótima voz.”

Xie Lian deixou escapar um longo suspiro antes de se levantar do chão e acender a luz do quarto, que estava bastante escuro, a não ser por uma fugaz faixa de claridade, vinda de um poste na rua e entrando pela janela. Ele espiou a cama. Hua Cheng havia colocado o violão de lado e estava sentado em uma postura relaxada, com as mãos apoiadas na cama, inclinando levemente o tronco para trás. Não havia mais sinal da expressão angustiada que ele vira naquela tarde.

“Não zombe.”, Xie Lian respondeu, contendo um suspiro de alívio e voltando a se sentar no chão, onde estava antes. “E qual o problema com eles?”

“Hunf.” Hua Cheng abriu um sorriso e fez uma cara esnobe. “Modinha.”

“Peço perdão por não satisfazer seus gostos criteriosos.” Xie Lian ironizou, mas ele não estava realmente aborrecido. Seus batimentos descompassados finalmente começaram a voltar ao normal. “San Lang joga sujo. Além da bateria, ainda sabe tocar violão e cantar? Tem algo que você não sabe fazer?”

Então, ele se lembrou da caligrafia hedionda de Hua Cheng. Um sorriso se espalhou por seu rosto.

“Não é nada demais. Gege realmente precisa parar de elogiar.”, Hua Cheng devolveu o violão para ele, sem saber o que passava pela cabeça de Xie Lian. “Mas eu ficaria extremamente lisonjeado se Gege me permitisse ouvir sua voz de novo. O que mais você sabe tocar?”

Xie Lian apanhou o violão e franziu as sobrancelhas, tentando procurar em seu repertório algo que lhe parecesse que agradaria Hua Cheng.

“Ahn... Coldplay?”

Sua resposta foi recebida com sobrancelhas levantadas, uma expressão que costumava ocupar o rosto de Hua Cheng quando ele estava prestes a dizer algo maldoso em um tom brincalhão.

“Gege, isso não faz bem para o meu coração. Nós precisamos corrigir esse seu desvio de caráter.”

“San Lang!”

Dessa vez Hua Cheng não segurou o riso, e Xie Lian percebeu que aquilo não o desagradava.

“O que mais?”

“...Oasis?”

“Alguma outra música que não seja Wonderwall?”

“...”

“Vou tomar isso como um não.”

Xie Lian fez um biquinho. Depois, agarrou o violão e declarou com confiança.

“Eu sei o que San Lang vai gostar de ouvir.”

Hua Cheng levantou as sobrancelhas enquanto Xie Lian começava a arrancar algumas notas aleatórias do violão.

Some-

“Gegeeeee!”

—body one told me world is gonna roll me

I ain’t the sharpest tool in the shed

“Gege nãããão!”

She was looking kind of dumb with her finger and her thumb

In the shape of an “L” on her forehead

Xie Lian não conseguiu cantar muitas estrofes antes dos dois caírem na gargalhada.

Eles continuaram dividindo o violão e tocando músicas enquanto a noite avançava. Quando, por fim, Hua Cheng olhou para o relógio e disse que deveria ir embora, Xie Lian sentiu seu estômago se revirar e a tensão prévia retornar, mas não protestou. Ele acompanhou Hua Cheng até a entrada, encarando suas próprias mãos, sem saber muito bem o que fazer com elas.

Na porta, Hua Cheng se virou para ele e falou em um tom baixo:

“Gege, obrigado.”

Xie Lian levantou o rosto e encontrou Hua Cheng com uma fisionomia receosa.

“San Lang, por que você está agradecendo?”

Os lábios de Hua Cheng se levantaram em um sorriso pequeno, mas sincero.

“Gege me ofereceu um lugar para tocar. Se não for mesmo um incômodo, eu vou trazer a bateria para cá.”

“Ah! É claro que não é um incômodo!”, ele se apressou em responder, tentando transparecer segurança.

Na realidade, Xie Lian sentiu uma felicidade se espalhar em seu peito por Hua Cheng ter aceitado a oferta. Mas sua preocupação ainda não havia desaparecido, pressionando-o no fundo de sua consciência como uma pedra enfiada dentro de um sapato confortável.  

“San Lang, tem certeza de que você já pode voltar? Não quer passar a noite aqui?”

Hua Cheng lhe deu um sorriso tranquilizador.

“Não se preocupe, está tudo bem.”

“Mas...” Xie Lian procurava por algum pretexto para manter Hua Cheng ali por mais tempo, quando se lembrou de algo. “Ah! Nós trancamos a porta por dentro! Como você vai entrar no quarto?”

Hua Cheng soltou uma gargalhada alta, erguendo o queixo e tombando sua cabeça para trás. O som fez o coração de Xie Lian saltar mais rápido do que deveria. Ele viu Hua Cheng enfiar uma mão no bolso, e tirar um objeto prateado de dentro dele. Em sua palma estava uma pequena chave.

“Sem problemas,” ele sorriu, “eu faço isso com frequência.”

Xie Lian percebeu que não tinha mais argumentos. Não seria correto pressiona-lo a continuar ali. Ele assentiu, mas provavelmente não conseguiu conter uma réstia de decepção em seu rosto, que não deve ter passado despercebida.

Hua Cheng não se despediu. Ele o observava em silêncio, enquanto Xie Lian olhava para suas próprias mãos unidas, apertando suas articulações com força o suficiente para prender a circulação. Xie Lian começava a se perguntar se ele estava esperando por algo, quando Hua Cheng levantou uma de suas mãos, como se fosse tocá-lo, tirando-o de sua divagação.  

Sua mão parou no meio do movimento, permanecendo erguida entre os dois. Depois, Hua Cheng a levou para sua própria nuca. Ele soltou seu cabelo que ainda estava preso em um rabo de cavalo desleixado, e sorriu para Xie Lian.

“Boa noite, Gege.”

Xie Lian sentiu seu estômago revirar mais uma vez.

“Boa noite, San Lang.”

—-----

Ice is forming on the tips of my wings

Unheeded warnings, I thought I thought of everything

No navigator to find my way home

Unladened, empty and turned to stone

Ele estava sozinho de novo, em seu quarto silencioso, deitado em sua cama e olhando para o teto cinzento. Tudo parecia idêntico, a não ser o violão apoiado na cama, que até o dia anterior estava enfiado em uma capa empoeirada. Quando o instrumento estava escondido pela lona preta, seus sons não faziam falta. Agora, à vista, seu silêncio parecia uma violência.

Xie Lian não tinha ideia de que horas eram, mas a madrugada não parecia ser suficiente para afastar o calor insuportável do verão. Ele sentia gotas de suor escorrendo por sua testa e a camiseta do pijama grudando desconfortável em seu peito, mas suas mãos tremiam como se tivessem sido mergulhadas em águas glaciais.

Seu estômago deu uma cambalhota com a sensação de vertigem.

Ele se encolheu, cravando os dedos em torno de seus maxilares e puxando os joelhos para o peito. Seus músculos se contraíram contra a sua vontade, teimando em simular a consistência de uma rocha, espremendo suas articulações, enclausurando-o na cama, no chão, na sujeira.

O quarto vazio o oprimia. O quarto vazio de Hua Cheng retornava à sua mente. Era como olhar para um espelho. Uma voz cruel e cheia de escárnio sussurrou no fundo de sua mente: você o quer aqui por conta de um desejo altruísta e empatia legítima, ou apenas para tentar rechaçar a sua própria solidão?

Xie Lian se sentia desajustado demais para esse mundo.

—----

“A-Lian?”

Xie Lian olhava para o próprio caderno, mas não enxergava suas anotações. Sua mente estava vagando em algum lugar distante.

“A-Lian!”

Ele percebeu que alguém falava com ele apenas quando Shi Qingxuan deu dois tapas leves em seu ombro. Xie Lian levantou os olhos. O garoto vestia uma camiseta verde menta e presilhas com pequenas estrelinhas prateadas afastando sua franja do rosto. Mais cedo, naquele dia, uma das garotas da sala o presenteou com os acessórios, e Qingxuan imediatamente colocou as presilhas no cabelo, arrancando risinhos das amigas.

Sentado na sua frente, Shi Qingxuan o olhava desconfiado.

“A-Lian, tá tudo bem? Você está mais distraído que o normal.”

“Tudo bem, sim.” Xie Lian respondeu enquanto esfregava o rosto. “Eu só não dormi direito.”

“Bom, então trate de acordar.” Shi Qingxuan respondeu com seu ânimo habitual. “Se quiser eu busco um café, mas você precisa me explicar esses exercícios. Se eu não passar na próxima prova, meu irmão vai me matar.”

Xie Lian olhou para os exercícios de matemática que Shi Qingxuan empurrava para ele. Com um suspiro, fez algumas indicações, e devolveu o caderno para o amigo tentar novamente.

“Sério, você é uma benção. Onde eu posso te oferecer incenso?” Shi Qingxuan comentou, enquanto mordia a tampa da caneta em suas mãos e encarava o caderno. “Eu nunca ia entender isso sozinho.”

“Hm.”

 Shi Qingxuan disse mais alguma coisa, mas Xie Lian não estava ouvindo de novo. Ele rabiscou alguns traços sem sentido no seu caderno, enquanto escutava dentro de sua própria cabeça, como um disco em loop, o ruído distante da voz grave de Hua Cheng cantando no dia anterior.

A impressão que Hua Cheng deixara em sua memória tinha o impedido de fechar os olhos durante a noite. Mesmo que seu corpo estivesse pesado e exausto, ele sentia como se sua mente vagasse em um lugar muito distante, encarando um céu distante que o chamava para alçar voo, enquanto um peso tirânico acorrentava seu corpo no chão.

“Qingxuan?”, ele chamou, sem tirar os olhos de seu caderno.

“O que?”

“O que você pensa sobre duas pessoas do mesmo sexo se relacionarem?”

Ele perguntou distraidamente, quase como se não tivesse pensado de verdade no que suas palavras significavam.

Clack.

O barulho tirou Xie Lian de seu devaneio e ele levantou os olhos pela segunda vez. A caneta que até então estava nas mãos de Shi Qingxuan havia desabado no chão. Ele encarava Xie Lian com a boca um pouco aberta, parecendo aflito.

“Por que você está me perguntando isso?”, Shi Qingxuan disse, e sua voz soava muito diferente de seu costumeiro tom descontraído.

“Motivo nenhum.” Xie Lian se apressou em dizer, levantando as mãos em um gesto apologético. A reação de Shi Qingxuan o alarmou. Ele abaixou para apanhar a caneta e ganhar tempo para colocar uma expressão neutra no rosto, e tentou se explicar inventando uma desculpa. “Eu vi um filme sobre isso ontem, e fiquei pensando.”

“Oh.” Shi Qingxuan ainda parecia tenso, mas tentava se recompor. “Bem... Eu não vejo problemas, acho?”

Xie Lian estendeu a caneta de volta para ele.

“Uhum.”, ele assentiu, achando melhor não prolongar o assunto.

“Mas não saia por aí perguntando isso para qualquer um.” Shi Qingxuan o avisou, ainda um pouco tenso, baixando a voz. “O pessoal daqui, bem...”

“Não se preocupe, ninguém conversa comigo.” Xie Lian respondeu, poupando-o de terminar a frase.

“Ah, é...”

Um silêncio desconfortável pairou entre os dois.

“Ah”, Xie Lian se lembrou de algo que convenientemente servia para mudar de assunto. “San Lang disse que vai à festa comigo.”

Os olhos de Shi Qingxuan brilharam.

“Sério?”

Havia empolgação em sua voz.

“Você não está preocupado com a reação das pessoas?”, Xie Lian questionou.

“É claro que não. Assim é mais divertido!”

Xie Lian engoliu uma risada ansiosa que tentou escapar de sua garganta, e se contentou com um pequeno sorriso aliviado. Shi Qingxuan parecia mais ele mesmo quando estava despreocupado.

—-----

A soul in tension that’s learning to fly

Condition grounded but determined to try

Can’t keep my eyes from the circling skyes

Tongue-tied and twisted, just an earth-bound misfit, I

 

Era sexta-feira, fim da tarde.

Xie Lian não sabia o que vestir para uma festa.

Ele encarava seu armário há algum tempo, sem ideias do que escolher. Uma pontada de culpa o atravessou por não ter considerado isso antes, mas agora era muito tarde para ir até alguma loja e procurar algo novo para vestir.

Seu armário era composto principalmente por calças jeans desbotadas, moletons e camisetas brancas. Tudo era muito básico e confortável, mas parecia errado usar suas roupas do dia a dia para ir a uma festa. No entanto, na mudança, ele tinha descartado praticamente todas as peças de roupa que não fossem práticas e simples. Havia ainda algumas camisas sociais, mas elas não pareciam apropriadas para a ocasião.

Ele respirou fundo, frustrado.

A festa nem havia começado, e ele já estava ansioso. Parte dele queria desistir e apenas passar a noite deitado em sua cama.

Percorrendo uma última vez pelo armário antes de se render e apanhar qualquer roupa, seus olhos foram atraídos para um tecido azul pastel que parecia estar soterrado por baixo de outras peças. Ele puxou o tecido e se deparou com um macacão largo e confortável, sem mangas, com um bolso grande na região do abdômen. Sem dúvidas, após uma rápida observação, era possível concluir se tratava de uma peça de qualidade.

Xie Lian franziu a sobrancelha. Aquilo era algo que ele não se lembrava de ter usado, muito menos trazido junto com as outras roupas na mudança. O macacão, que parecia um pouco feminino, o lembrou de sua mãe. Ela gostava de escolher roupas delicadas para ele. Talvez essa fosse uma das várias que ela havia comprado sem consulta-lo e enfiado em seu armário para surpreendê-lo. Talvez ela tivesse vindo para sua casa nova misturada entre outras roupas, despercebida.

Ele esticou a peça sobre a sua cama, e parou para contempla-la. Algo em sua garganta apertou dolorosamente. Xie Lian não sabia se aquela roupa era mesmo um resquício de sua mãe, mas a memória que ela evocava doía. Sua mão tocou o tecido macio como se ele fosse algo frágil, prestes a se estilhaçar. Ele pensou que o gesto lhe traria algum conforto, mas conforme seus dedos sentiam o pano, sua mente pareceu se esvaziar mais.

A vibração do celular em seu bolso o despertou.

San Lang, 18h37

Gege, nos encontramos as 8?

Xie Lian se sentiu imensamente grato ao ver de quem era a mensagem.

Xie Lian, 18h38

Sim

Onde?

San Lang, 18h38

Eu vou te buscar

Seus olhos se deslocaram do celular para a bateria surrada que se encontrava em um canto de seu quarto junto com seu violão, e um sorriso espontâneo surgiu em seus lábios.

Se sentindo um pouco mais aliviado, ele decidiu parar de enrolar. Aquela era a única peça de roupa de seu armário que parecia adequada para o evento, então ele se conformou em usá-la. Com sorte, pelo menos pareceria que ele tentou se arrumar um pouco. Ele separou também uma camiseta branca e um par de tênis que não estava totalmente desbotado, e então se dirigiu para o chuveiro.

Depois de terminar seu banho e se vestir, Xie Lian se avaliou no espelho. O macacão era confortável e lhe caia bem — com sua mãe sempre dizia, tons claros combinavam com ele. O tecido era tão delicado que parecia acariciar sua pele, agora acostumada com roupas de algodão grosseiro. Ninguém poderia dizer que ele estava malvestido, e no entanto, também não havia nada de deslumbrante em sua escolha de traje. Talvez fosse simples demais? Ele franziu o rosto, um pouco preocupado.

Mas qualquer outra coisa mais adornada do que aquilo lhe pareceria algo que não ele mesmo. Isso seria algo que ele não estava disposto a ceder.

Ele apanhou sua gargantilha de veludo preto e a prendeu no pescoço. Seus olhos pausaram então em um vidro de perfume empoeirado que estava pousado, junto com outros produtos, sobre a pia do banheiro. Pelo formato, era possível perceber que se tratava de um perfume feminino. Sua aparência indicava que ele não era usado com frequência. Há um bom tempo Xie Lian tinha parado de usar cosméticos e perfumes. Aquele em questão, o único remanescente do expurgo da mudança, abandonado em sua pia, era, de novo, um presente de sua mãe.

Xie Lian sabia conscientemente que estava evitando objetos relacionados à sua mãe. Mesmo assim, eles estavam à vista, espalhados pela casa. Xie Lian nunca sentia o impulso de se livrar de nenhum deles. Seus olhos e sua mente apenas os ignoravam, como se fossem transparentes ou incorpóreos. No entanto, naquela noite, alguns deles pareciam estar teimosamente mais coloridos

Após considerar os prós e contras em relação às memorias que aquele odor poderia suscitar, Xie Lian ainda assim optou por apanhar o vidro e borrifar o perfume em seu pescoço. O cheiro era um misto de alguma flor branca, com algo um pouco cítrico que equilibrava o adocicado predominante, e no fundo, um leve toque de melão. A flor, cujo nome Xie Lian não saberia dizer, ele reconhecia como uma das que sua mãe cultivava com grande afeto. Com muito esforço, ele afastou a imagem dela se deslocando pelo jardim, com um regador em mãos, cantarolando alguma música romântica pelos arbustos floridos e bem podados. O perfume deixou um sabor amargo no céu de sua boca.

—----

Agora restava apenas esperar por Hua Cheng.

Seus batimentos pareciam martelar seus tímpanos enquanto ele olhava para as horas na tela de seu celular, sem realmente enxergar nada. Sua ansiedade paralisante parecia ter sido substituída por pequenas agulhas de adrenalina dançando por entre seus dedos e arrepiando sua nuca.

Ao ouvir a campainha, ele disparou pelo corredor, passou por Mei Nianqing que assistia TV na sala, e agarrou a maçaneta.

“San La...”

O fim do nome morreu em seus lábios antes de terminar de sair.

Xie Lian sentiu seu rosto entrar em combustão. Seus olhos viajaram apenas por um instante por Hua Cheng, antes dele desviá-los como se tivesse olhado diretamente para o sol por tempo demais.

Hua Cheng o encarou, confuso.

“Gege?”

“Ah, olá.”, ele tentou responder, desesperado para se recompor e falhando miseravelmente.

Uma risada abafada veio da direção de Hua Cheng.

“Olá,  Gege.”

Xie Lian se arriscou a levantar os olhos. Hua Cheng o olhava com os cantos de seus lábios curvados para cima, parecendo estar se divertindo.

“Você está pronto? Pegou tudo o que precisa?”, sua voz grave questionou, agradável e gentil. Aquela era a forma como ele sempre se dirigia a Xie Lian.

Agora Xie Lian sabia como aquela voz soava enquanto cantava, e, se lembrando mais uma vez do som, algo pareceu entalar em sua garganta.

Hua Cheng esperava com paciência por uma resposta. Percebendo que estava parado e encarando em silencio a algum tempo, Xie Lian apressadamente assentiu enquanto desviava os olhos de novo, apanhou suas chaves no hall, se despediu de seu tutor gaguejando para dentro da casa, saiu tropeçando pelo pequeno desnível entre a casa e a rua, e trancou a porta enquanto engolia sua vontade de bater com a testa na superfície de madeira.

Sua mão não havia se afastado da maçaneta por nem dois segundos quando ele percebeu que se esquecera de algo. Ele tentou de novo colocar a chave no trinco, mas seus dedos tremiam, e ele continuava errando o encaixe. Era como se a chave tivesse vida própria e fosse contratada por algum programa de auditório especificamente para fazer Xie Lian parecer ridículo em rede nacional.

Hua Cheng o observava com as sobrancelhas levantadas.

“Ah, eu esqueci do mapa.”, ele se explicou, ainda lutando com a chave. “Qingxuan desenhou um explicando como chegar na casa dele.”

Assim que terminou a frase, Xie Lian congelou com a chave em mãos, percebendo que não precisava de um mapa rabiscado toscamente quando poderia simplesmente colocar o endereço no GPS de seu celular.

“Não é necessário, Gege.” Hua Cheng respondeu, contendo uma risada. “Eu sei o caminho.”

“Oh, uhm, okay.”

Xie Lian não pôde deixar de notar que sua voz soava um tanto abestalhada. De repente, lhe pareceu interessante a ideia de cavar um buraco até o núcleo da terra e se esconder lá dentro pelo próximo século. Hua Cheng teve a elegância de não fazer nenhum comentário zombando dele, mas Xie Lian ainda procurava mentalmente lembrar se tinha alguma loja de jardinagem no caminho onde ele poderia comprar uma pá.

Os dois começaram a caminhar.

Hua Cheng parecia estar com um ótimo humor. Ele andava ao lado de Xie Lian, deixando-o decidir o ritmo, passos languidos e mãos no bolso, um sorriso atraente no rosto, olhos parecendo fixados no fim da rua, murmurando uma melodia com os lábios fechados.

Xie Lian aproveitou o momento para examina-lo de novo.

Hua Cheng vestia uma calça colada de couro preto, o tecido lustroso ressaltando suas pernas longas e elegantes conforme ele andava. Em seus pés havia uma bota de cano baixo, também preta, bastante simples, mas de bom-gosto. Seus pulsos estavam adornados por pulseiras e braceletes prateados que tintilavam, suas orelhas decoradas com piercings e brincos assimétricos: de um lado, três argolas, de outro, apenas uma com um pingente em formato de borboleta, seguida de dois pequenos brincos em forma de espinhos. Seu cabelo, como sempre, estava solto e caia rebelde por suas costas, a não ser por uma trança fina do lado direito, amarrada com uma fita carmesim na ponta. Seus olhos brilhantes estavam delineados com um lápis de olho vermelho nas pálpebras inferiores.

No entanto, era a peça de roupa em seu tronco que havia desequilibrado a compostura já irrisória de Xie Lian. Hua Cheng vestia uma camisa de renda preta. Apenas renda. Não havia nenhum tipo de forro, e as únicas partes feitas de um tecido diferente — algum tipo de cetim — eram a gola e a fina linha central onde estavam costurados os botões. Por baixo da renda era possível ver claramente seus ombros, costas, tórax e abdômen, assim como uma tatuagem que Xie Lian não sabia que existia na altura de sua clavícula.

Completamente exposto.

Não satisfeito com aquele nível de exposição, Hua Cheng também havia deixado dois botões da camisa abertos e dobrado as mangas até a altura dos cotovelo.

Os olhos de Xie Lian se deslocaram por um instante pela pequena abertura em formato de V entre os botões, descendo de seu pescoço até encontrar com o início de seu tórax. Eles dispararam de novo para o chão quando Hua Cheng virou o rosto na direção dele.

“Gege, você comeu algo antes de sair?”

Xie Lian se censurava mentalmente por seu comportamento indecente, de modo que sua competência linguística ainda estava bastante prejudicada.

“Eu... Sim, ah, quer dizer, não... Hm, comer? Por quê?”

Hua Cheng segurou o riso de novo.

“Gege, não tem comida nesse tipo de festa.”

“Não?”

“Não. Só álcool.”

Xie Lian franziu as sobrancelhas. Por que alguém faria uma festa sem comida? Não era normal oferecer aperitivos e doces nesse tipo de ocasião? Não era irresponsável consumir álcool sem estar ingerindo alimentos?

Ah, espera. Eles não têm idade para beber. Talvez o problema principal não fosse a falta de comida.

“Vamos pegar alguma coisa para você no caminho.” Hua Cheng sugeriu, e Xie Lian balançou a cabeça assentindo. “Algum pedido?”

“San Lang pode escolher.”

Xie Lian suspirou, empurrando à força seu constrangimento de volta para dentro do estômago junto com o resto de sua agitação. Havia coisas mais sérias para se preocupar no momento, por exemplo, sua colossal inexperiência a respeito do tipo de reunião social que ele estava prestes a participar. Considerando sua sorte, colocar-se em uma situação vexatória era quase inevitável.

“Mais alguma coisa que eu deveria saber sobre festas?”, ele perguntou, sentindo os músculos de seu rosto tensionados em torno da mandíbula.

Afinal de contas, a melhor forma de se proteger é se informar preventivamente, não?

“Ah, sim. Isso é muito importante, preste atenção.”

Xie Lian assentiu, colocando sua melhor expressão de bom aluno.

“Não se esqueça: como disse a célebre Coco Chanel, antes de sair de casa, se olhe no espelho e tire um item que estiver usando. De preferência, as calças.”

Xie Lian sentiu sua boca despencar em uma expressão horrorizada.

“Hm, Gege já saiu de casa com as calças, parece que começou errado.”

“San Lang!”

A risada de Hua Cheng ecoou pela rua, e a sensação de euforia e vertigem, que Xie Lian com tanto esforço empurrara para longe, retornou impiedosa ao seu estômago.

“Gege não precisa se preocupar, é só um monte de gente bêbada dançando e gritando. Ninguém vai prestar atenção em nós.”

Xie Lian massageou sua testa, sem saber muito bem como responder. Ele não estava acostumado a se sentir simultaneamente tenso e eufórico. Geralmente era um ou outro, pendendo com bem mais frequência para o primeiro.

“Ela realmente disse isso?”

“Hm?”, Hua Cheng questionou, tentando compreender a pergunta.

“Coco Chanel”

“Ah, sim. Tirando a parte das calças.”

O rosto de Xie Lian se cobriu com uma suave coloração cor-de-rosa, mas ele não conseguiu conter um pequeno sorriso.

“Descarado.”, ele murmurou, olhando para as próprias mãos. Hua Cheng não parecia arrependido.

Após alguns passos em silêncio, Xie Lian o chamou com timidez:

“San Lang?”

“Sim?”

“Você acha que minhas roupas estão apropriadas?”

Hua Cheng parou de andar e o olhou de cima a baixo, fazendo uma pose pensativa, com uma das mãos segurando seu queixo. Seus lábios se curvaram em seu sorriso malicioso.

“Gege está adorável.”

“Não zombe.”

“Jamais. Gege estaria adorável mesmo se estivesse de pijamas.”

Xie Lian fez um bico.

“Ou de meia arrastão.”

Xie Lian arregalou os olhos.

“Ou sem calças.”

Xie Lian se engasgou.

“Ou..”

Xie Lian ergueu as mãos e implorou com a voz esganiçada.

“Chega, chega, tenha piedade.”

A risada jovial de Hua Cheng arrepiou os fios de cabelo em sua nuca.

 Xie Lian fez uma nota mental para não se esquecer de comprar aquela pá.

Hua Cheng gesticulou para eles continuarem a andar, enquanto acrescentava em um tom apaziguador:

“Ok, ok. Mas realmente não importa, tente não se preocupar tanto.” Seu olhar malicioso faiscou na direção de Xie Lian. “Se Gege fizer alguma vergonhosa, não tem problema. Eu só preciso me certificar de que algo pior aconteça, assim ninguém vai se lembrar.”

O comentário fez Xie Lian cobrir a boca com as mãos para controlar sua risada, e Hua Cheng, parecendo satisfeito por finalmente conseguir distrai-lo, voltou a cantarolar com a boca fechada.

Xie Lian respirou fundo algumas vezes, tentando afastar suas outras preocupações e apreciar a melodia desconhecida que acompanhava a caminhada dos dois sob as luzes amareladas dos postes de rua. Aos poucos, sua mente foi se esvaziando da torrente incessante de preocupações, e ele se sentiu quase sonolento. Seus passos eram lentos, preguiçosos. Havia leveza em seus pés.

Above the planet on a wing and a prayer

My grubby halo, a vapor trail in the empty air

Across the clouds I see my shadow fly

Out of the corner of my watering eye

A dream unthreatened by the morning light

Could blow this soul right through the roof of the night

There’s no sensation to compare with this

Suspended animation, a state of bliss

Can’t keep my eyes from the circling skyes

Tongue-tied and twisted, just an earth-bound misfit, I

 

Hua Cheng não parecia ter pressa para chegar ao destino. Xie Lian não queria que a música terminasse.


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Notas finais do capítulo

Eu não tenho nada contra Beatles nem Coldplay, ok? Não me agridam, mandem um fax para o Huahua reclamando das birras dele.
Aliás, me pergunto se as minhas referências musicais entregam a minha idade?
Sei que esse capítulo foi só uma longa sequência do Xie Lian tendo gay panic, mas o próximo deve ter um pouco mais de plot.
Agradecimentos ao meu mini boi de coleirinha por ajudar com ideias para os diálogos e figurinos dos personagens, além das revisões. Sem ela, os diálogos teriam só metade da graça.
Vocês acham que eu escrevo demais aqui?
Tomem suas vacinas e não se esqueçam de usar máscara para sair de casa, heim?



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