Noite chuvosa

Uma fria tempestade castigava severamente o grandioso Reino de Órion. As ruas dele, escurecidas pela noite, estavam vazias, ninguém se atrevia a cruzar o portão de casa. Nenhum comerciante foi corajoso o suficiente para manter sua loja aberta.

Houve uma abrangente queda de luz que já durava horas, de maneira que a maioria dos cidadãos dependia da lua cheia e das estrelas para conseguir ver o que se passava além de suas janelas. Pelo menos aqueles poucos que insistiam em continuar acordados.

Incluídos nessa pequena parte, no grupo dos que não foram dormir quando deu dez horas da noite, estavam Kin e seus amigos. Todos reunidos na casa dela. Na sala de estar. Tiveram mais um dia exaustivo, confrontaram assassinos, ladrões e, como costumavam fazer para se livrar da carga negativa que esse trabalho colocava em seus ombros, se juntaram para conversar, rir.

Encarar a morte os tornava mais sensíveis a momentos assim.

— Ah, tá! Em tudo o que a gente joga eu sempre perco! Eu ainda vou descobrir como é que vocês fazem isso! — Kin prometia, como se fosse inacreditável e mortalmente sério o que estava dizendo. Sentada no batente de ferro da janela ao lado da porta, apoiava o pé no braço de uma cadeira de madeira e terminava de pintar a unha do dedão com um esmalte rosa claro.

Falava com Arashi e com Naomi. Ele, da mesinha de centro da sala, ouvia com os braços cruzados e um sorriso que instigava desafio. Naomi, esparramada no sofá vermelho de veludo, a olhou. Kin nunca foi uma boa perdedora, vencê-la nos jogos não perdia a graça por causa disso. Estava na cara que os dois não perderiam aquela chance de zoar com a loira.

Arashi construiu com as mãos uma esfera de gelo e jogou para ela. Kin soltou rápido o vidrinho de esmalte, o pincel e a pegou por reflexo. Por fim, lançou pra ele o olhar de quem perguntava "por que diabos você fez isso?".

— Joga de volta, anda. Quem deixar cair primeiro, perde. — Sugeriu.

Quando ouviu a proposta dele, Naomi prendeu os cabelos negros para trás com uma xuxa branca e se sentou.

— Vai, joga. — Entrou na brincadeira.

Suspeitando de um conluio, Kin ficou de pé. Claro que não fugiria do desafio. Porém, seria de acordo com as suas regras. Mandou o namorado ficar no lado direito da entrada da cozinha, fez Naomi ir para o esquerdo e decidiu permanecer aonde estava.

— Ok. — Arashi concordou. Seus olhos azuis claros brilhavam com a esperança de vê-la explodir de novo.

— "Ok"! — Kin engrossou a voz e o remedou. Era assim que zoava com ele.

Os dois a postos, colocou atrás da orelha o fio de cabelo ondulado que escapou de sua presilha, tirou da frente a cadeira na qual apoiava o pé para pintar a unha e arremessou a bola para Naomi. Sentou de novo no batente da janela. Conversavam durante o jogo, sabiam que aquilo duraria um bom tempo.

No andar de cima, Yue ensinava seus dois modelos a vestirem as roupas que ela mesma fez. Aguardava-os no corredor, com as costas na parede verde água e as mãos nos bolsos do short branco. Dali dava instruções a eles. 

— Andem logo! — Apressava-os. Com um gesto de mão, retirou da frente da testa uma mecha azul clara de seus lisos cabelos curtos. Ouviu os modelos murmurarem. Nem entendeu o que eles disseram, mas zombou: — Aposto que ficaram umas bonecas! 

Forçava-os a isso por vingança. Sora e Haru eram seus amigos, mas também eram uma dupla de arruaceiros que arranjava encrenca com a polícia, pegava serviço comunitário e se safava trabalhando na loja dela. O problema era que os dois nunca faziam as coisas como ela mandava, eram incapazes de cumprir ordens simples. Atrapalhavam tudo. Já estava cansada de limpar a barra deles.  

— Qual é, Yue! — Dessa vez, quem falou foi Sora. — A gente tem mesmo que fazer isso?

— É, perdoa só essa! Não vamos mais arrumar problemas! — Haru suplicava. 

Yue tirou as costas da parede em que se apoiava, dobrou as mangas longas da camiseta roxa clara que vestia e se inclinou para a porta deles. 

— Nada feito! Vocês disseram isso na última vez! — Lembrou, irritada. Ereta novamente, avisou: — E façam logo o que eu mandei, ou não vou assinar carta nenhuma pro juiz! Vão pra cadeia! 

Ouviu-os suspirar. Colocou as mãos nos quadris e deu uma risada.  

Kin, Naomi e Arashi ainda brincavam com a bola quando Yue e os garotos apareceram no topo da escadaria. Ficaram de queixo caído quando viram Sora num vestido amarelo de mangas curtas, saia rodada e Haru com um shortinho, numa camisa rosa choque tomara que caia. Quase rolaram de rir quando eles começaram a descer as escadas.

Sora rosnou, virou a cara e cruzou os braços. Haru, vermelho, abaixou a cabeça e olhou pro chão. 

— Ninguém merece! — Sora resmungou. 

— Olha, é melhor ficar quietinho se não quiser que eu te obrigue a desfilar! — Yue sussurrou para ele. Apontou as mãos pros dois e, com um sorriso enorme na cara, apresentou-os: — Tcharam! Esse é o Sora no meu primeiro design, um vestido de verão! O Haru tá usando o que é mais confortável pras retalhadoras na hora das batalhas! Não sou muito fã de rosa choque, mas nesse modelito ficou super... os dois não ficaram adoráveis?!

A plateia bateu palmas, Yue se curvou em agradecimento. No meio disso, Kin percebeu que estava com a bola de gelo na mão, notou que seus concorrentes estavam distraídos e jogou ela neles. Nenhum dos dois pegou. 

— Venci! — Comemorou, com as mãos pro alto. 

Naomi e Arashi nada tiveram a dizer. Deram mole. Haru lembrou que a casa só estava iluminada por sua causa, graças a seus poderes, então, para não ser mais visto daquele jeito, acabou com a luz de novo. Teve que fazer ela voltar quando Yue ameaçou não assinar a carta. Além disso, por culpa dessa pirraça, ela os coagiu a desfilar.