A Harpa de Safira escrita por Haru


Capítulo 1
Ossos do ofício




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Ossos do ofício

O comunicador na orelha direita de Kin vibrou e brilhou, acordando-a. Sem ainda abrir os olhos, ela tirou com a mão os loiros e encaracolados cabelos que cobriam esse seu ouvido e desligou o aparelho com um toque. Arashi, o dono do firme peitoral nu no qual ela repousava o rosto, também acordou. Abriu os olhos azuis claros. Olhou Kin. Não deixou de achar engraçada a despreocupação dela. Para acioná-los numa hora daquelas, o primeiro ministro com certeza tinha um motivo muito sério.

Tocou a namorada de leve na nuca, sabia que a garota sentia cócegas ali, que a faria acordar. Ela riu, descerrou finalmente os olhos castanhos escuros. Ameaçadora para os inimigos, um doce com quem amava. Era uma pena terem que levantar. Não só por causa do imenso sono que estavam sentindo, resultado dos meses de cansaço acumulado, mas porque amavam dormir juntos do jeitinho que estavam. Ultimamente têm tido poucas oportunidades de fazer isso. Vida de guerreiros comuns já não é fácil, a de guerreiros como eles, então, é impossível.

Esperou o seu comunicador brilhar também para ter certeza de que era algo grave mesmo. Brilhou. Descontente, Arashi mexeu nos cabelos negros que lhe caíam sobre a testa, jogou-os para trás. Com somente dezoito anos de idade, enfrentava preocupantes problemas psicológicos como ansiedade, depressão, nada o relaxava mais do que ter Kin tão próxima. A jovem e bronzeada pele de sua face tornava-se pálida e sem vida só de pensar nas suas últimas idas ao psicoterapeuta. Não que as consultas lhe fizessem mal, o problema todo é que ele não devia precisar daquilo. Era um retalhador, afinal. Talvez o mais temido do mundo. Pensar nisso o fazia se sentir pior.

Beijou a testa da retalhadora que dormia em seu peito. Com esse gesto, dizia "temos que ir". Nem precisou falar para ela entender.

— Adoro o Hayate, mas tô com tanta vontade de matar ele agora... — Resmungou Kin, meio grogue de sono. Com esforço sobre-humano, sentou-se devagar na cama para vestir a camiseta rosa clara que pendurou no banco ao lado dela.

— Acho melhor eu atendê-lo, então. — Sugeriu, fechando o cinto da calça que usava. Tocou o aparato, ficou de pé, falou com o ministro por uns breves minutos e olhou o quarto, procurou sua camiseta branca. Achou-a, vestiu apressado e, sorrindo seco, falou com Kin: — Ele quer nos encontrar na ponte. Todos nós.

Exasperada, a guerreira abaixou a cabeça e colocou o rosto entre as mãos. Ficava cansada só de imaginar como seria difícil achar Haru e Sora. Quando aqueles dois pivetes saíam de madrugada para arranjar problemas nas ruas, as confusões nas quais se metiam lhes rendia meses de trabalhos comunitários e de centros de recuperação. O chato era que, por ser irmã de Haru, ele a obedecia mais facilmente. Não tinha como fugir. A tarefa de encontrá-los cabia a ela. Pro Arashi sobrou a parte mais fácil, falar com Yue e Naomi. As duas certamente estavam acordadas.

Kin fez beicinho e bateu os pés. Perto da porta, choramingava de aflição. Esperava, assim, conquistar a compaixão de seu namorado, fazê-lo buscá-los em seu lugar. Ele entendeu logo o que ela estava fazendo. A conhecia. Piscou para ela. Amarrou as botas, levantou, bagunçou os cabelos dela com a mão e disse:

— Foi mal, loirinha. Os desordeiros são com você.

Saiu e a deixou. Kin cruzou os braços e sentou de cara feia, como uma criança. Puxou a saia de cima do banco e a vestiu. Se aqueles dois estivessem metidos em alguma briga, ia bater mais neles do que os oponentes deles. Respirou fundo e se jogou na cama de novo. Por um segundo, desistiu de sair. Sentou-se antes que seu corpo compartilhasse dessa decisão. Imaginou a quantidade de vezes que sua mãe, uma das retalhadoras mais poderosas da história, passou por uma situação como aquela. "Ser a melhor tem consequências", Yume, nada humilde, sempre dizia.

— CORRE, HARU! — Sora gritou para o amigo, partindo em disparada na frente. Haru, seguido por um grupo imenso de retalhadores bravos, fez o que ele mandou.

Infelizmente para Kin, eles estavam, sim, metidos em problemas. Nesse momento, fugiam correndo de um bando de retalhadores por uma série de becos escuros e cheios de coisas como latas de lixo, muros, cercas. Sora os provocou. Tentou ludibriá-los, roubá-los. Haru, inocente, acabou tendo que correr junto com ele, se perguntando por que não ficaram e lutaram. Podiam vencê-los, eles não eram assim tão fortes. Mas Sora gostava da emoção da fuga. Convencia-se de que seria morto caso eles o pegassem e a adrenalina tomava conta de seu corpo.

Logo após Sora, Haru deu um salto mortal sobre um cercado de ferro de dois metros de altura. Continuou correndo, agora lado a lado com o amigo. Dois retalhadores os esperavam lá no fim do beco. Haru e Sora trocaram olhares. Os adversários dispararam sobre eles dois raios lasers das mãos, Haru pulou para a parede esquerda e se esquivou, Sora pulou para a direita. Juntos, eles correram pelas paredes em alta velocidade na direção dos atacantes e os nocautearam simultaneamente, com um soco no rosto de cada.

Foram até o meio da rua, estavam numa ladeira. Da esquina de cima, um grupo com cerca de trinta guerreiros; da esquina de baixo, um com sessenta. Se não quisessem ficar e lutar, a única saída era sair voando. Haru sabia que Sora não toparia isso. Se conhecia bem seu amigo, na cabeça dele se desenrolava algum plano muito doido. Os dois conglomerados de retalhadores se aproximavam da solitária dupla. Muito mais demorado do que Haru previra, a ideia doida de Sora surgiu.

— Corre naquela direção! — Falou, apontando para cima. — Eu vou na outra, nós damos a volta e nos encontramos lá na frente! Sem voar!

O ruivinho consentiu. Não sabia bem porque fazia o que Sora mandava, mas sabia que no fim seria divertido. Correu na direção dos lutadores que os esperavam no topo da ladeira, entrou no meio deles, desviou-se de alguns golpes, derrubou alguns dos que tentavam golpeá-lo, sorriu e saiu na outra ponta, livre. Estava entendendo porque Sora fazia aquelas coisas. Era mesmo irado. Quando perceberam que Haru saiu ileso de seu meio, os adversários dele voltaram a persegui-lo. O menino correu rua a frente.

Um sujeito esperava para derrubá-lo, Haru abaixou a cabeça para esquivar-se de seu soco, o acertou no estômago e seguiu adiante. Havia mais um oitenta metros depois, Haru somente saltou por sobre ele e continuou sua desenfreada corrida. Nenhum olho era capaz de acompanhar seus movimentos. Ninguém o tocava. A sensação de poder, de ter a seus pés todo o mundo, de que ninguém podia pará-lo, tudo isso era inebriante. Enquanto fazia coisas como aquelas junto com Sora, esquecia-se de todas as intempéries, de tudo o que sofreu.

Entrou em outro beco. Não parou de correr. Quando avistou o cercado, viu também uma fenda no canto inferior esquerdo dele, um rombo com seu tamanho. Moveu-se rapidamente até lá, deslizou pelo chão, usou a perna para passar uma rasteira no retalhador que de repente entrou em seu caminho e atravessou a fenda. Ficou de pé e continuou fugindo, dessa vez olhando para trás. Ao olhar para frente, deparou-se com uma Kin enfurecida. Ela o chutou com tanta força que o atirou na parede do edifício ao lado, isso obrigou-o a parar de correr.

— Au, pra que isso...?! — Perguntou, se recompondo.

De braços cruzados, ela se explicou:

— Por ter me obrigado a vir até aqui, tô te procurando há vários minutos! Com quem você e o outro idiota mexeram dessa vez?

Haru esfregava a região do rosto onde apanhou.

— Foi com alguns bandidinhos de rua, nada sério...

Kin lhe deu as costas e abriu um par de asas douradas próximas dos ombros.

— Vamos procurá-lo, Hayate quer encontrar com a gente na ponte.
Não tiveram nem que sair do lugar para saber por onde Sora andava. O garoto passou correndo bem na entrada do beco no qual Kin e Haru se esbarraram. Quando se deu conta de que os irmãos estavam ali, Sora voltou e adentrou o beco, foi até eles. Antes de se explicar, pôs as mãos nos joelhos e respirou bastante, aproveitou o descanso. A multidão que o caçava passou correndo na esquina.

Sora sorriu. Bando de panacas. Foi até Kin e Haru.

— Vamo embora, vai. — Pediu.

Seus perseguidores não demoraram muito para notar que ele e Haru se refugiaram naquele beco e voltaram. Todos de uma só vez. Se amedrontaram, porém, quando viram que Haru e Sora estavam com Kin, a temida líder da lendária equipe dos Retalhadores de Elite. Percebendo esse receio neles, Sora colocou um sorriso triunfante no rosto e marchou até o meio do caminho para se gabar.

Parou, com as mãos na cintura. Sentia-se o vencedor.

— É isso aí, nós estamos com a líder da Guarda de Elite do Reino de Órion! Idiotas! — Vociferava Sora. — Diz pra eles, Kin!

Kin pigarreou de olhos fechados.

— Podem pegar esses dois bobalhões. — Permitiu, chocando Sora e Haru. — Vocês se meteram nessa, deem um jeito de sair! Vou esperar no prédio aqui de trás. — Avisou, recuando. Antes de ir, advertiu a dupla: — Se revidarem os ataques deles, eu bato em vocês!

— Isso não é justo! — Bradou Haru.

— Quer que a gente apanhe sem fazer nada? — Perguntou Sora.

— Isso mesmo. Vai ser por me fazerem procurá-los! Até daqui a pouco! — Se despediu, em seguida voou para o prédio de onde disse que os aguardaria.

Ouvindo-os apanhar, olhava para o céu e se perdia na beleza das estrelas. Fazia frio no Reino de Órion. Claro que nenhum frio a ponto de afetá-los, eles, que eram capazes de transitar pelo espaço sideral, mas era uma boa ocasião para Kin testar as roupas de inverno que comprou. Uma pena não ter pensado nisso antes de sair de casa, acabou vestindo sua camiseta branca com o logo do signo de Áries nas mangas curtas, uma calça comprida preta e um par de sapatilhas. Prendeu os cabelos para trás, deixá-los soltos poderia atrapalhá-la num eventual combate.

Quando achou que eles foram surrados o suficiente, apartou a briga e os levou voando até o ponto de encontro. Com galos na testa, olhos inchados, arranhões. Eles nem tentaram usar isso como pretexto para não participar da missão, sabiam que Naomi podia curar seus ferimentos com o poder dela. O caminho todo até a ponte, murmuravam como Kin era má. A retalhadora dava risadas e dizia que sabia. Aqueles dois a tiravam do sério, vê-los se dando tão mal compensava ter que ser responsável por eles, deixava tudo engraçado. Apesar de ter apenas vinte anos, sendo só seis anos mais velha do que Sora e Haru, encarava aquilo como um treino para o dia que seria mãe. Rezava para ser mais paciente com seus filhos do que era com eles.

Na velha ponte de madeira, Hayate esperava Kin chegar com os garotos para revelar a todos a missão que lhes daria. Em seu terno negro e sua camisa branca sem gravata, fazia e dizia tudo com uma seriedade que Arashi, ao longo de todos os anos que o conhecia, nunca tinha visto nele. Isso os deixou temerosos. Os fez atentos ao céu, ansiosos pela aparição do trio restante. Cada movimento que as árvores e a vegetação em volta realizavam sob a força dos ventos atraía os três que com o primeiro ministro aguardavam. Seu acastanhado rosto, sempre amigável, quedava agora inexpressivo.

Lá vinham Kin e os garotos, finalmente. Entregou-os a Naomi, para que ela os curasse, em seguida juntou-se com Arashi e Yue para escutar do ministro a razão para terem deixado suas camas tão tarde da noite. Se bem que qualquer justificativa que não fosse "o mundo está acabando" irritaria Kin. Yue não conseguiu não se espantar com o estado de Haru e Sora. Seus olhos violeta claros se sobressaltaram. Quem, além de Kin, seria capaz de deixá-los daquele jeito?

— Quando for fazer isso neles de novo, vê se me chama! — Pediu. Também já estava cansada de ter que ir limpar a barra deles com os centros de serviço comunitário. Tinha uma loja, trabalhava como estilista em suas horas vagas, fazia e vendia suas próprias peças de roupa, toda vez que arranjava problemas com a lei Sora dava um jeito de trabalhar para ela e toda vez que trabalhava para ela fazia besteira.

Kin colocou as mãos na cintura e lamentou:

— Ah, não fui eu, não.

— FOI, SIM! — Os garotos acusaram. Encostaram-se numa árvore próxima para serem regenerados por Naomi.

— Bom, não diretamente. — Retificou-se Kin. Dirigiu-se a Hayate, com quem, além da relação funcionária e chefe, tinha uma parecida com a de irmã mais nova e mais velho: — Vamos logo ao que interessa... Eu tava num dos melhores sonos da minha vida antes de você fazer a gente vir aqui, senhor ministro!

Hayate não perdeu a seriedade. Isso chamou a atenção de Arashi. Normalmente, quando Kin reclamava assim da hora ele ria desconcertado, coçava a cabeça nervoso e explicava tudo. Em vez disso, ele ficou de lado para eles, encarou as duas gangorras amarelas no meio da praça e acompanhou o voo de uma pequena cigarra que desceu sobre o capim mais alto diante de seu pé.

Seu silêncio deixou a loira ainda mais fula. Ao ver que ela ia falar mais, Arashi a tocou no ombro e a deteve. Então Kin se ligou que a coisa era séria. Hayate retirou do bolso do interior do terno um lindo instrumento musical de cor azul cobalto, uma mini harpa feita de safira. Tão bela que fez todos ficarem de queixo caído, Sora e Haru nem esperaram a cura de Naomi terminar para irem ver de perto. O grupo se aglomerou em torno do chefe de estado.

— É da Orquestra dos Espíritos, não é? — Arashi perguntou, tocando a harpa com temor. Hayate confirmou com um leve aceno de cabeça e deu ela na mão de Arashi.

— "Orquestra dos Espíritos"? O que é isso? — Yue foi a primeira a indagar.

— É de uma lenda muito antiga, mademoiselle. — Naomi respondeu. — Meu pai me contou uma vez, mas eu pensei que fosse só isso... lenda. Dizem que o Templo das Musas do Reino de Aldebaran é habitado por cinco espíritos que se manifestam uma vez a cada mil anos para entoar um hino de louvor aos astros. Cada um usa um instrumento, um deles é essa harpa. Ela não devia estar aqui. Certo?

O primeiro ministro concordou com outro aceno mudo de cabeça. Haru fez a pergunta de um milhão:

— O que acontece se os espíritos não fizerem a orquestra?

— A música precisa ser tocada uma vez a cada mil anos porque mantém o universo em ordem. — Continuou Arashi. — Se isso não acontecer, tudo será destruído, começando pela Terra.

Yue só não entendia uma coisa:

— Tá, então por que isso está aqui?

— Porque foi roubado depois do último concerto e ninguém sobrevive se colocar as mãos nela além desse dia. — Com essa fala, Kin deu por encerrada a sessão de perguntas e respostas.

— Exatamente. — Hayate se pronunciou sobre o tema. Depois, disse o que queria deles: — Preciso que vocês seis devolvam esse artefato para o templo antes do fim do dia.

Claro que aceitaram. Não sem tremer, porém. Hoje, o destino do universo estava em suas mãos.

...

Por não existir automóvel capaz de vencê-los em velocidade, o sexteto concordou com correr toda a estrada até o Reino de Aldebaran. Os seis correram por horas antes de resolverem parar num hotel para descansar, o sol já emanava seus primeiros raios de luz quando eles entraram no estabelecimento escolhido. Yue foi com Sora até a recepção perguntar pelos quartos, fazer o check-in.

O restante do grupo esperou nas poltronas do saguão. Um lugar pouco humilde, reconheceram logo. Seu piso era imenso, rosa claro, feito de granito, brilhava de tão limpo e no meio, para ilustrá-lo, pintaram uma estrela dourada dentro de um círculo.

A poucos metros das poltronas onde os viajantes cansados repousavam ficava o belo balcão de madeira maciça das recepcionistas. No plural mesmo. O hotel possuía tantos quartos, era tão bem frequentado, que precisava de muitos funcionários para uma só função. As paredes e o teto em seu interior eram brancos, o centro do teto se compunha de um material transparente que dava visão para os elevadores que subiam e desciam a todo instante. As paredes foram enfeitadas com quadros artísticos caros, nas colunas foram instaladas lâmpadas em formato de flores.

Haru encarava tudo boquiaberto. Nunca esteve num lugar parecido. Pessoas ingressavam e saíam do hall a todo momento, algumas apressadas, outras relaxadas. Naomi mal via a hora de poder dormir por pelo menos alguns minutos.

Yue via toda a sua paciência ir embora. O nariz empinado da mulher que a atendeu acabou com sua calma em segundos, a perua olhava ela e Sora como se eles valessem menos, como se fossem mendigos e não pudessem pagar nem por uma bala. Mas não podia condenar a moça por pensar que eles não tinham dinheiro para bancar um quarto ali. Além de terem apenas catorze anos, entraram no local descabelados por causa dos ventos que enfrentaram no caminho, sua camiseta branca amarelada de mangas compridas verdes estava cheia de poeira, usava um short amarrotado e Sora nem camisa vestia. Ser tratada com tanto desdém a cegou para esses detalhes.

Explicou pela terceira vez o que queria, a mulher fingiu que não ouviu, olhou os clientes atrás deles e lhe pediu para repetir. Yue deu com a palma das mãos no balcão.

— Presta atenção, madame! — Começou, faltando pouco para explodir. Sorriu nervosa, consertou os clips com os quais prendeu os curtos cabelos do lado esquerdo da cabeça e se fez mais clara: — Nós estamos na rua desde as uma da manhã, eu só quero deitar um pouco! Se não parar de tratar a gente como vira-latas e nos atender, você vai saber quem eu sou! Ouviu direitinho dessa vez?!

Sora entrou na frente e a segurou pelos braços antes dela avançar sobre a recepcionista.

— Calma! Relaxa, retalhadora estilista! — Disse, tentando fazê-la voltar a si. Sabia que Yue gostava desse apelido. Após tranquilizá-la, afastou-a da funcionária e, com as mãos em seus ombros, sugeriu: — Espera aqui, deixa isso comigo... você só tá com sono! Só tá com sono! Essa não é você, né?

— É, eu só estou cheia de sono... — Concordou, balançando a cabeça. Parecia transtornada. — Essa não sou eu, normalmente eu sou... gentil e calma.

Sora pensou um pouco no que escutou.

— Vamos ficar só com "gentil". — Corrigiu-a. Yue não objetou. — Fica aqui que eu cuido disso.

Dividindo uma poltrona com Kin, Haru caiu no sono com o rosto no ombro dela. No banco a direita dos dois estava Arashi, que conversava com a loira sobre os futuros rumos da presente missão, discutia baixinho o que fazer quando chegassem na fronteira de Aldebaran. Sobrou para Naomi segurar e vigiar a harpa. Todos estavam com uma persistente impressão de que alguém estava atrás dela, não podiam vacilar. E não estranhariam se tivessem razão. Quem pusesse as mãos naquilo poderia determinar o destino do universo.

A beleza e a estrutura do objeto hipnotizaram Naomi. Ela não escutava e nem dizia nada há vários minutos, fixou os olhos cor de mel nele e, solitária, ficou a apreciá-lo. Os pontinhos brancos que o preenchiam parcialmente pela base e o azul que o cobria por inteiro a faziam pensar no cosmos. Sua luz a remetia às estrelas. Conhecia bem o infinito, melhor do que qualquer um ali, passou anos viajando pelo espaço em uma nave com um grupo de criminosos e o maior assassino da história da galáxia. Vivia choramingando por não ter talento artístico nenhum, apesar de gostar de pintar. Amaria ser capaz de colocar num quadro o que viu.

Bastou parar de contemplar a harpa por um instante para ter a sensação mais esquisita que já teve em sua vida. Por um segundo, sentiu como se não existisse nada em volta para se apoiar, como se flutuasse pelo vácuo, em seguida viu tudo duplicado. Seus batimentos aceleraram tanto que jurou poder ouvi-los. Seu rosto, já branco de nascimento, ficou cadavérico.

Contou de um até cinco, respirando compassadamente nos intervalos entre os números. De volta ao normal, avistou nitidamente um homem alto e coberto por um sobretudo negro atravessando todo o salão na direção da saída. Até tentou ver o rosto dele. Não deu. Virou-se para o lado, queria checar se Kin, Arashi ou quem sabe Haru tinham reparado no sujeito, porém, Haru continuava dormindo e o casal ainda falava sobre o resto da viagem como se tudo estivesse normal.

Essa coisa está mexendo com a minha cabeça, disse a si mesma, fitando a harpa outra vez. Kin perdeu pro Arashi no cara ou coroa, então ficou acertado que os rapazes dormiriam pelas próximas quatro horas enquanto as garotas tomavam conta do artefato místico. Depois seria a vez delas de dormir e a deles de guardar o apetrecho.

— Não acredito! — Murmurou, inconformada. Sua exclamação trouxe Naomi de volta para a realidade.

Yue, retornando com Sora, quis saber:

— O que foi?

— Perdi pra ele no cara ou coroa e nós três vamos ficar acordadas vigiando a harpa pra eles dormirem! — De cara fechada, deu as más notícias para as outras duas.

— Não! — Yue bateu os pés.

— Sim! Beleza! — Sora comemorou aos saltos. Tão alto que acordou Haru. — Vamos subir, ruivo!

Os dois foram correndo na frente. Estavam exaustos. Arashi inclinou-se para a namorada irritada e deu um carinhoso beijo na bochecha dela, levantou-se e bagunçou o topo da longa cabeleira negra lisa de Naomi e apertou de leve o nariz de Yue, como sempre fazia ao vê-la frustrada. Ainda tentou consolá-la:

— É só por quatro horas, maninha.

Yue lhe deu a chave com o endereço do quarto e ele se foi. Não eram irmãos de sangue, contudo, assim se tratavam há tempos. Tornou-se rápido uma das melhores amigas que ele tinha. Não só dele, mas do grupo todo. Em especial dele, no entanto. A conexão que tinham era realmente a de uma irmã e um irmão mais velho. Atuava como irmã mais velha de Haru quando Kin estava trabalhando, já sua relação com Sora podia ser dita indefinível, instável, de resto, se dava bem com todos os que conhecia.

No quarto, as garotas faziam o que podiam para não dormir. Kin sentou numa cadeira próxima da janela, Naomi deitou numa das camas, se distraía jogando uma bola de tênis para o teto e pegando-a de volta, Yue circulava pelos aposentos com um livro nas mãos. Todas longe da harpa. Depois dos relatos de Naomi, ficaram com medo de tocar nela. Abandonaram-na na cama do meio entre as três que ali haviam. Ocasionalmente, entretanto, se pegavam curiosas, pensando que mistérios rondavam aquele fabuloso dispositivo.

Nenhuma delas percebeu, mas para cada uma ali dentro, a temperatura estava diferente. Kin sentia frio, tanto que sentou abraçada aos joelhos, Yue experimentava calor, não atoa procurava ficar sempre debaixo do ventilador de teto. Naomi, particularmente, hora sofria frio, hora calor. A Harpa de Safira provocava isso. Só repararam na estranheza daquela coisa quando um leve zumbido agudo veio dela. Trocaram olhares. Miraram a harpa. Tremeram dos pés a cabeça.

Kin saiu da cadeira, andou até o instrumento, reclinou-se sobre ele com as mãos nos joelhos e, como quem conversava com um igual, falou:

— Tá legal, harpinha. Você não quer ficar com a gente, a gente não quer ficar com você... colabora! Hoje nós vamos te devolver!

Naomi riu.

— Ela não pode te ouvir, mademoiselle. — Disse. Duvidou disso brevemente. — Eu acho.

Yue permanecia nervosa.

— Gente, se uma coisa assim existe e tá no nosso reino há tanto tempo, como o mundo todo não sabe disso?! — Se questionava.

— Porque ela foi descoberta pela minha mãe, pelo meu pai e pelo Santsuki. — Contou Kin. Fechou um dos olhos, examinando a ferramenta como um perito, então continuou: — Eles encontraram ela num vilarejo, depois que algumas pessoas reclamaram pras autoridades que tinha uma "pedra" de safira causando doenças. Um monte de retalhadores morreu quando encostou nisso, meu pai pesquisou, descobriu a história por trás dela e o Santsuki teletransportou pro palácio, onde ficou guardada até hoje. Só hoje, no dia da orquestra, dá pra tocar nela sem ter um troço e empacotar.

— Isso é muita loucura, mas não é a maior loucura que a gente já viveu. — Yue foi forçada a admitir.

Bateram na porta. As três, em silêncio, se entreolharam. Estranhavam. Não pediram serviço de quarto. Porque estava mais perto da porta, Yue largou o livro em cima de sua cama e foi abrir para ver de que se tratava. Uma mulher. Reconheceu-a imediatamente. Uma das recepcionistas. Antes de poder dizer qualquer coisa, a moça tentou decapitá-la com uma espada. Agilmente se esquivou do corte deitando o corpo para trás, saiu para o lado e contra-atacou com um chute alto. A inimiga se defendeu usando os braços. Nesse tempo que as três perderam focadas nessa primeira adversária, uma segunda figura entrou ligeira no quarto e roubou a harpa.

Não passou desapercebido por Kin, dona dos olhos mais velozes do trio. Quando o ladrão se jogou da janela com a harpa nos braços, a loira voou atrás dele. Naomi correu para ajudar Yue, todavia, a meio caminho foi detida por um terceiro elemento.

Olhando-o tirar o capuz do rosto, Naomi bateu o dedo no comunicador na orelha e chamou Arashi:

— Não era paranoia nossa, mon amie. Estavam mesmo nos seguindo.


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