A Teoria Dos Corpos escrita por LittleR


Capítulo 3
Modo Imperativo


Notas iniciais do capítulo

Memórias de um garoto e seu corpo superlotado

Boa leitura!



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III. Modo Imperativo 

 

— O sensei disse que é muito perigoso tentar tirar a maldição de você agora — diz Itadori, caminhando ao meu lado no jardim do colégio Jujutsu, para ver as ameixeiras florescerem.

Minha cabeça se enche de advérbios interrogativos.

— Você falou com ele? — pergunto.

Itadori acena. O vento assobia entre as flores e acaricia seu cabelo, me trazendo seu cheiro de shampoo masculino e sabonete. É um cheiro fresco, gostoso, que arde nos olhos, como comer aqueles tipos de bala de menta super fortes.

Faz três dias que estou presa nesse lugar. Três dias com minhas regras gramaticais estagnadas, com pontos de exclamação e interrogação abarrotando o espaço já lotado de meu corpo. A maldição não se manifestou, mas sei que está aqui, ding dong, vindo para mim.

(4. Onomatopeia. Linguística. Figura de linguagem.)

Itadori é a única coisa que me salva. Ele me acorda pela manhã e me deixa na porta do meu quarto antes de dormir. Tomamos café juntos. Almoçamos juntos. Falamos sobre tudo.

— Eu disse a ele que talvez pudéssemos tentar colocar você em um domínio pra ver a maldição que está na sua alma — explica. — Sabe, expansões de domínios servem pra isso, mas ele disse que é perigoso, a sua maldição pode tentar matar você. Ela já estava tentando te matar quando eu cheguei e tirei você dos trilhos do trem, lembra? O sensei disse que pode ser o tipo de maldição que machuca o hospedeiro .

Eu balanço a cabeça, compreendendo.

— Faz sentido.

— Mesmo assim, ele disse que eu poderia tentar com o Sukuna pra que ele colocasse você na expansão de domínio dele, mas... eu tenho medo que ele possa tentar machucar você.

Sukuna.

Ryomen Sukuna.

Só a pronúncia da palavra me soa dura, inflexível. Eu imediatamente atribuo a ela verbos no modo imperativo.

Levante. Caia.

Morra.

Ele é a maldição com quem Itadori divide o corpo. E a mente também, aparentemente. É uma consciência completamente separada do menino que agora fala comigo.

— E não tem jeito de você se livrar… do Sukuna? — pergunto.

Itadori balança a cabeça:

— Há muito tempo atrás, quando era o rei das maldições, Sukuna foi dividido em vários pedaços que são indestrutíveis. A única forma de destruí-los é fazendo um hospedeiro forte consumi-los e depois matar o hospedeiro.

Eu paro de andar. Minha mente para de andar. Meus músculos, meus órgãos internos, meus neurônios, tudo em mim para. Congela. Estala e racha.

— Você é o hospedeiro.

Itadori sorri, o sorriso mais feliz do mundo, e dá de ombros. Um gesto tão casual. Despreocupado demais. Meu corpo congelado solta um estalido e quebra. Se estilhaça em pedaços pelo jardim.

Nunca falta uma gota de alegria nos sorrisos que Yuuji Itadori dá. E essa é a coisa mais triste que percebi sobre ele.

— Eles pretendem matar você? — Minha voz soa esganiçada. — Que porra é… — Paro. Refaço minha sentença. — Itadori-kun, você é uma criança!

— Ainda falta muito tempo até conseguirmos todos os pedaços do Sukuna. Até lá, eu não vou ser mais uma criança.

Ele não entende que nenhum de seus advérbios de tempo fazem qualquer sentido.

— Você é uma pessoa, eles não podem... Se eles vão matar você, o que diabos vão fazer comigo?

— Eles não vão matar você. Sua maldição é diferente.

— Você não tem como saber!

Estou em pânico por mim, estou em pânico por ele. Estou em pânico em todas as partes de mim e até as que não são.

As mãos de Itadori alcançam meus ombros para me acalmar. Os verbos intransitivos na luz de seus olhos são perfeitamente quentes, calmos, gentis.

— Escute, Kaoroku, Sukuna é um caso especial, ok? Por isso, eles estão tomando essas medidas tão extremas. Eu estou bem com isso, eu li os termos de uso e concordei. Eu fico satisfeito só de saber que muitas pessoas vão ser salvas com um Sukuna a menos no mundo.

Nem Itadori nem eu sabíamos na época que a decisão de se tornar hospedeiro do Sukuna era exatamente o motivo pelo qual muitas pessoas morreriam.

Ele não precisava saber disso tão cedo.

Ele merecia mais.

Ele merecia tudo o que pudesse ter.

Aos 16 anos, conversando com aquele menino que me salvou mais em um curto período de tempo do que alguém fez por mim em toda minha vida, eu já sabia que ele merecia o mundo.

— Ninguém fica "bem" sabendo que vai morrer — digo. As palavras me dilacerando de dentro para fora. —  Deve haver alguma coisa muito errada com você.

Itadori sorri de novo, o sorriso que mascara uma tristeza muito antiga, muito escondida, muito enraizada.

Ninguém fica bem sabendo que vai morrer, a não ser que ache que não é necessário ao mundo, é a sentença que fica entalada em minha garganta superlotada. Itadori afunda as mãos dentro dos bolsos do moletom e se joga sentado sobre as raízes de uma ameixeira.

Não muito tempo depois, inverteríamos as posições. Seria eu sentada às raízes de uma ameixeira branca enquanto ele me olharia de cima.

— Como você se tornou uma otaku? — pergunta.

Eu paro diante dele. Ele está mudando de assunto.

— Você está mudando de assunto.

— Estou sim. Como se tornou uma otaku?

Eu suspiro, enigmas ainda na ponta de minha língua, e me sento ao lado dele para apreciar a brisa.

— Minha irmã tem uma loja de mangás e artigos de cosplay em Akihabara.

O rosto de Itadori se ilumina, cheio de adjetivos e interjeições.

— Sério? Isso deve ser muito legal!

Os adjetivos de Itadori grudam em mim, me aquecem, e estou um pouco mais feliz apenas por causa disso.

— E é mesmo. Eu adoro ficar me fantasiando de todo tipo de personagem lá. Você devia vir comigo algum dia, depois que resolvermos nosso problema. Você vai gostar, tenho certeza.

— É claro que vou!

— Vou colocar você em um cosplay de Naruto. Vocês têm muito em comum, ambos têm demônios dentro de si.

Itadori gargalha. É a melhor coisa que já ouvi no mundo inteiro. Um som que faz meu coração disparar como um tambor.

— É, mas o Kurama pelo menos é legal. Ajuda o Naruto quando ele precisa.

Esqueço repentinamente como respirar de forma respeitável. Tento contornar meu súbito acanhamento.

— Sukuna não ajuda você?

Os olhos de Itadori se tornam um pouco mais frios.

— Sukuna é a criatura mais cruel que eu já conheci. Ele já tentou matar Fushiguro e Kugisaki. Ele deixou um amigo meu morrer. — E depois de pensar um pouco, acrescenta: —  É por isso que não quero depender dele pra nada. Só quero destruí-lo e pronto.

Eu me aproximo ainda mais de Itadori e coloco uma mão em seu ombro. Eu queria dar meus olhos para ele, meus verbos para ele, meus substantivos e minha visão aguçada do mundo. Assim ele saberia que é uma pessoa maravilhosa.

Mas ele não tem como saber nada disso, a não ser que eu diga. E eu digo:

— Você é um garoto gentil, Itadori-kun. — Ele me olha. Parece surpreso. — Merece ser muito feliz, viver por mil anos e ter tudo o que quiser. E quando morrer, depois de ter vivido tanto que se cansou, morrer numa cama quentinha, cercado por pessoas que você ama e que amam você.

Os olhos de Itadori tremem contra os meus. Eu estremeço contra eles. Eu sou um terremoto inteiro ao lado de Itadori, e acho que sei o que isso significa. Sei tanto que me assusta. Sei tanto que rejeito.

— Isso foi... o que o meu avô disse antes de morrer.

Eu sorrio para o rapaz diante de mim.

— Se ele disse, então é verdade.

— Eu sabia que vocês dois estariam aqui — diz Kugisaki surgindo como uma sombra no jardim. Nos três dias que se passaram, eu troquei algumas palavras com ela, mas ela é mais amigável do que seu rosto e tom de voz deixam transparecer. — Como você está, Kaoroku? Tem alguma informação sobre sua maldição?

Eu balanço a cabeça.

— Não, mas o sensei Gojou disse que está pesquisando.

Kugisaki bufa.

— Do jeito que ele é, deve estar matando trabalho enquanto vadia por aí. Bem, tanto faz. Itadori, nós temos uma missão. Temos um dedo do Sukuna.

O ar ao redor de Itadori se torna suavemente mais denso. Seu jovem rosto endurece antes que ele olhe para mim e pontos de interrogação brotem acima de sua cabeça.

— Mas eu tenho que ficar de olho na Kaoroku.

— Eh? Você é babá dela agora? Ela consegue tomar conta de si mesma, é bem crescida.

Eu pigarreio. Reviso meus conhecimentos em retórica e digo:

— Eu vou ficar bem sozinha, vou ficar no meu quarto até você voltar. Irei até a Ieiri-san se achar que a maldição vai se manifestar, você não precisa se preocupar, Itadori-kun.

— Eu não vou deixar você ficar trancada no quarto sozinha o dia inteiro, isso é depressivo demais!

Minhas sobrancelhas se retorcem:

— Disse o garoto que concordou em morrer pelo “bem” da humanidade.

Itadori abre a boca, mas não diz nada. Ele não tem argumentos contra isso. Kugisaki ri, embora eu saiba que ela também não acha isso engraçado. Ela só concorda comigo de que tem algo muito errado com esse garoto.

— Ela tem um ponto, Itadori — declara Kugisaki.

Itadori bufa e dá de ombros. Então, se levanta.

— Tanto faz. Está decidido, Kaoroku, você vem com a gente!

— Eh?! — Kugisaki e eu exclamamos num coro. Então, eu continuo: — I-Itadori-kun, você não acha que… eu não…

Kugisaki me agarra muito animadamente pelos ombros e me põe de pé. Seu rosto tem uma alegria ácida, como tudo o que ela faz é ácido, como seu sarcasmo, como seu jeito de ser carinhosa, como seu jeito de ser empática.

Ela é como entrar numa banheira de água quente. Incômoda no começo, mas totalmente deliciosa depois que você se acostuma.

— Itadori tem razão, você vem conosco, Kaoroku! Não é como se você fosse se machucar mesmo. — Ela aponta para minha cabeça perfeitamente curada. — Eu soube que seu demônio interior aumenta suas habilidades de cura.

Nervosismo queima dentro de mim.

— M-Mas isso não é motivo para…

— Ótimo, então está decidido! — Itadori decreta. — É melhor irmos indo.

A maldição voa através do campo até diante de mim. No lugar de seu pouso, uma cratera se forma.

Ela é uma criatura disforme, horrorosa e demoníaca. Apenas olhá-la  faz meu interior petrificar.

— Kaoroku, corra daí! — grita Itadori de algum lugar.

Não sei de onde vem sua voz, não sei nem se eu mesma não imaginei. Não sei onde estão Fushiguro ou Kugisaki, ou como chegamos a essa situação, mas isso não importa porque o terror mantém meus pés congelados. A criatura se levanta e eu sou uma estátua inteiramente feita de pavor. Ela me olha dentro dos olhos quando ergue a mão em direção ao meu peito. Nos olhos dela de abismos infinitos, eu encontro um abismo ainda maior.

Eu.

O braço da maldição é arremessado do outro lado do campo. O sangue dela esguicha do lugar onde foi decepado, pinta minhas bochechas de vermelho carmesim. Sinto um sorriso nascer em meu rosto, um sorriso branco e muito longo, quase doloroso. Ouço minha própria risada e me apavoro, minha mão estendida, as palmas manchadas de branco até a metade.

— Não se atreva a me tocar — diz minha voz, soando profunda, duplicada. — Eu odeio que me toquem sem minha permissão.

Itadori chega apenas um instante antes que a criatura exploda em pedaços tão minúsculos que se fundem aos grãos de poeira do campo. Uma chuva de sangue cai sobre mim, macula o branco nos meus cabelos, nas minhas mãos, o moletom amarelo que Itadori me emprestou, porque eu não tenho roupas no colégio Jujutsu; e eu gargalho, abrindo os braços para acolher a violência da cena.

Então, noto algo perdido no chão aos meus pés, nos escombros do que sobrou da maldição. Me abaixo e o recolho, reconhecendo-o imediatamente como o pedaço indestrutível de uma criatura muito, muito superior. Um fragmento que ressoa com um poder que jamais poderei obter.

Um dedo de Ryomen Sukuna.

Minha boca saliva com a ideia de consumi-lo. Ele me fará ainda mais forte, então nada mais poderá me prender, nada mais me ameaçará, nem corpos humanos, nem sangue humano, nem garotos, nem maridos, nem irmãs mais velhas, nem irmãs mais novas, nada.

Serei apenas eu, vivendo como bem desejar.

— Você pode, por favor, me devolver isso? — diz o garoto de cabelo rosa ao meu lado, mas soa como uma ameaça.

Eu o senti se aproximar, eu o sinto agora mesmo, sua respiração, sua pele, seus ossos. Seu corpo inteiro, eu o sinto.

Ele é tremendamente errado, esse garoto.

Parece uma construção mal feita de muitas coisas e coisa nenhuma. Ele me dá nos nervos. E aciona todas as minhas reações biológicas de uma vez, oxitocina, dopamina, serotonina, pupilas dilatadas, coração acelerado, pernas bambas.

A mão dele está estendida para mim.

— Por favor — repete, e soa como se estivesse implorando.

Minha mão se move sozinha quando estende meu trunfo. Dou todas as minhas perspectivas para essa criança torta e sem futuro.

Nossas mãos quase se tocam, e eu vislumbro a ideia de roubá-lo para mim. Não o fragmento de Sukuna, o garoto. Roubá-lo e levá-lo a algum lugar solitário, onde ele será apenas meu.

Nossas mãos se tocam. O dedo de Sukuna desaparece através de uma boca que se abre na palma de Itadori. Uma risada esganiçada e maldosa ecoa, afiada o suficiente para fazer eu me encolher na escuridão deste corpo lotado.

Ondas de choque reverberam no corpo do garoto. Ele cambaleia, desnorteado. Novas formas criam forma nas formas de seu rosto. 

(5. Antanáclase. Estilística. Vício de repetição. Figura de linguagem.)

É um rosto duro, cínico e assassino que me olha agora.

Na testa e no restante da face, ao redor dos punhos e em seu corpo inteiro, marcas negras padronizadas, como aquelas que se tatuavam nos criminosos do período Edo para identificá-los.

Ele ri para mim. Sua mão se ergue de onde está até alcançar meu pescoço e esganá-lo.

— Que coisa interessante — profere Ryomen Sukuna, inclinando a cabeça para o lado. Sua voz, seu rosto, seu jeito de olhar, tudo nele é o completo oposto do garoto. — Você é a coisa mais linda e mais nojenta que eu já vi.

 

"Ando à procura de espaço 

para o desenho da vida. 

Em números me embaraço 

e perco sempre a medida. 

Se penso encontrar saída, 

em vez de abrir um compasso, 

protejo-te num abraço 

e gero uma despedida. "

(Canção Excêntrica. Cecília Meireles)


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Notas finais do capítulo

Modo imperativo é o modo verbal em que se expressa um ordem, um pedido, etc. Ex: faça, beba, levante
Espero que tenham gostado. Até mais!



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