A Teoria Dos Corpos escrita por LittleR


Capítulo 1
Verbos Intransitivos


Notas iniciais do capítulo

Memórias de um garoto que decidiu salvar outras pessoas

Boa Leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/805836/chapter/1

I. Verbos Intransitivos

 

Quanto a mim, eu gosto dos verbos.

Mais do que gosto dos substantivos, mas menos do que gosto dos adjetivos.

E eu me divirto transformando aqueles de quem gosto em verbos nas horas vagas, porque é bom juntar minhas paixões.

Pessoas. E verbos.

Pro garoto que me salvou semana passada, cabelo rosa pastel, olhos castanhos e mãos muito gentis, eu designo verbos intransitivos.

Viver. Morrer. Cair. Levantar.

Lutar.

Itadori não necessita de complementos. Ele é completo por si só.

Itadori Yuuji me agarrou pela cintura na manhã de uma segunda-feira e saltou comigo dos trilhos para o teto do trem

A primeira coisa que notei foi o barulho da sirene. Ding dong, apitando, avisando que estava vindo. O que me trouxe de volta talvez tenha sido o vento, ricocheteando contra meu rosto, urrando contra meu ouvido.

— O que estava tentando fazer? — berra o garoto através do barulho excruciante das rodas do trem contra os trilhos.

Ele tem minha idade, é mais alto, muito mais alto, tem mais músculos também, e se eu o abraçasse — se eu ousasse fazer isso — poderia enterrar meu rosto em seu pescoço.

Eu não penso nisso, não nesse momento, só muito depois. Só depois, quando todos os meus pensamentos se voltavam para enterrar alguma parte do meu corpo em alguma parte do corpo de Itadori.

Aqui, ele é um estranho que surgiu do nada, vestindo um uniforme esquisito na cor azul. Ele tem cheiro de sabonete e shampoo barato.

Está irritadíssimo (e adjetivos no superlativo são minha coisa favorita no mundo inteiro).

Eu conto os advérbios de modo e as interjeições na minha cabeça. Estou nos braços de um estranho, que está pousado sobre um trem em alta velocidade, a paisagem ao redor passando como um vulto.

Eu me agarro a ele para não cair. Mal consigo respirar. As únicas coisas que ouço são meu coração batendo e o vento rosnando contra meus ouvidos.

— O que... o que aconteceu? — balbucio, apertando ainda mais meus braços ao redor do garoto.

— O que fazia parada nos trilhos do trem? Esperava pará-lo com as mãos? Você é feita de aço, por acaso?

(1. Pergunta retórica. Sarcasmo. Ironia cáustica. Figura de linguagem).

Eu não esperava.

Eu não esperava nada.

Sequer me lembro de ter chegado aqui. Não me lembro de ter acordado hoje de manhã e a memória mais recente que tenho é a de fechar o notebook ontem à noite antes de deitar.

Eu nem sei que estação é essa.

Eu tento contar os sujeitos e predicados, mas minha cabeça gira ainda mais rápido que esse trem.

Eu empurro o rapaz.

Eu o empurro mesmo, com essas minhas mãos pequenas e esse braços finos.

Arremesso-o longe do vagão do trem até que ele suma lá para baixo, no meio da paisagem borrada. Eu caio de pé sobre a criatura de aço feroz que devora os trilhos e faz tudo ao redor parecer uma pintura ruim.

Como raios eu não fui arremessada pela inércia? Como ainda estou aqui? Desde quando tenho equilíbrio e força pra isso?

Eu observo minhas mãos. Uma mancha estranha se esgueira nas pontas dos meus dedos, é branca, vai se espalhando aos poucos, como se eu tivesse enfiado as palmas das mãos até a metade em cal.

Eu tento me livrar das manchas, mas elas fazem parte de mim. Meus cabelos, outrora negros, agora são fios brancos como teias de aranha arranhando o vento.

Eles não são meus, mas fazem parte do que eu sou quando não estou sendo eu.

O garoto volta para o trem em um salto. Fica de pé diante de mim, ombros curvados e olhar dilacerante. Há tantas perguntas em minha cabeça.

Como ele não morreu? Como eu não morri?

— Fique calma — ele pede, mas soa mais como uma ameaça.

Eu toco minhas lágrimas quando as sinto encharcando minhas bochechas. O vento leva gotículas delas para longe de mim e a sineta do trem continua. Ding dong, ding dong, vindo pra você.

Uma memória se esgueira na minha mente como uma sentença mal estruturada. Me lembro de estar de pé na sala de casa hoje de manhã, minha irmã fazendo omeletes na cozinha, eu vendo o noticiário.

Apenas a duas quadras da minha casa, dois garotos da minha escola foram atacados por um desconhecido e gravemente feridos. Uma estava em coma. O outro tinha uma fratura na coluna.

Como isso aconteceu?

Eu digo como isso aconteceu.

Às 22h de um domingo, eu não estou dormindo como achei que estaria. Estou de pé em um beco. Meus cabelos são brancos, as pontas dos meus dedos são brancas. Meus olhos são de um negro grotesco e eu sinto selvagem, eufórica. Como se o mundo coubesse nas palmas das minhas mãos.

E talvez caiba mesmo, porque eu agarro a garganta de um babaca que tentou me tocar e arremesso seu crânio contra a parede. Ele não acordará tão breve.

O outro, seu colega, tenta fugir. Eu pisoteio sua coluna até que ela estala, como se fosse um tapete de bolinhas de ar.

Nenhum deles se move, seu sangue mancha a lama do beco. Eu deixo meu crime para trás quando me movo dali.

Então estou de volta no trem, ofegando hipérboles e locuções adjetivas.

— Eu... eu não quis... — Tento dizer. — Eu não queria machucar ninguém.

O rosto de Itadori se contorce. Ele sente tanta pena de mim que é doloroso. Ele é muito puro, esse rapaz. Ele é todo feito de gentileza e muita luz lá dentro e verbos conjugados no infinitivo.

A mão dele se estende para mim e eu hesito. Estendo minha mão manchada para ele, mas elas nunca chegam a se tocar.

Uma sentença proferida com violência acima do vento define minha sentença.

— CÃO DIVINO!

Culpada. Fui condenada.

— Não, Fushiguro! — Itadori grita. É tarde demais.

O animal feroz que salta do céu sobre mim me arremessa do trem numa velocidade incrível. Seus dentes estraçalham meu braço esquerdo e voam comigo quando colido com o chão, com a areia e com os arbustos.

As pedras rasgam meu uniforme escolar, retalham a pele de minhas costas. Uma nuvem de poeira me envolve devido ao impacto, junto com dor e pavor, e o cão que continua mastigando meu braço.

Cada célula do meu corpo pulsa com selvageria. A mesma selvageria que me fez atacar duas pessoas em um beco escuro. Novos padrões se estendem por minha pele.

Eu ergo o braço, agarro a cabeça do cão negro e o arremesso longe, até que suma das minhas vistas.

Sangue desliza de meu antebraço e goteja dos meus dedos. Se dissolve na areia como um líquido volátil. Eu me inclino com um gemido sôfrego e me ponho sentada na pequena cratera causada pela queda. Minha cabeça martela interjeições e pontos de exclamação, está partida em muitos pedaços irregulares.

Minhas conjunções e advérbios são incapazes de explicar como ainda estou viva, como meus ossos estão inteiros, como é o chão que está despedaçado e não eu. Apesar das feridas e do sangue, eu estou relativamente bem, acho.

Estou tentando me levantar quando uma garota com cheiro de hidratante pula em minha frente. Ela veste o mesmo uniforme esquisito do outro rapaz. Há um selo em seus botões dourados, percebo pela primeira vez. Nas mãos, ela tem um punhado de pregos e um martelo que aponta pra mim.

Eu solto uma risada involuntária que não é exatamente minha e desisto de me levantar.

— O que pretende fazer com isso? Uma mesa? — debocho, sangue pingando de meu cílio direito quando pisco, escapulindo pela testa e pela têmpora. Ah, droga, machuquei a cabeça. — Ou será que você tem o mesmo gosto distorcido dos romanos por pregar pessoas em toras de  madeira?

(2. Sarcasmo. Ironia cáustica. Figura de linguagem.)

A garota vinca a testa e eu imediatamente atribuo a ela verbos transitivos abundantes.

Aceitar. Salvar. Matar.

Morrer.

Nobara Kugisaki pode ser conjugada de muitas, muitas maneiras. Todas lhe cabem maravilhosamente bem.

E ela talvez morra antes de saber disso.

— Não se mova — diz, e soa como uma ameaça. — Engraçadinha.

Eu ergo as mãos vagarosamente em rendição. Estou tão, tão cansada.

— Vocês me atacaram primeiro, não parece justo.

O terceiro e último rapaz surge, o cão junto com ele. É ainda mais alto que o primeiro, tem um cabelo de um negro fosco muito espetado. Parece cansado. Parece que tudo o cansa, parece que tudo o suga e o esvazia.

Não dou verbos para Megumi Fushiguro. Ele é diferente. Ele é um numeral cardinal. Ele é uma equação inteira. Não faço ideia de como lidar com números, o que me faz ficar travada em Megumi Fushiguro por um tempo.

— Você... — ele diz, mas para. Me analisa. Está me calculando até onde pode. — Você é uma...

— Garota — completa Itadori, ficando de pé ao lado dele. — É só uma garota, eu falei pra você. Ela estava nos trilhos do trem. O que estava tentando fazer? Estava tentando se matar?

Eu me levanto, evitando gemer muito alto. Cada parte do meu corpo dói. Cada parte de mim parece esmagada, respirando por aparelhos, sinto que meu corpo está superpopulado.

— Até onde eu sei, são vocês que estão tentando me matar. E estão quase conseguindo.

— Nós recebemos um chamado pra acabar com uma maldição que estava atacando pessoas por aqui — diz o moreno. — Mas ela é só uma garota.

— É, mas parece que tem alguma coisa estranha com ela — atesta a garota, me olhando torto. — Ela foi jogada do trem pelo seu cão e está viva.

Megumi Fushiguro finalmente parece perceber o que fez, jogar uma pessoa de um trem em movimento. Seu rosto parece quase horrorizado, de um jeito mínimo, como se os músculos de sua face fizessem muito, muito esforço para conseguir sair da inércia. Os pés dele se movem até mim, ele dá uma boa olhada na minha cabeça esguichando sangue pela minha testa.

— Droga. Eu não… Vamos ter que levar você pro hospital. Está conseguindo ver direito?

— E quanto à maldição? — Nobara pergunta.

O que faz com que recomecem uma discussão cheia de frases e conceitos que sou incapaz de entender sem um contexto. Não ainda. Haverá um dia em que farei planos e calcularei quantidades amaldiçoadas de energia e conjugarei técnicas hereditárias de invocação, mas esse dia não é hoje. Não ainda.

Eu paro e olho minhas mãos. A mancha sumiu, meus cabelos são negros de novo. Eu sei que eles estão aqui ainda. Sob minha pele, esperando que eu vá dormir pra tomar meu lugar.

Eu não sei o que diabos é uma maldição, mas o que quer que seja, está bem aqui. Eu estendo minha mão e agarro suavemente a manga da camisa de Fushiguro.

— Sou eu — digo. — Eu sou a maldição.

 

 

"Ah! Menina tonta,

toda suja de tinta,

mal o sol desponta!"

(Tanta Tinta, Cecília Meirelles)

 

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Verbos intransitivos são aqueles que não necessitam de complemento, porque sozinhos já passam uma mensagem completa, como os verbos nascer, morrer, chegar, etc...
Verbos abundantes são verbos que em determinadas conjugações, ele pode ser conjugado regularmente ou irregularmente, ele tem mais de uma forma, ex: morrido e morto, omitido e omisso, aceitado e aceito, etc...
Então, o que acharam?
Até mais!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Teoria Dos Corpos" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.