Respeito escrita por Silver Lady


Capítulo 2
Um Estranho no Ninho




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—Hordak está entre nós?! E você não nos contou? —Glimmer indagou em tom de censura.

Adora ergueu as mãos num gesto pacificador:

—Ele não vai mais fazer mal a ninguém! Eu li a mente de Hordak quando estava exorcizando a alma de Prime do seu corpo. Durante todos esses anos, o único objetivo dele era voltar para casa e agradar seu criador. Mas em vez disso...

—...Horde Prime ficou furioso porque Hordak tinha vontade própria e roubou as memórias dele—Catra interrompeu friamente —Não faça essa cara. Eu e a Purpurina aqui assistimos de camarote.

—Sim —Glimmer confirmou, com a voz trêmula —Horde Prime quis até destruir Etéria pra apagar todos os vestígios da iniciativa do Hordak! Só escapamos de ser pulverizados porque Catra falou pra ele do Coração de Etéria.

—Então você salvou o dia mais uma vez! — Bow tentou envolver a ex-vilã com o braço, recebendo em troca um safanão e um olhar atravessado —Ei, tem que admitir que você ganhou tempo precioso pra nós! — ele riu, mas depois ficou sério:

 — Tem uma coisa que eu não entendo. Hordak fez todas aquelas coisas para agradar o deus dele... é assim que os clones enxergam Horde Prime. O Hordak Errado me contou que os clones são... eram doutrinados ainda nas incubadoras. Mesmo sem a mente coletiva, eles não podiam se rebelar. Não tinham escolha. Se Hordak conseguiu romper o condicionamento a ponto de matar seu próprio deus, deve ter recuperado a memória, mas como?

Adora sorriu. Era um sorriso brilhante e quentinho como o sol da tarde:

—Ele ainda se lembrava de Entrapta. Matou Horde Prime para salvá-la. E também descobri – nós dois descobrimos, quando restaurei o resto da memória dele - que ele salvou a minha vida, há muitos anos.

Por um momento que pareceu muito longo, os únicos sons foram o canto dos pássaros e vozes discutindo ao longe.

—Como assim, Hordak salvou a sua vida? —Bow indagou —Ele te encontrou morrendo de fome numa cabana em ruínas, depois que uma praga liquidou seu povo? Shadow Weaver queria te matar porque você foi desobediente e ele não deixou? —juntou as mãos dramaticamente, os olhos brilhando —Ou ele te salvou quando um bando de cadetes invejosos te deu uma surra no banheiro? E o seu trauma apagou as lembranças até a magia de She-Ra trazer tudo de volta?

Moças e bichos o fitaram com gotas na testa.

—Você anda lendo os romances melosos da Scorpia, não é? — Swift Wind deduziu.

—”O Coração Que Não Era de Pedra” e “Minha Doce Espiã Rebelde”, da Bárbara Cartola!  — os olhos do arqueiro se encheram de estrelas —Scorpia prometeu me emprestar mais quando eu termi...

—Longe de mim criticar o gosto literário de vocês dois —interrompeu Glimmer —mas temos um assunto urgente a tratar. De novo —suspirou e estendeu as mãos.

Sentindo-se culpada, Adora agarrou a mão dela, ao mesmo tempo que segurava a de Catra. Bow pegou a outra mão de Glimmer e tocou no pescoço de Swift Wind que, por sua vez, encostou sua asa em Melog.

Eles desapareceram numa luz arroxeada.

*                     *                        *

Um pouco antes dessa conversa...

She-Ra havia curado os ferimentos e até os estragos nas roupas dos membros da Rebelião. Assim mesmo, o cansaço e estresse acumulados nos últimos dias não podiam ser dissipados magicamente; por isso, todos concordaram que era melhor descansar ali mesmo, na clareira, antes de voltarem ao acampamento de Whispering Woods. Fariam, é claro, uma festinha para comemorar a vitória; mas, agora, o que todos queriam, era relaxar. E matar saudades.

Spinnerella e Netossa, para surpresa de ninguém, haviam se afastado para ficar sozinhas em algum canto da mata. Micah estava um pouco frustrado por não estar vendo Glimmer, porém Castaspella o convenceu a cochilar um pouco; afinal, teriam o resto da vida para recuperar o tempo perdido. Scorpia, Perfuma e Frosta haviam sentado, felizes e juntinhas, num tronco caído que convenientemente estava por ali. Teria sido ainda melhor se as duas mulheres pudessem sentar sozinhas, mas tudo bem. Isso é, até Mermista aparecer de cara amarrada:

—Hã, Scorpia? Será que você pode ver se a Castaspella precisa de ajuda com o Micah? Ouvi ela dizer que ele não está bem. Sabe como é, o negócio do chip. Pensei que você poderia, sabe, fazer o seu chá especial pra ele.

—Ele não está bem? Mas Adora curou todo o mundo!

Confusa, Scorpia olhou Mermista bem nos olhos. A outra tinha uma expressão que era sua velha conhecida, dos tempos de parceria com Catra, e que dizia claramente: “faça o que estou mandando sem discussões!”

—Oooh, entendi! Você quer ter uma conversa particular com Perfuma. Vem, Frosta, vamos deixar as duas sozinhas.

—Não, Frosta fica. Tente distrair a Casta e o Micah pra que eles não venham xeretar. E não deixe aquele clone... o tal de Errado, chegar perto, também, se puder.

Scorpia parou de sorrir.

— Faz tanto tempo que eu não era excluída que já tinha esquecido essa sensação.

—Você magoou ela! A Scorpia é muito sensível _ Frosta censurou,  logo que sua amigona ficou fora do alcance das vozes delas.

Mermista lançou um olhar culpado para a figura de vermelho que se afastava:

—Eu não queria fazer isso, mas ela está muito envolvida.

— Você viu algum soldado da Horda por aqui? Isso é, da Horda de Etéria? — Perfuma adivinhou.

—Eu vi – nós vimos o Hordak. A Princesa Nerd estava passeando com ele na cara da gente, vão me dizer que não notaram?

Perfuma e Frosta fizeram cara de tédio.

—Dããã — fez a princesinha —É claro que vimos. Não quer dizer que fosse Hordak. Entrapta deve ter adotado ele, como fez com o Hordak Errado.

— Todos os clones são idênticos —Perfuma acrescentou —E aquele estava rindo, quando passaram por nós. Scorpia até observou que Hordak não ria nunca, só rosnava e berrava ordens.

—Ele era um velho rabugento. Como os meus tutores. — Frosta concluiu, azeda.

—Isso não quer dizer nada! Que disfarce poderia ser melhor do que um clone sem lar? Com Horde Prime fora do caminho, ele pode ter Etéria só pra si! Foi por isso que veio atrás de Entrapta. Para enredá-la novamente na sua teia e convencê-la a construir mais máquinas destruidoras!

A última frase deixou muitas palavras não-ditas no ar. Não eram necessárias. As outras princesas se calaram num silêncio solidário. Então, Frosta levantou-se e se ofereceu para “dar um soco na fuça do Hordak”, caso o clone fosse mesmo ele. E também na de Entrapta, se ela as traísse de novo.

Só Perfuma ainda hesitava:

— Entrapta trabalhou duro pra reconquistar nossa confiança. E ela está se esforçando pra ser uma boa amiga... do jeito dela, mas ao menos está tentando. Por que ela jogaria tudo fora?

Mermista inclinou-se sobre a princesa loira, apontando para o próprio olho:

—Elementar, minha cara Perfuma! Há mulheres que jogam tudo fora – amigos, família, reinos – pelo amor de alguém. Cansei de ver isso acontecer em Mer Mysteries. E a Princesa Nerd é o alvo perfeito pra vilões aproveitadores: pouco atraente, não tem traquejo social e vive tentando agradar. Tudo isso grita baixa autoestima.

—Ela foi ao Baile das Princesas com aquele macacão manchado. Os guardas quase a mandaram entrar pela porta de serviço — comentou Frosta.

Embora, lá no fundinho, concordasse, Perfuma não gostou:

—Não é bonito ridicularizar os outros! Aposto que foi por isso que Entrapta se virou contra nós, e não só por causa de tecnologia. Ninguém aqui conversa com ela, a não ser Scorpia e o Bow. Hordak deve dito coisas que ela gostaria de ouvir, e fez Entrapta pensar que era especial... como Catra fazia com a Scorpia. Entrapta deve estar pensando que pode mudar Hordak com a força do seu am...

Mermista pôs a mão em sua boca:

—Aaargh, que seja! Se acha que consegue botar um pouco de bom senso na Princesa Nerd, ótimo! Só quero saber: está com a gente?

Sempre que Perfuma se lembrava do que Scorpia passara com Catra, sentia raiva, mesmo que ela e a gata agora fossem amigas. Se pudesse, nunca deixaria ninguém mais passar por aquilo. Levantou-se, socando a palma da mão com o punho:

—Estou dentro! Mas não seria melhor avisar Glimmer, Bow e Adora, primeiro?

—Sei lá onde é que eles estão. Mandei Sea Hawk procurá-los, mas parece que se escafederam. Devem estar querendo ficar sozinhos, como Spinnerella e Netossa. Além do mais, parece que aqueles três agora estão levando a gata brava pra todo lado.

Frosta e Perfuma protestaram. Mesmo que não tivessem gostado (não no início) da decisão do trio de não prender Catra, confiavam neles de coração. Catra parecia sinceramente arrependida, e Glimmer dissera que ela havia salvo sua vida. Por outro lado, tanto ela como Scorpia estavam realmente “envolvidas” demais. Fosse por pena de Hordak, por medo ou por causa de algum complexo problema psicológico, poderiam ajudá-lo a fugir da justiça.  E Hordak, todas concordavam, era diferente dos outros ex-membros da Horda que haviam acolhido: uma máquina sem sentimentos criada à imagem e semelhança de Horde Prime.

                                                   *                     *                        *

Um pouco antes dessa conversa...

—...Bow não queria saber de passar pelos asteroides, mas quando contei minha ideia pra Adora, ela só disse pra ele “Faça!” E nós BAM! CRÁS! Conseguimos passar. A coitadinha da Darla quase se desmanchou...

Hordak só ouvia Entrapta pela metade. Passada a euforia do reencontro e de voltar a ser ele mesmo novamente, o ex-vilão começara a reparar nos olhares estranhos das pessoas a seu redor. Cada cochicho e murmúrio o faziam esticar as orelhas com ansiedade. Flashbacks passavam por sua mente, trazendo lembranças a que ele não dera importância meses atrás, mas que agora o preocupavam. Não é que de repente houvesse se arrependido de tudo o que fizera, mas haveria consequências. Os eterianos não o deixariam escapar facilmente... e, pensando com lógica, não podia culpá-los.  

Entrapta parou tão de repente que ele quase caiu. Piscou, confuso, finalmente notando a paisagem à sua volta. Estavam numa clareira coberta de grama e flores, provavelmente graças à magia de She-Ra. Um robô da Horda – da sua Horda - e um cavalo branco rolavam alegremente no capim. O robô, Hordak lembrava agora, devia ser Emily, o...a robô reprogramada por Entrapta, mas o cavalo... tinha asas! Imensas asas coloridas, que lhe causaram uma intensa sensação de déja-vu.

“Afaste-se dela!”

Olhou para Entrapta, que devolveu seu olhar aflito. Os dois fizeram “hum-humm” ao mesmo tempo e se viraram para fugir.

Tarde Demais. O robô percebeu a presença deles e zumbiu alto, chamando a atenção do cavalo:

—Entrapta? Hordak Errado? — Levantou-se e veio trotando na direção deles, seguido pelo robô.

“Hordak o quê?” pensou o verdadeiro.

—Oi, cavalo-pássa.. digo, Swift Wind —Entrapta deu um sorriso tão exagerado que quase alcançava as orelhas.

—Até que enfim decorou meu nome. Mas quem é esse aí? Não é o Hordak Errado, estou vendo agora. Esse parece um pouco... mal-encarado. E mais feio — deu uma voltinha em torno do clone, avaliando — E metido, também.  

“Esse cavalo está me tirando?!” pensou o clone, cerrando os dentes de raiva.

—Não, não! Este é outro —Entrapta levantou-se sobre os cabelos e  cochichou no ouvido do unicórnio —Ele é o Hordak de verdade.

Swift Wind chegou a empinar de susto:

—O Hordak?! Da Zona do Medo? Como...

 Entrapta, rápida, enrolou o cabelo em volta do focinho dele para fechar sua boca:

— Chhh. Ele está do nosso lado agora. Matou Horde Prime pra salvar minha vida, e agora também é um herói!

Hordak postou-se bem na frente dele, de ombros erguidos, muito embora estivesse constrangidíssimo com o “herói”:

—Sim, eu sou Hordak. Mas também sou o clone que deixou vocês fugirem. Não quero lhes fazer mal. Apenas queria conversar com Entrapta... — virou a cabeça e corou —...a sós. Se possível.

Swift Wind olhava de um para outro. Entrapta soltou-o e ele se remexeu sobre os cascos, indeciso entre dar o alarme, deixar quieto ou dar um belo coice no ex-vilão:

—Bem que eu estranhei um clone deixar a gente ir embora sem nos ameaçar com a luz de Horde Prime. Hum... — olhou Hordak bem nos olhos, como se tentasse ler o pensamento dele — Está bem. Eu te devo uma. Duas, já que foi minha culpa Entrapta ter sido apanhada. Esperem aqui, enquanto eu falo com Adora, está bem?

— Claro! Só não conta pros outros, tá? Estou aproveitando que todo mundo acha que Hordak é um clone comum. Deve ser por isso que ninguém nos incomodou, por enquanto.

Swift Wind ainda hesitou um pouco, mas acabou se afastando, para alívio do casal.

—Por que não disse a ele que Adora já sabe?

—Vai ser mais engraçado quando ela contar! Já estou imaginando as caras de surpresa que o Bow e a Glimmer fazer! A Catra, então, vai levar um susto daqueles! — e riu.

—Catra?!  

Entrapta já havia se distraído, censurando Emily por ter denunciado a presença deles. Hordak botou a mão no ombro dela para chamar sua atenção:

—Catra está com seus amigos?

Entrapta congelou. No primeiro instante, Hordak pensou que ela fosse mudar de assunto, mas, depois de hesitar um pouco, ela se virou para ele, séria:

—Ah, é. Ainda não contei essa parte. Vem, é melhor a gente sentar.

Na falta de assentos, acomodaram-se na grama mesmo. Para o imponente Lorde Hordak e para o submisso escravo de Horde Prime, aquilo seria impensável. Para o Hordak atual era... desconfortável, mas também um pouco prazeroso, por ser algo fora dos padrões que antes regiam sua vida. Entrapta fez um rápido resumo da decisão de Adora em salvar Catra e da sua aventura com Bow pelos corredores, incluindo o encontro com o jovem clone que batizaram de Hordak Errado (“não tivemos tempo de dar outro nome pra ele”, explicou), que terminou com o retorno triunfante de She-Ra.  Hordak estava ao mesmo tempo assustado pelos perigos que Entrapta correra, e comovido em saber de suas tentativas infrutíferas de encontrá-lo.

Quanto a Catra... era difícil classificar o que sentia. Ainda tinha raiva, com certeza, porque, se não fosse por ela, não teriam passado por tantos sofrimentos. Talvez ele nem tivesse aberto o portal... Por outro lado, ela havia certamente pago por tudo o que fizera.

Assim como ele.

Seria por isso que ela tentara... ajudá-lo, dizendo que não contaria a ninguém que ele lembrara seu nome? (Vai ser o nosso segredo) Será que o olhar horrorizado dela, na cerimônia de recondicionamento, era também por causa dele, e não por medo do que aconteceria a ela mesma? Talvez nunca soubesse.

“Elimine a sombra... elimine a sombra...”  o coro cantou em sua mente.

A respiração de Hordak apressou-se e ele se obrigou se concentrar de novo no que Entrapta dizia: 

—...ela mudou muito. Nos ajudou a descobrir que Horde Prime era vulnerável à magia e a furar o bloqueio dele... na verdade, quem fez isso foi o Melog, mas a ideia foi da Catra. Ela até me pediu desculpas, depois que a libertei do chip! Quase nunca me pedem desculpas.

“Como assim, nunca lhe pedem desculpas? Nem mesmo esses que você chama de amigos?”  Hordak se indignou, mas tinha receio de que Entrapta se fechasse, caso ele tentasse aprofundar o assunto. Preferiu manter o foco em Catra:

—Acha que um pedido de desculpas conserta o que ela fez com você?

—Claro que não! Nunca mais tentarei ser amiga dela. É que, como Adora e Bow me deram uma segunda chance, achei que deveria fazer o mesmo com a Catra. E também... quando a vi toda quebrada, senti pena. Fiquei pensando que você deveria ter passado pela mesma coisa... e eu tive que te deixar lá — sua voz se embargou.

Olhou para o chão, esperando que a lágrima que já sentia em seu rosto caísse entre os pés, porém a pequena gota de água nunca chegou a seu destino. Dois dedos azuis suavemente a enxugaram, com cuidado para não arranhar a pele morena. Entrapta ergueu os olhos, surpresa com aquele carinho : Hordak estava inclinado, bem na sua frente. Ele sorriu, de um jeito tão doce que nem mesmo ela imaginara que veria Hordak fazer algum dia, e mostrou-lhe o cristal que encontrara semanas atrás na pilha de escombros:

—Você não fracassou. Você me trouxe de volta —falou baixinho, a voz rouca.

Ela apenas sorriu e aproximou-se dele, devagarinho...

— Hã, Entrapta. Podemos conversar? — indagou a voz de Perfuma.

Os dois praticamente pularam para longe um do outro. Hordak bateu em Emily, que estava bem atrás dele, e quase caiu sentado. Rapidamente, guardou o cristal de volta em seu cinto, já que aquela porcaria de uniforme não tinha bolso.  

Perfuma estava parada a poucos metros, tão vermelha quanto eles. Hordak e Entrapta trocaram um olhar desanimado. Que saudades do tempo em que ele despachava intrometidos com um “Sai daquiiii!!!!”.

— Hum... Pode ser mais tarde? Beeeem mais tarde, daqui a umas... três horas, pelo menos? —Entrapta pechinchou, erguendo três dedos capilares —Ou, melhor ainda...  amanhã?

Longe de amolecer com o pedido, Perfuma avançou, com um olhar determinado (e irritado, também):

— Não dá. Temos que conversar agora. Em particular — agarrou Entrapta e foi levando-a de arrasto, antes que Hordak pudesse reagir. Nem sequer olhou para ele.

Ele começou a rosnar, mas Entrapta o deteve, com acenos de cabelo e um sorriso:

—Está tudo bem! Parece que o assunto é urgente. Eu volto logo... digo, assim que Perfuma deixar. Não saiam daí!

— Vá atrás delas — Hordak cochichou para a robô.

Emily virou o olho rosa para ele. Era difícil saber se ela hesitava porque Entrapta havia pedido que eles permanecessem ali ou porque achava atrevimento ele lhe dar ordens. Por fim, abaixou e levantou o corpo, o que poderia ser considerado sua maneira de “dar de ombros”, e seguiu as duas mulheres.

Hordak não gostava daquilo nem um pouco. Por que Entrapta sempre deixava que a arrastassem e puxassem como um saco de ração?  Bem, não havia nada que pudesse fazer, pelo menos não no momento. Olhou em torno, esfregando o galo na cabeça. Como poderia se distrair naquele lugar primitivo, enquanto esperava ela voltar?

E sobretudo... por que o chão havia ficado tão frio de repente? Nem conseguia sentir os pés. Entrapta teria que desculpá-lo, mas era melhor sair dali... isso é, se conseguisse mover as pernas. Olhou para baixo: não admirava que não pudesse sentir os pés. Eles estavam cobertos por gelo!

Risadas o fizeram erguer a cabeça. Uma moça usando uma roupa verde justa, um homem ruivo e barbudo e uma garotinha vestida com peles (apesar do calor!) se aproximavam, saídos de trás das árvores. Tinha a vaga impressão de já ter visto as duas garotas... mas o que chamou mesmo sua atenção foi o ódio nos olhos da mais velha.  

Cenas de seus primeiros dias em Etéria passaram dentro de sua cabeça. Homens, mulheres e crianças atirando-lhe pedras e o que mais estivesse à mão. Pessoas perseguindo-o com lanças.

“Monstro!”       

“Aberração!”

— Belo golpe! — o homem estava visivelmente impressionado, mas a menina parecia preocupada:

— Na verdade, eu queria fazer ele escorregar. Não deveria ter congelado os pés.

—E daí? — disse a mulher — O que importa é que ele não vai poder fugir.

— Não tenho a intenção de... _Hordak tentou dizer, quando um forte soco o jogou para trás. Seus pés se soltaram da grama, porém permaneceram presos no bloco de gelo, e ele caiu sentado.

— Uau. Isto foi bom. — a moça esfregou com satisfação o punho dolorido — Não é tão durão sem armas, não é?

Hordak esfregou o o rosto, depois segurou o queixo e moveu-o para um lado e outro. Pelo menos não estava fraturado, embora sentisse alguns dentes moles.

— Isso foi desnecessário. Não quero lutar com vocês.

— Não — a menina apontou-lhe um dedo acusador — Você só veio enredar Entrapta de novo, para que ela o ajude a reconquistar Etéria!

Os olhos dele ficaram redondos como moedas. Que maluquice era aquela? Tentou se levantar, mas, com os pés imobilizados, era difícil, e ele caiu de novo. Suas orelhas caíram de humilhação. Fora um idiota em ter mandado Emily proteger Entrapta. Provavelmente aquela mulher só queria conversar com ela. Agora estava sozinho, servindo de objeto de ridículo para aquela gente.

No entanto, as risadas que ele esperava não vieram. Os três apenas o olhavam sérios; pareciam decepcionados, até, de acordo com o minúsculo conhecimento que Hordak tinha de expressões faciais.

A menina confirmou seu pensamento:

—Que sem graça. Achei que ele fosse mais durão.

—Está esperando que eu esbraveje ou tente atacá-los com minhas garras? — Hordak retrucou —Seria estupidez. Vocês são amigos de Entrapta e Adora, suponho. Elas ficariam decepcionadas se eu os machucasse. Prefiro esperar que elas apareçam para esclarecer este... mal-entendido.  

O discurso surpreendeu os três.

—Está dizendo que ficou amigo de Adora?!—  se a mulher tivesse dito “como se atreve a falar nela?, teria combinado mais com seu tom escandalizado.

—Não. Fui salvo por ela. De Horde Prime. Tenho uma imensa dívida com Adora por ela ter removido todos os vestígios dele de meu corpo e minha mente, e por ter restaurado minhas memórias, que ele roubou.

“E por ter me curado,” acrescentou mentalmente.

A mulher e a menina trocaram olhares confusos, mas o homem coçou a barba, pensativo.

—Faz sentido pra mim. Shadow Weaver, Scorpia, o Hordak Errado e até mesmo Catra passaram para o nosso lado. Mas nunca pensei que o líder da “nossa” Horda se juntaria a nós! Isso é que é vitória!

Abaixou-se e estendeu a mão para Hordak. O clone recuou, arreganhando os dentes. A menina imediatamente ergueu os punhos; a mulher tentou puxar o homem, mas ele se soltou:

— Calma, gente! Principalmente você... Hordak. Eu não vou te fazer mal. Só quero ajudá-lo a levantar.

 Estendeu de novo a mão, como se estivesse tentando acalmar um animal ferido. A gentileza e ingenuidade do homem surpreenderam Hordak. Olhou-o bem nos olhos: sua expressão era parecida com a de Entrapta, quando esta tentava ajudá-lo com seus problemas de saúde.

Talvez ele fosse o jovem que ela chamava de Bow e que a tratava tão bem.

— Agradeço, mas posso me levantar sozinho. É melhor se afastar. Também não quero machucá-lo. 

Sem esperar resposta, enterrou as garras no bloco de gelo. O homem arregalou os olhos e se levantou num pulo; a mulher puxou-o para trás, parecendo tão assustada quanto ele. Hordak gemeu, bufou, mas com um pouco de esforço, conseguiu partir o gelo em dois, atirando algumas lascas para os lados.  

— Uau! — gritou a menina _Que demais!

Ele se levantou rápido, antes que alguém aprontasse mais alguma coisa:

— Se eu ficasse mais tempo assim, teria que amputar meus pés, princesa... Frosta, não é?

Sim... agora se lembrava, vagamente, de ter visto a menina de relance, durante algumas batalhas nos meses que antecederam a chegada de Horde Prime.

— Desculpe. Eu não queria congelar você. Só tentei criar uma pista de gelo pra fazê-lo escorregar.

— Não peça desculpas a ele!— a mulher censurou.

— Mermista, querida, tem certeza que ele é o Hordak? Ele mandou eu me afastar porque não queria que as lascas de gelo me machucassem. Sempre achei que Hordak não se importasse com ninguém.

—Eu sou Hordak — confirmou o clone, sem rodeios — E você é aquele a quem chamam de Bow? Entrapta me disse que você a tratava melhor que os outros amigos dela.  

— Bow é o meu melhor amigo! — o rosto do homem se iluminou — Se ouviu falar nele, com certeza também ouviu falar de mim: eu sou o verdadeiro e único Sea Hawk, o maior pirata de Etéria! — botou as mãos na cintura, depois ergueu o indicador para o céu, numa pose que considerava impressionante.

— Nunca ouvi falar.

Frosta riu da carinha decepcionada do pirata. Mermista revirou os olhos:

— Aaaaargh! Vocês não estão vendo? Hordak está manipulando vocês, como faz com Entrapta! Está fazendo vocês simpatizarem com ele!

— Não estou...

— CALE A BOCA! — ela ergueu a mão.

Os pedaços do bloco de gelo derreteram, formando uma pequena massa de água que subiu no ar e tomou a forma de um chicote que bateu no rosto de Hordak.

— RAAAHHH!

O tapa gelado doeu mais do que o soco, deixando um vergão vermelho na área que não estava machucada. Hordak perdeu o equilíbrio mais uma vez, porém conseguiu manter-se de pé.

— O que você fez? — Frosta se horrorizou — Não precisava bater nele!

Em defesa de Mermista, ela também estava chocada:

— Eu não queria bater! Só queria jogar água na cara dele pra fazê-lo calar a boca!

—Parece que a magia libertada está causando efeitos colaterais em seus poderes _Sea Hawk sugeriu _Deve ser por isso que não consegui encontrar Adora e os outros. Também não vi Swift Wind em lugar nenhum. Como a minha genial Mermista, ele deve ter suspeitado que o clone era Hordak, foi avisar o pessoal e Glimmer tentou teleportar todos de volta pra ravina onde deixamos nossos outros amigos.

As princesas e o clone olharam para ele, horrorizados e também surpresos porque Sea Hawk era capaz de fazer conclusões inteligentes.  

— Está dizendo... que ela teleportou todos eles pra longe daqui? — Mermista indagou.

—Eles podem estar em qualquer lugar de Etéria! — Frosta já estava entrando em pânico — Em Crimson Waste, Bright Moon... Podem ter ido parar num lugar perigoso! Como o meio do oceano! 

Hordak também estava apavorado. Não tentara lutar porque sua esperança era que Adora aparecesse e explicasse a situação dele para aqueles doidos:

—Procurem Entrapta! Ela pode localizar magia com o notepad...

— MANDEI CALAR A BOCA! — Mermista virou-se rápido na direção dele.

Hordak protegeu o rosto com o braço. Para surpresa sua, Frosta postou-se na sua frente com os braços abertos, enquanto Sea Hawk segurava o pulso da princesa furiosa. Mermista ficou chocada, também:

—Que estão fazendo? Eu não vou bater nele de novo! — soltou-se bruscamente.

—Querida, a ideia dele não é ruim. Na ausência do Bow...

—... na ausência de Bow, Glimmer e Adora, eu mando aqui, até falarmos com o rei Micah e com Castaspella. Talvez, agora que a magia de Etéria está mais forte, eles consigam localizar o pessoal. Tire a sua bandana.

—Minha o quê?

—Sua fita, trapo, sei lá! Esse negócio preto que deve ser a única coisa que mantém seus miolos dentro da sua cabeça!

—Ah, minha elegante faixa de cabeça.  

Sea Hawk obedeceu. Sob as ordens de Mermista, Hordak teve de estender as mãos e deixar que o pirata lhe amarrasse os pulsos, enquanto Frosta os vigiava, com a ordem de transformar o clone num bloco de gelo a qualquer movimento brusco. Depois, a princesa postou-se na frente dele, de mãos nos quadris.

—Você disse que Adora restaurou suas memórias. Então deve se lembrar do que fez com Salíneas. Com o meu povo.

Hordak fez que sim.

—Também deve se lembrar do que fez com o rei Micah — viu que ele parecia confuso —O pai de Glimmer. Marido da rainha Ângela, que o seu portal mandou pra outra dimensão! Ah, lembrou agora, não é? Você mandou o rei Micah pra Ilha da Fera, mas ele não morreu, apesar de tudo. Eu tomei cuidado pra que ele não descobrisse que você está aqui, porque se soubesse ia querer te queimar vivo. Só que a morte é boa demais pra crápulas da sua marca. Até que Glimmer e os outros apareçam... ou que eu convença Micah a poupar sua vida, você vai ficar sob a nossa custódia. E farei o que estiver em meu poder para que nunca mais fale com Entrapta.

O rosto de Hordak não tinha a menor expressão. Naquele momento, ele era ser o clone estoico, quase robótico que Horde Prime tentara obrigá-lo a ser.

Apenas as orelhas caídas traíam seus sentimentos.


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Notas finais do capítulo

Dica: releiam a cena em que Hordak reconhece Swift Wind ao som da sirene de Kill Bill.



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