Inventei Você? escrita por Camélia Bardon


Capítulo 9
Vermelho-rosa, cachorros-quentes e potes




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Repeti os movimentos que conhecia de cor e salteado. Confesso que eu estava um pouco nervosa. Não era algo ao qual estava acostumada. Eu era do time que ficava apavorada com mudanças, então era bem difícil manter a pose de quem tinha tudo sob controle. Matthew estava facilitando muito, era verdade. Ainda assim, a sensação de ter alguém prestando atenção ao que eu dizia e fazia era nova e repentina demais para eu ter algum sentimento guardado para reagir à ocasião. Portanto, dei uma enrolada básica na composição do arranjo.

Aquele homem... Tinha um jeito diferente de olhar para o mundo. Era óbvio que não era por mim que ele estava atraído, e sim pela ideia que eu representava no momento. Eu era sua salvação financeira, no máximo. Estávamos nos conhecendo agora, de qualquer maneira não esperava mais do que isso. Mesmo assim, ele me elogiava deliberadamente sem segundas intenções...!

Só podia ser um sonho. Eu gostaria que ele me elogiasse com segundas intenções?

Não, eu também não saberia reagir a isso. Só que, nesse caso, seria patético para alguém da minha idade. Enfim.

Neguei com a cabeça para eu mesma, afastando os pensamentos dessa linha de raciocínio. Procurei terminar o logo o buquê antes que Matthew pensasse que eu era uma incompetente ou que estava enrolando. Suspirei contemplando a combinação que ele havia sugerido. Tinha ficado mesmo bonito. Girei nos calcanhares, trazendo o buquê com cuidado.

— Aqui — sorri, buscando o jornal na escrivaninha da bagunça. Querendo ou não, a estufa era um escritório ao ar livre. Um estoque ao ar livre, quase ri em voz alta. Enrolei-as então, para não respingarem água e nem caíssem terra em nada. Matthew ergueu os olhos azuis para mim, saindo de seu estado de concentração pouco a pouco. — É só colocar num recipiente longo e fino. Se não tiver um vaso em posso arranjar um para você.

— Oh! Ah, sim, eu... Obrigado.

Sentei-me ao seu lado, deixando o buquê no meu lado do banco.

— Desculpe, eu atrapalhei você?

— Imagine — ele sorriu, encostando o queixo na ponta do bloco de desenho. — Não desperdicei meu tempo enquanto esperava. Ficou bonito o arranjo... Esse tom de vermelho é muito versátil.

Olhei para as flores em minha mão, não resistindo a franzir a testa.

— Isso é vermelho?

Ele pareceu achar graça, porquanto que apenas assentiu com a cabeça. Ainda assim, era possível ver um resquício de sorriso em seus lábios. Se eu o achei sério demais de início, agora eu começava a me questionar se precisava comprar aquele nariz de palhaço que Noelle havia sugerido.

— Sim! Esse tom se chama “vermelho cardinal”. Mas é normal confundir com rosa, não se preocupe.

— Ufa, melhor então! Agora quem vai ter que me ajudar com a paleta de cores da floricultura é você! Já pensou se alguma noiva neurótica me pede algo “vermelho cardinal” e eu crente de que esse tom era rosinha? Meu Deus, eu iria cair dura no chão!

Nós dois gargalhamos ao imaginar a cena.

— Já vou ter algo para equilibrar os lados, então — Matthew respirou fundo, retornando ao estado de espírito austero. Quase lamentei. Seu sorriso era bem bonito quando ele estava descontraído. — Enfim... Obrigado pelas flores. Vai ser bom para consultar as tonalidades enquanto estiver pintando.

— Quantos precisar — sorri sem-graça com meus próprios pensamentos. — Você... Já quer começar o rascunho?

— Hum? Não, eu já terminei.

Pisquei num misto de incredulidade e admiração. Ele que julgasse como espanto, seria até melhor para a minha pele.

— Como assim, já terminou? Rápido assim? Eu não ia fazer pose? Só pode estar de brincadeira comigo.

— É verdade! Falta adicionar cabelo e detalhes da roupa e das flores, mas o bruto do rosto e do corpo já está pronto. Quer ver? Está bem fino.

— E-eu posso?

— Claro! — foi a vez dele de chegar para o lado, dividindo tanto o espaço comigo quanto o bloco de papel. — Preciso da sua aprovação também, afinal de contas. Dê uma olhada e me diga o que achou.

Confirmei com a cabeça, chegando mais perto para analisar o rascunho. Quase deixei meu queixo cair literalmente. Mesmo não passando de um projeto, os traços de Matthew eram sutis. Era bem verdade, não havia muito a ser visto, porém o rosto já ganhava um contorno sereno e elegante. Matthew capturou o momento em que eu estava escolhendo as flores, muito concentrada. Ah, como era difícil me ver aos olhos de outra pessoa...!

— Nossa... Você conseguiu me deixar bonita...

— Só estou passando-a para o papel — ele murmurou me olhando de escanteio. — Não é nada que já não esteja aí...

Devolvi o olhar, envergonhada feito uma adolescente tímida. Tratei de me afastar pouco a pouco, com a desculpa de que as flores estavam prestes a cair do banco. Eu tinha certeza de que não queria arquivar momentos assim como “tentativas de flerte”. Aqui era trabalho e nada mais. O romantismo teria de ficar todo para Sarah Palmer.

— Posso fazer uma pergunta aleatória?

Ah, meu Deus.

— É-é claro...

— Há vaquinhas por aqui?

— Vaquinhas... Os animais, vaquinhas? — pisquei algumas vezes, um tanto confusa. Ao ver que ele assentiu segurando a risada, procurei me convencer de que o homem não tinha enlouquecido de vez. — Hum... Poppy deve saber. Eu mesma não faço ideia.

— Poppy?

Estalei a língua no céu da boca.

— Me desculpe, acabo me esquecendo de que você é novo na cidade... Por algum motivo, parece que sempre esteve aqui — me permiti divagar por um minuto. Desde que eu não fugisse do assunto, não faria mal algum. — Poppy é a dona da vinícola. Talvez das vinícolas, não sei de tudo sobre todos. Enfim. Posso perguntar ao senhor Bell, o livreiro. Ele é um arquivo ambulante na cidade... Algum motivo em especial, se não for intromissão...?

— Imagine! Ah, é só para fazer um amigo sorrir. Nada demais.

— Se é para fazer alguém sorrir, nunca é “só” ou “nada demais” — sorri. — Vamos encontrar uma vaquinha para você, senhor Carpenter.

Ele riu com a menção pomposa do sobrenome, realizando uma mesura que me arrancou uma risada bem-vinda.

— Obrigado, senhorita Lewis.

— Muito bem, gentil figura mística. Vamos colocar algo no estômago antes que eu vire um dragão, que tal?

— Por favor — ele sorriu aliviado. — Eu pago, dessa vez. Só mostre o caminho.

 

Escolhemos “comer fora”. Isso significou arranjar Matthew no banco ao meu lado, me desculpar pelo carro morrer e estar com o amortecedor precisando de reparos. Veja bem, eu dirigia muitíssimo bem, mas todas as lombadas era um deus nos acuda geral. Tanto eu quanto Matthew nos assustávamos e soltávamos gritinhos, gargalhando logo em seguida.

— Eu sempre digo que vou consertar, mas o meu salário ouve e ri da minha cara — comentei rindo da minha desgraça.

— Tipo aquela música do ABBA.

— Exatamente! — então ele conhecia ABBA e não conhecia Carpenters? Beleza... — E aí, tem alguma coisa que você não come?

— Por alergia ou frescura?

Gargalhei, segurando ao máximo para não fazer um escândalo em praça pública. Eu já tinha o riso solto desde que me conhecia por gente, agora... Se ele fosse ficar me submetendo a esses tipos de comentários eu já não tinha como responder por mim.

— Pode ser os dois!

— Ok. Alergia, mariscos. Frescura... Hum, ketchup. É açúcar puro, argh.

— Tirou a sorte grande. Não sou chegada em molusco e ketchup tem um gosto horrível.

Foi a vez de Matthew gargalhar.

— Ufa! O que você coloca no cachorro-quente, então? Só mostarda?

— Hm-hm, mostarda também é ruim. Eu coloco maionese e batata-palha! Às vezes, requeijão e bacon. É legal dar uma incrementada nas receitas, sabe?

— Os veganos que o digam! Vai ter que me apresentar a receita depois, senão a lombriga ataca.

Abri um sorriso um tanto quanto convencido demais, de brincadeira.

— Podemos fazer isso hoje mesmo. Compramos os ingredientes e preparamos os cachorros-quentes em casa. É mais barato, mais gostoso e mais divertido. Mas tem que ser rápido para eu poder voltar a trabalhar. Sim ou não?

Matthew abriu um sorriso adorável. Digo isso pelo modo como suas covinhas inventadas por mim apareceram tímidas logo ali ao lado. Eu podia até ter um rosto “perfeito para modelagem”, mas o seu não era menos do que isso. Peguei-me sorrindo com minha própria definição.

O equilíbrio perfeito entre a masculinidade clássica e a amabilidade poética.

— Eu topo. Estou vendo pão de cachorro-quente para comprar daqui.

Daí, o “comer fora” tornou-se comprar ingredientes avulsos para um almoço interativo. Matthew me disse que fazia compras semanais, uma vez que morava sozinho e não tinha carro. Então, contei enquanto voltávamos para casa que fazia compras mensais por não ter muita paciência e sempre acabar comprando as mesmas coisas. Não comentei sobre ter o tempo limitado para que ele não se sentisse mal por estar “roubando” um pouco dele. Afinal... Eu não estava me importando nem um pouco.

Deixamos as salsichas cozinharem, cortamos os pães juntos – bônus de trabalho em equipe! – e a parte do recheio ficou comigo. Apesar de ser algo simples, havia algo de majestoso em organizar as coisas em potinhos, portanto foi isso que fiz. Matthew não me censurou, pelo contrário: pareceu tão animado quanto eu.

— Vamos ver — ele analisou toda a situação do pão, me fazendo gargalhar. Quando deu a primeira mordida, Matthew exprimiu um murmúrio de aprovação. Mal esvaziando as bochechas, ele comentou: — E não é que é bom mesmo?

— Eu disse! Vi na internet que dá para colocar purê de batata também!

— Não brinca! Purê?

— Culinária brasileira, bebê. Nós que somos muito cômodos. Foi... Minha mãe quem me ensinou.

Matthew olhou-me de soslaio, tentando compreender minha hesitação. Por sorte, ele pareceu entender que era um tema sensível, e por isso procurou mudar de assunto:

— Sua Nona almoça em casa ou...?

— Não... O joelho dela não aguenta muito.

— Vamos montar um lanche para ela e levar para a floricultura, então — ele sorriu solícito. — Já que você já tem que voltar para lá de qualquer jeito... Volte com comida para amansar a fera.

Gargalhei acatando seu conselho. Sem que eu precisasse pedir, Matthew já me ajudava na produção do lanche. Sorri de lado.

— Aproveite que está com a mão na massa e faça um para a senhorita Georgette... Minha honra estaria comprometida se fizesse um prato desses e não desse como... Como você disse? Para “amansar a fera”?

— Isso — ele riu junto.

— É, então! É tipo uma oferta de paz! O que acha?

— Acho ótimo. Comida é com ela mesma. Obrigado de novo, Cecilia.

Sorri embalando os lanches com cuidado.

— Pelo quê?

— Ah... Pelo dia, em si. Foi um ótimo jeito de inaugurar as férias.

Assenti com a cabeça, desviando o olhar para o novo pote indo para seu domínio. Matthew ficaria me devendo a devolução de mais um, porém eu suspeitava que nem eu e nem ele víamos isso como um problema. Após um dia como esses, como eu poderia estar preocupada com potes?


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