Sobre crises depressivas e sua administração escrita por Lady Íris


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.
Existem algumas referência a auto mutilação e a tentativa de suicídio, mas não é nada gráfico e são passagens curtas e pequenas.
Essa história acaba bem. Eu sofro de depressão e há luz e amor no final do túnel para todos nós, com Dazai não é diferente.
Boa leitura!
TW: Abuso Infantil Implícito, Tentativas de Suicídio e Auto Mutilação.



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“Aquele que amo
Disse-me
Que precisa de mim.
Por isso
Cuido de mim
Olho meu caminho
E receio ser morta
Por uma só gota de chuva.”

Bertolt Brecht

            Chuuya estava ajoelhado no carpete macio rente ao sofá entre suas pernas abertas e definitivamente não do jeito divertido. Dazai estava recostado contra as almofadas vestindo apenas um moletom largo demais para ele e uma boxer folgada que pendia baixa na sua cintura.

            O ruivo estava cuidadosamente limpando os inúmeros cortes abertos que se espalhavam pelo interior das suas coxas em linhas sangrentas de um vermelho furioso. A gaze entre seus dedos estava embebida de álcool e doía ao contato com as feridas cruas e irritadas, mas Dazai sequer tinha energia para se encolher de dor do mesmo jeito que não teve energia para reagir quando poucos minutos atrás Chuuya o encontrou sentado no chão do banheiro, mãos molhadas e escorregadias de sangue segurando uma navalha e abrindo vergões profundos nas coxas cheias de cicatrizes velhas e curadas.

            Chuuya não falou quando arrancou a lâmina das suas mãos, o mergulhou num banho quente, secou-o e o vestiu. Dazai não falou sobre a súbita vontade de abrir seu crânio contra os ladrilhos brancos, espalhando ossos, sangue e encéfalo gosmento por todo o chão.

            Tinha sido de todo uma semana difícil e Dazai sabia que o mafioso estava esperando o momento em que realmente ficaria ruim e o profundo tédio e cansaço que havia se infiltrado entre os ossos do homem se tornariam naquela apatia e tristeza na qual ele se encontrava atualmente mergulhado, os sentimentos que faziam precipícios e penhascos atraentes, lâminas de barbear muito brilhantes e cordas extremamente confortáveis.

            Chuuya acariciou suavemente seu joelho enquanto terminava de higienizar os machucados, a expressão num misto confuso de dolorido e aliviado.

            Dolorido porque era uma recaída.

            Aliviado porque Chuuya sabia quão fácil teria sido para Dazai optar por uma carótida pulsante ao invés da carne macia das suas coxas.

            O detetive imaginava que devia estar se sentindo culpado e ele provavelmente estava em algum grau, mas era uma sensação abafada pelo desconforto dentro do seu peito e o peso comprimindo seus pulmões. A inquietação incômoda debaixo da sua pele se enrolando com o cansaço na sua mente que vivia em eterna retroalimentação de coisas que ele já sabia e não queria saber e preferia morrer à saber e porque ele não conseguia se deixar em paz.

            Dazai queria deitar, dormir e nunca acordar.

            Dazai queria pegar uma faca e esfolar sua própria pele do jeito que havia aprendido quando ainda era uma criança, queria puxar a carne dos músculos e ver se havia mesmo alguma coisa se escondendo dentro nele, se ele não havia simplesmente crescido ao redor de um vazio devorador e oco. Ele se sentia entorpecido e nauseado e precisando ver sangue escorrer, precisando sentir machucar.

            “Não é verdade” A voz de Chuuya o tirou dos trilhos intrusivos que seus pensamentos o haviam levado. Ele soava sério e definitivo enquanto desenrolava rolos de ataduras “Seja lá o que você está remoendo, não é verdade, é só um sintoma.”

            “Não parece só com um sintoma” Sua garganta arranhou em protesto pela sua fala, a boca seca porque ele estava há algum tempo sem beber água. Uma hora ou duas. Um dia ou três.

            “Eu sei” Chuuya suspirou, cansado, mas mesmo assim conseguiu abrir um sorrisinho mínimo, suave e triste de um jeito que fazia o coração de Dazai se retorcer desconfortavelmente “É por isso que estou aqui, cavala, para te lembrar disso.”

            “Sinto muito” As palavras queimaram sua língua como sempre faziam, mas se havia alguém que merecia sua honestidade e arrependimento era Chuuya. Sempre haveria uma distância entre eles que nenhum dos dois iria conseguir consertar, mas Deus se Dazai não estava tentando “Eu sinto muito por fazer meu Chuuya passar por isso” denovo ficou suspenso no ar, subentendido por ambos.

            “Não se desculpe”

Chuuya terminou de enrolar as bandagens por cima das feridas, ajustando o tecido com folga o suficiente para não sobrecarregar os sentidos já eriçados de Dazai, porque ele sempre tendia à sensibilidade excessiva que alternava com o total entorpecimento durante suas crises e o fato de homem sempre se lembrar disso fazia-o ainda mais cru e vulnerável por dentro.

“Você é meu atormentar, mas também é meu para cuidar, ok?” Chuuya deu um tapinha suave no seu jeolho com o tom leve como se não fosse a coisa mais gentil que havia tocado (que havia acontecido com) Dazai “De um à dez como estamos nos sentindo agora?”

“Sete” Dazai respondeu fechando os olhos com força, esfregando as mãos no rosto antes de abri-los “Quase oito, eu acho. Talvez mais.”

O executivo sabia que um sete-oito significava: tomadas travadas, bordas cobertas ou lixadas, facas e objetos pontiagudos trancados e escondidos. Os remédios deviam ser passados à chave e uma ligação para a agência devia ser feita informando que Dazai não estava apto a realizar trabalho algum sem supervisão se ele fosse continuar trabalhando. Chuuya também precisaria contar todas as pílulas de antidepressivo que tinham em posse e comprar shakes de proteína para substituir alimentação sólida quando fosse necessário.

Todavia, isso era para depois e o próprio detetive estava ciente disso quando o ruivo sentou-se ao seu lado e puxou-o para se acomodar em seu colo, como se Dazai não pesasse mais que um boneco de pano particularmente alto. O moreno se aninhou no conforto oferecido, apreciando a forma que Chuuya tinha um braço apoiando firmemente suas costas, enquanto sua bochecha descansava em seu peito. Mesmo por cima das roupas, Dazai conseguia sentir o calor que emanava debaixo da pele do menor.

Chuuya começou a acariciar seu cabelo então, afastando-o do seu rosto com uma delicadeza que Dazai sabia não merecer. O ruivo o tratava como se fosse algo frágil e imensamente precioso, como se não houvesse algo frio e quebrado dentro dele se equilibrando desajeitadamente na ponta de faca do seu senso de humanidade. Aquela bondade oferecida tão livremente, tão de boa vontade à coisinha suja e invejosa que ele era.

A injustiça que fosse ele com as mãos mergulhadas até os cotovelos em sangue recebendo algo diferente de dor. A injustiça que ele ainda estivesse respirando. A injustiça e insensatez que ele tivesse sobrevivido à infância. A injustiça que ele não tivesse apodrecido ainda no ventre da sua mãe. A injustiça pura e simples, amarga e com gosto de petróleo que ele tivesse chegado até mesmo a ser concebido.

O ruivo se inclinou e selou um pequeno beijo contra sua testa com carinho não adulterado e Dazai se encolheu porque foi demais. O estremecimento correu seu corpo inteiro e ele sentiu o gosto salgado de lágrimas no fundo da sua garganta, a quentura exigindo brotar do seu olho porque ele só tinha um único olho capaz de produzir lágrimas (dizem que se uma pessoa chora e a primeira lágrima brota do esquerdo é porque é fingimento e não fazia tanto tanto tanto sentido?), as gotas escorrendo por sua bochecha sem pedir permissão. Chuuya não pareceu surpreso, limitando-se a depositar beijinhos castos na trilha úmida do seu choro.

“Por quê?” A voz de Dazai saía limpa mesmo quando ele chorava. Mori o havia treinado até que ele fosse sempre completamente inteligível não importando a circunstância ou o quão estilhaçado ele estivesse ou se sentia, não importando sequer se ele sabia do que estava falando ou não.

Chuuya pareceu entendê-lo mesmo assim, como normalmente fazia.

“Porque eu te amo, Dazai de merda” O home revirou os olhos com o sorriso pequeno nos lábios “Não que isso seja alguma novidade para você.”

Chuuya enxugou cuidadosamente as lágrimas do seu rosto com o polegar e Dazai conteve um soluço molhado.

“Por quê?”

O ruivo suspirou apertando-o rente ao peito e não pela primeira vez o detetive queria derreter e entrar ali debaixo.

“Não tem porque” A voz dele era séria mesmo que seu timbre fosse doce “Não precisa ter um porque, então pare de se atormentar com isso. Ninguém é digno de amor, Osamu, mas a capacidade de aceitar ser amado mesmo sem acreditar que merece é o que nos dignifica, ok?”

Chuuya juntou seus lábios num beijo rápido, mais pontuação que ósculo, como quem prova um ponto.

“Como alguém poderia me amar...” Dazai murmurou baixinho, olhos nublados “Quando nem mesmo eu consigo fazer isso?”

“Cavala boba” Chuuya zombou soltando um risinho “Você não precisa se amar para ser amado pelos outros. Isso é vida real, não um livro de auto-ajuda.”

Ele riu baixinho contra seus lábios, beijando-o mais uma vez.

“Quer você queira ou não, quem te ama, continua te amando, não importa sua opinião sobre isso.”

                                                      *

“Você é as fotos no seu quarto

E o futuro com qual você sonha

Você é feito de tanta beleza

Mas parece que você esqueceu

Quando você decidiu que você era definido

Por todas as coisas que você não é.”

—Erin Hanson

            Era o terceiro dia em que Dazai acordava de um sono inquieto induzido por medicamentos para insônia e antidepressivos e ele ainda não sentia vontade de se levantar e viver nem que fosse por míseros segundos, e Chuuya era paciente o suficiente para que ele não precisasse realmente fazê-lo.

            A agência estava acostumada as semanas em que ele desaparecia subitamente e Dazai imaginava que agora com Chuuya como mediador de suas crises pelo menos a preocupação com ele acabando morto numa vala era consideravelmente diminuída.

            Dazai revirou-se nos lençóis, o relógio pendurado na parede afirmando que já havia passado das três da tarde e o moreno ainda estava naquele estado confuso em que não conseguia situar se o incômodo na sua barriga era fome ou dor de estômago e considerando o quão pouco ele vinha comendo e quantos remédios estava ingerindo, ambos eram igualmente prováveis de estar ocorrendo ao mesmo tempo. O detetive, porém, não tinha energia para resolver nenhum desses dois problemas.

            Cogitou voltar à dormir, ainda havia aquela energia letárgica nos seus membros que só a quantidade certa de depressão e medicamentos fortes realmente traz. As cortinas pesadas mantinham a luz do sol do lado de fora, preservando o ambiente escuro como se ainda fosse um horário aceitável para se estar dormindo, mas antes que ele pudesse voltar a se organizar no seu casulo de lençóis, Chuuya adentrou no quarto sem bater como se sua mente estivesse naturalmente conectada com seu ciclo circadiano.

            O ruivo não estava nada surpreso em vê-lo acordado, mas em um ato de misericórdia não acendeu as luzes se contentando em semicerrar os olhos azuis na direção geral de Dazai.

            “Como estamos nos sentindo hoje, cavala?”

            Dazai cantarolou, pensativo. Ele estava menos no humor que fazia-o querer beber um litro de ácido muriático dada à chance, mas ainda não se confiaria nas redondezas de uma tesoura com ponta. O peso constante nos ossos estava amortecido, mas ele definitivamente queria arrancar as costelas com as próprias mãos só para sentir se ainda havia algo dentro dele além de vácuo e infâncias desperdiçadas.

            Dazai suspirou.

            “Seis” Resmungou fechando os olhos “Mas eu acabei de acordar e ainda estou meio drogado então provavelmente vai virar um seis e meio ou sete”

            Honestidade, sem surpresas, ainda era exatamente como arrancar dentes sem anestesia, não vinha com facilidade e talvez nunca parasse de morder sua língua ao ser enunciada, mas a expressão compreensiva e aberta que ele nunca deixava de ganhar de Chuuya quando era honesto fazia tudo valer à pena.

            Porque a compreensão -a vulnerabilidade- também não vinha fácil para Chuuya, não quando Dazai já havia o abandonado antes, não quando foi Dazai que tinha posto aquelas pontes em chamas primeiro.

            Chuuya sentou na cama perto o suficiente para Dazai tocar caso ele quisesse, mas longe o bastante para não sufoca-lo e Dazai era grato porque muitas vezes não havia sido.

            “Eu sei que seis é alto” Chuuya falou calmamente, sem o olhar nos olhos, permitindo-o fugir porque seu chibikko era indulgente assim com ele “Mas seu mascote acabou de me ligar para perguntar se poderia passar aqui para te ver. O pirralho está preocupado.”

            “Se preocupar é a segunda natureza de Atsushi-kun” Dazai puxou os cobertores para se embrulhar com um suspiro cansado “O que chibi respondeu para meu adorável pupilo?”

            “Que iria te perguntar” Chuuya bufou, revirando os olhos “O menino estava todo nervoso dizendo que não viria caso fosse incômodo para você e tudo mais, uma bolinha de ansiedade ambulante aquele ali.”

            Dazai abriu um sorrisinho, meio escondido pelas cobertas, ele se lembrava como se fosse o dia anterior de quando o garoto o arrancou do leito de um rio. Ele era uma coisinha magra, nervosa e que não fazia a menor ideia do próprio pontecial. Olhos arregalados e brilhantes, porém, cheios de algo suave e precioso que Dazai não conseguia nomear. Naquele dia, o moreno poderia ter apenas resmungado um pouco e ido embora.

            Mas Odasaku disse “salve os órfãos”.

            E havia um órfão bem ali precisando ser salvo.

            Atsushi, doce e esperançoso Atsushi-kun, havia se tornado sua responsabilidade naquele dia e Dazai levava suas responsabilidade muito à serio, pelo menos quando eram importantes.

            “Atsushi-kun é um bom garoto” Dazai comentou olhando Chuuya nos olhos, sem fugir.

            “Ele parece ser.”

            Silêncio.

            “Diga à ele que pode vir, lesma” Dazai se sentou no colchão e o movimento fez suas articulações estalarem em uma dor surda que correu seu corpo todo “Eu vou tomar um banho enquanto isso, não é como se eu pudesse passar o dia todo na cama mesmo.”

            Chuuya assentiu, sabiamente se abstendo de pontuar que Dazai tinha passado os últimos dias se movimentando exclusivamente da cama para o banheiro e nada mais.

            “Você precisa de ajuda com isso?”

            “Se o chibikko que me ver nu, ele só precisa pedir~” Dazai sabia que sua voz estava ligeiramente fora do tom e a provocação era fraca, mas Chuuya bufou do mesmo jeito de sempre, aceitando –graças à Deus sempre aceitando- Dazai pelo valor de sua face.

            “Idiota” Chuuya revirou os olhos num falso mau-humor enquanto se levantava da cama “Se você quebrar sua bunda ossuda no chão do chuveiro é melhor não vir chorando para mim”

            “Chibi sabe que o único autorizado a quebrar minha bunda é ele!”

            O ruivo soltou uma risada abafada, carinho estampado na curva dos seus lábios enquanto ele saia do quarto com o celular nas mãos.

            Tomar banho quando ele estava nos seus dias ruins era a própria cruzada e guerra santa, ele sendo a igreja católica, os mulçumanos e a terra prometida tudo ao mesmo tempo, mas ele já estava evitando o chuveiro há algum tempo e eventualmente o próprio Chuuya iria acabar o arrastando para dentro do box quando se tornasse intolerável se enrolar toda noite com alguém que cheirava à suor azedo e ataduras velhas.

            De qualquer forma, ainda foi uma surpresa quando ele tirou as roupas e bandagens e ainda havia um corpo inteiro debaixo delas, frágil, magro e machucado, mas vibrando com vida. Foi um choque entrar debaixo do jato de água quente e nenhuma parte do seu corpo cair no chão e escorrer pelo ralo de tão fragmentado que ele se sentia.

            Era tão estranho como nosso corpo pode se recusar a expor por fora tudo o que garante estar passando por dentro.

            Dazai não lavou o cabelo, ciente que se o fizesse iria render tempo o suficiente para a ideia de trancar a porta e encher a banheira de água até a borda começar a parecer extremamente plausível e justificável. Ele havia aprendido a escolher suas lutas depois de tanto tempo.

            Assim, pouco tempo depois de entrar no banheiro, ele saiu, torcendo para estar cheirando menos como algo que tinha morrido numa estrada úmida e tomado sol por uma tarde inteira.

            A ideia de se cobrir dos pés à cabeça com suas ataduras parecia exaustiva do mesmo jeito que ficar com a pele exposta soava aterrorizante, então ele conciliou as duas necessidades no meio do caminho (Chuuya ficaria orgulhoso se soubesse) e enrolou apenas as partes importantes como pulsos e pescoço, e decidiu que podia incomodar sua lesma de estimação mais tarde para cobrir o resto por ele. Além do que, não era como se o conjunto de calça e blusa moletom que ele optou por usar deixasse muita pele desnuada.

            Dando-se por tão satisfeito quanto iria ficar com sua aparência, Dazai se retirou do quarto pela primeira vez em três dias e recusou-se a se sentir tão patético quanto julgava que devia se sentir e rumou para sala de estar, atirando-se no sofá mais próximo.

            Da cozinha, o ruivo espiou sua movimentação.

            “O pirralho disse que chega em uns vinte minutos”

            “Hm...” Dazai declarou eloquentemente fechado os olhos preguiçosamente “O que chibi está fazendo?”

            “Arrumando os preparativos para o jantar” Chuuya disse com uma pontada de escárnio na voz, mas não de um jeito maldoso “Alguém tem que comer nessa casa.”

            Dazai emitiu um barulhinho baixo em concordância, ciente do buraco lento de fome –ou dor de estômago- que estava em crescimento abaixo das suas costelas, e que dali para o final da noite ele se encontraria sentado à mesa preso entre um prato de comida e olhar incisivo de Nakahara Chuuya.

            Todavia, aquele era um problema para o Dazai do futuro lidar, então o do presente apenas continuou deitado de olhos fechados, embalado no tilintar suave de Chuuya mexendo nos utensílios da cozinha.

            Em dias melhores, Dazai se sentia moralmente obrigado a entrar na cozinha e incomodar o ruivo de uma forma tão eficaz que ele só terminaria de cozinhar o jantar depois das onze da noite.

            Em dias melhores, Dazai ligaria a vitrola de estimação em alguma valsa vianense e tomaria Chuuya nos braços que cederia aos seus caprichos à extremo contragosto e mínima resistência. Eles dançariam no espaço apertado da cozinha, coração contra coração, até alguma coisa começar a cheirar à queimado e moreno ser efetivamente expulso do recinto.

            Não era um dos melhores dias, mas os ruídos do homem ainda sim eram reconfortantes, então Dazai ficou contente com o que tinha.

            Ele estava quase cochilando quando a campainha tocou e o despertou de uma névoa sonolenta sem sonhos. Dazai sentou-se no sofá, esfregando o sono do rosto, enquanto Chuuya saía da cozinha e ia abrir a porta como o anfitrião adequado que ele era.

            Dazai escutou o trinar ansioso de Atsushi acompanhado por uma voz mais baixa e contida quando Chuuya o cumprimentou e supôs que Kyouka tinha vindo com ele também. Os dois eram inseparáveis para todos os efeitos, se tornando tão próximos quanto irmãos.

            O homem ergueu a cabeça à tempo de ver Chuuya emergir do corredor com as duas crianças à reboque atrás de si. Kyouka parecia calma e imperturbável como sempre, mas Atsushi se remexia nervosamente, uma das mãos atrás das costas escondendo de forma nem um pouco suspeita alguma coisa. Dazai arqueou uma sobrancelha com curiosidade.

            “Vou estar na cozinha se vocês precisarem de mim” Chuuya notificou numa perfeita desculpa para dar alguma privacidade à eles “Cavala, se comporte e vocês, sintam-se em casa.”

            Dazai fez beicinho, falsamente ofendido, assistindo o ruivo se retirar de volta para os preparativos do jantar sem mais demoras.

            “Então, Atsushi-kun!” Dazai exibiu seu maior sorriso malicioso, mesmo que estivesse meio gasto nas bordas “O que é isso aí que está escondendo? É um presente para o seu dedicado mentor, uh?”

            Atsushi assumiu alguns tons de rosa antes de acenar vigorosamente com a cabeça, estendendo o braço atrás das costas com rigidez, como se segurasse algo que fosse explodir.

            Era um pequeno buquê de flores, daqueles simples sem muitas ornamentações além do involucro de plástico e a fita que amarra os caules juntos. Era, para todos os efeitos, o modelo mais barato de qualquer floricultura de esquina. Não era um presente digno de nota, sequer uma lembrancinha na verdade.

            Mesmo assim, algo agudo girou com força dentro do miocárdio dele, uma dor branca e fresca se espalhando no peito.

            “Para você, Dazai-san!” Atsushi sorriu timidamente, balançando um pouco o buquê “Kyouka-chan ajudou a escolher as flores, não foi, Kyouka-chan?”

            Kyouka assentiu silenciosamente, olhando Dazai fixamente nos olhos como se o desafiasse a dizer qualquer coisa de ruim sobre o arranjo de flores, não que ela precisasse se preocupar com ele dizendo qualquer coisa. A língua de Dazai parecia grudada no céu da boca, fugindo no momento que ele mais precisava dela.

            “Oh”Dazai engoliu em seco, pegando o buquê com delicadeza “É... É muito bonito.”

            Eram anêmonas roxas, e por nada mais que acaso, Dazai sabia que anêmonas, na linguagem das flores, significavam persistência e perseverança, normalmente usadas para presentear pessoas debilitadas por doenças físicas ou emocionais.

            Algo –Dazai não queria entrar nos detalhes sobre o que esse algo seria- formigou atrás do seu olho e ele sorriu de novo, mais sincero dessa vez.

            “Muito bonito mesmo, Atsushi-kun” Dazai deslizou os dedos pelas pétalas que eram irrealisticamente suaves “Kyouka-chan tem olhos muito bons para flores.”

            O sorriso tímido do garoto aumentou ainda mais, os olhos brilhando como raios de sol, parecendo muito menos ansioso do que estava poucos minutos atrás. Atsushi prosperava à luz da aprovação, mesmo quando se tratava de coisas pequenas e inegavelmente gentis. Até Kyouka o presenteou com uma leve contração de lábios, parecendo satisfeita com sua reação.

            “Então?” Dazai pigarreou, pousando o buquê no colo e tentando controlar a enxurrada repentina de sentimentos “Como estão as coisas na agência sem minha ilustre presença?”

            O jovem detetive iluminou-se, sentando do seu lado junto com Kyouka e no estado que Dazai estava, normalmente ele se afastaria, exigindo mais espaço para si mesmo, mas recentemente ele havia descoberto que era particularmente mais afável com crianças ao seu redor do que era com adultos.

            Obedientemente, Dazai escutou Atsushi narrar sobre os últimos acontecimentos sendo volta e meia complementado por Kyouka. O detetive mais velho fez questão de reagir em todos os momentos certos, ceder seus próprios comentários quando lhe era apropriado e arriscou até um risinho quando ambas as crianças confirmaram que Ranpo havia assumido seus trabalhos no tormento diário de Kunikida.

            Claro, durante toda a conversa havia coisas deias bem ali, rastejando debaixo da sua pele, arrastando-se pela sua garganta e implorando para sair, mas ali estavam crianças. E crianças deveriam ser sempre poupadas dessas coisas cruéis quando possível.

            “Salve os órfãos” disse Odasaku, mas quanto mais Dazai fazia isso, menos parecia com o desejo do seu amigo e mas com justiça pelo garotinho com olhos de vítima que ele tinha sido –quebrado muito antes de aprender como exatamente deveria funcionar.

            Assim, Dazai foi complacente com o tom alto e animado dos dois e permitiu-se oferecer um ou dois afagos calorosos entre os cabelos das crianças quando elas pareciam particularmente merecedoras do afeto. Usar suas mãos para algo além de machucar era estrangeiro, mas a prática levaria à perfeição (porque Kyouka e Atsushi estavam finalmente parando de estremecer sempre que alguém levantava a mão para os acariciar).

            Com os minutos se tornando em horas, Dazai sentiu suas palavras começarem a pedir energia demais para saírem da sua boca, o cansaço da socialização começandoa  cobrar seu preço nos seus músculos, a curvatura mais rígida dos seus lábios e a risada mais forçada. Pequenos –mínimos- sinais que não passaram despercebidos pelos olhos observadores de Kyouka.

            “Está ficando escuro, Atsushi” A menina cutucou as costelas do jovem, interrompendo a anedota que contava “Kunikida-san disse para a gente não voltar tarde, lembra?”

            Atsushi virou-se para a jovem, uma breve comunicação de olhares parecendo ocorrer entre eles antes do menino concordar com um menear leve da cabeça.

            “É verdade, não preciso levar outro sermão do Kunikida-san hoje” Atsushi declarou parecendo muito sério “Temos que deixar um pouco para quando Dazai-san voltar para a agência.”

            Dazai riu baixinho mais por afeição do que por humor e se levantou de onde estava sentado.

            “Atsushi-kun! Por favor, atormente Kunikida-kun ou vou começar a achar que estou fazendo um péssimo trabalho de mentoria!” O moreno esticou-se em pé, girando os ombros doloridos “Mas tudo bem, dessa vez passa. Vou acompanhar vocês dois até a porta como o ótimo anfitrião que sou!”

            As crianças gritaram suas despedidas para Chuuya que respondeu com apenas um resmungo de reconhecimento da cozinha antes de o seguirem pelo corredor até a porta da frente. Um sorriso genuíno deslizou pelos seus lábios quando Dazai assistiu os dois garotos passarem pelo batente parecendo contentes consigo mesmos.

            “Bem” Limpo a garganta um pouco sem jeito “Obrigado pela visita e...”

            Antes que Dazai pudesse terminar sua sentença, ele se viu com os braços repentinamente cheios de Atsushi.

            O rapaz batia na altura da sua clavícula e cheirava a xampu de bebê por algum motivo, o perfume sutil e ligeiramente glicerinado de perto. Os braços do garoto envolviam firmemente sua cintura e o detetive não fazia a menor ideia do que fazer com a informação de que estava sendo vigorosamente abraçado.

            Atsushi o apertou um pouquinho mais e Dazai colocou uma mão hesitante no meio das costas do garoto, a outra desajeitadamente afagando o cabelo prateado, sem saber direito o que fazer com o próprio corpo. O menino enfiou o rosto no seu peito e esfregou suavemente como um gatinho.

            “Eu espero que Dazai-san se sinta melhor logo” Murmurou com a voz saindo um pouco abafada de onde ele estava aninhado “Todo mundo na agência está esperando que melhore logo, mas Dazai-san é muito especial para mim...”

            Dazai franziu as sobrancelhas, um bolo se formando na sua garganta o impedindo de articular qualquer coisa.

            “É que se não fosse por você, eu nunca teria encontrado uma família” Atsushi sussurrou baixinho quase inaudível “Eu realmente não posso sequer começar a imaginar as coisas pelas quais Dazai-san está passando agora e sei que agora deve estar sendo muito difícil, mas eu também já me senti complicado assim e fica melhor, mesmo quando parece que não.”

            Atsushi se desalojou de onde havia enfiado o rosto e levantou o olhar, os olhos cheios de honestidade crua. Olhos de garoto que usa o coração aberto e pulsando no peito, nunca tendo aprendido como podia ser perigoso.

            Ou melhor, havia aprendido e mesmo assim, mesmo assim...

            Atsushi sorriu e Dazai estava se sentindo tão a flor da pele que dignidade que se danasse, ele iria começar a chorar ali mesmo e culpar sua medicação depois. Atsushi era puro, doce, grato, irremediavelmente jovem e Deus, Deus, ele queria fazer por aquele menino e por Kyouka tudo que havia sido covarde demais para fazer por Akutagawa.

            (Tudo que haviam sido covardes demais para fazerem por ele)

            “E” O menino pigarreou “Eu sei disso porque sempre que acho que está tudo acabado para mim, Dazai-san me provou o contrário. Dazai-san é bom desse jeito, a esse ponto e eu sou grato.”

            Repentinamente o garoto corou fortemente, os braços ao seu redor se afrouxando, tomado com força pela súbita timidez de quando suas ações finalmente alcançam seu cérebro, mas era a vez de Dazai aperta-lo contra o peito com força.

            Ele só podia esperar suas ações dissessem mais do que suas palavras jamais poderiam.

            “Obrigado”

            Dazai o soltou e Atsushi emitiu um risinho nervoso, pulando de volta para o lado de Kyouka que tinha esperado obedientemente na soleira a cena se desenrolar.

            “Bem!” Atsushi coçou a nuca com timidez “Agora estamos mesmo indo!”

            Kyouka franziu o cenho se inclinando para o lado de Atsushi e abrindo a bolsa de carteiro onipresente que ele costumava carregar para todos os lados e procurando alguma coisa ali dentro.

            “Kyouka-chan?”

            “Eu ia esquecendo disso...” A garota puxou uma caixa branca da bolsa, ela cheirava a açúcar e chocolate e foi prontamente estendida na direção de Dazai “Aqui”

            O detive inclinou a cabeça em confusão, mas aceitou a caixa. O fato de ele não ser um grande fã de doces era quase universalmente conhecido à esse ponto.

            “São crepes” Explicou mortalmente séria “Quando estou triste e não há como eliminar o motivo, eu como um desses e sempre fico melhor. Eu sei que Dazai-san não gosta muito de doces, mas talvez funcione.”

            E isso era uma coisa tão genuinamente Kyouka de se pensar, tão diferente da garota de olhos vítreos que chegou à eles, mas tão apropriado para a menina que ela era agora, com apenas 14 anos aprendendo a navegar entre as emoções complicadas da adolescência enquanto crescia sem intercorrências graves, que Dazai não encontrou em si nada além do agradecimento honesto e da despedida breve que estendeu as crianças antes de fechar a porta.

            E se Chuuya achou estranho ele ter irrompido na cozinha e trocado um perfeitamente cozido ovo mollet sob caranguejo e risoto por dois crepes recheados de chocolate e creme de baunilha, o ruivo não fez comentários.

            O sabor açucarado do doce não se misturava bem com o sabor salgado das suas lágrimas, mas Dazai comeu os crepes até a última mordida mesmo assim.

                                                                       *

“Seu coração e o meu coração são velhos, velhos amigos.”

— Hafiz

            Dazai havia acabado de terminar uma missão de campo com Kunikida como se não houvesse passado a noite anterior inteira com os braços de Chuuya firmemente enrolado ao seu redor, as quatro mãos entrelaçadas, como uma camisa de força porque ele não tinha conseguido parar de coçar um incômodo que não estava realmente ali e sua pele havia começado a ceder debaixo das suas unhas. O sono demorou a vir e cada pedaço dele queimava implorando para ser coçado, coçado e arranhado até não existir mais nenhum pedaço da sua cútis cobrindo ele.

            Agora, porém, havia um senso de normalidade estranho no ar enquanto Kunikida voltava a elencar os motivos de porque sua conduta no desenrolar da missão havia sido completamente inadequado, como ele sempre tendia a fazer. Dazai tinha escutado essas mesmas queixas tantas vezes que podia ele mesmo recitar o sermão.

            Aqui está a coisa: Há um limite para quanto tempo o pior das suas crises depressivas podia durar.

            Sendo tão frequentes e confiáveis quanto a maré, eram também um ciclo constante de ir e vir, alternando entre tsunamis, ondas e marolas quase inofensivas. Em intervalos de momentos que nunca faziam o menor sentido, ele podia dormir sonhando sobre quantas formas diferentes existem para estripar as partes sensíveis de si mesmo e sangrar até não sobrar muito mais dentro dele além do vazio abissal do No Longer Human, e, no dia seguinte, acordar se sentindo como qualquer outro indivíduo meio funcional, o rugido alto da sua mente se metamorfoseando em um murmúrio baixo atrás da sua nuca.

            E, naquele dia, foi exatamente isso que ocorreu. Dazai tinha conseguido levantar da cama e ir para a agência, provocar Atsushi até que ele finalizasse alguns relatórios por ele e encerrar uma investigação com Kunikida que havia postergada por tempo demais. Era um dos raros dias bons que ele tinha em escassa frequência no meio de suas violentas turbulências emocionais.

            Kunikida havia percorrido metade da sua lista de reclamações quando eles chegaram à ponte que os levaria para a rua do prédio da agência.

            Era um dia frio de céu nublado com cor de hematoma prometendo neve e Dazai sentiu sem controle algum pela ação seu olhar deslizar pela lateral da ponte que cruzavam: o rio anormalmente turbulento abaixo, a queda entre o parapeito e o nada nas águas turvas.

            Estava frio daquele jeito que, anos antes, faria Oda apertar seu sobretudo preto contra seus ombros e o atormentar até que ele o vestisse apropriadamente e fechasse todos os botões.

            “Crianças ficam resfriadas com facilidade” ele diria.

            Dazai nunca explicava que ele realmente não se importava com a ideia de adoecer ou que Mori o preferia febril e permissivo ou mesmo que ele não era mais uma criança. Apesar da frieza marca registrada do Prodígio Demônio, Dazai nunca teve coragem de se permitir quebrar o coração de Odasaku de todas as pessoas.

            Então do mesmo jeito que ele poderia ter quebrado o coração do homem com seu cinismo, Odasaku foi lá e partiu o dele com sua gentileza.

            “Dazai?”

            Kunikida o encarava de cenho franzido e braços cruzados rente ao peito, mas seus olhos traíam as sombras da sua preocupação. Dazai sequer havia notado que havia parado de andar, as mãos envolvendo com firmeza no corrimão do parapeito da ponte, o aço gelado ao ponto da dor contra seus dedos nus. O homem se perguntou curiosamente se estaria mais gelado ainda na água abaixo, gelado o suficiente para fazer perder os sentidos no impacto, tirar o ar dos pulmões. A água quando fria o suficiente podia fazer um coração saltar batidas até que começasse a desacelerar, desistindo lentamente quando o sangue se tornasse espesso e gélido demais para ser bombeado e então-

            “Dazai” Kunikida repetiu num tom mais insistente dessa vez e Dazai virou-se para ele, puxando o olhar da queda, do frio, da promessa “De um à dez, como estamos nos sentindo agora?”

            “Cinco, talvez cinco e meio” Dazai inspirou e o ar frio cortou sua laringe mas trouxe alguma clareza à sua mente.

            Aqui está uma coisa sobre seus dias bons: Eles nem sempre terminavam como tinham começado, principalmente quando ele ainda trazia os reflexos de números altos em um passado recente demais. E de certa forma, essa incerteza era ainda pior. Era como correr numa escada longa, enorme e só descobrir a fata de um degrau quando já estava apoiado com todo o peso do corpo em cima dele.

            “Tudo bem” O loiro suspirou numa mistura de cansaço e alívio, os ombros perdendo um pouco da tensão “Podemos lidar com um cinco, até mesmo um seis se preciso, certo?”

            Dazai assentiu, sem energia ou mesmo ideia de como poderia explicar para Kunikida de que se ele estivesse passando por ali sozinho, definitivamente seria um dez, definitivamente seria ele de cabeça para baixo doze metros debaixo d´agua, porque por mais que ele estivesse começando a notar as diferenças entre um corpo e uma arma, sempre houve algo de tentador em abismos e pontes.

            Sempre houve algo de tentador em quedas.

            Mori o inquiriu sobre isso uma vez enquanto o remendava, sem anestesia como sempre, após mais uma das suas aventuras falhas porque motivo ele estava tão desesperado por alturas. Por acaso ele não sabia que passarinhos criados em gaiolas nunca aprendem a voar?

            (“Por acaso, Dazai-kun” Mori perguntou com a voz sempre muito doce, muito enganosamente cheia de afeto, segurando um bisturi molhado de carmim entre os dedos “Você precisa que eu corte essas suas asinhas mais perto da raiz?”)

            Uma mão (quente, quente) lentamente puxou cada um dos seus dedos do aperto de ferro que ele mantinha no corrimão e demorou um tempo até Dazai dar-se conta que era a mão de Kunida ali, que era ele ao seu lado e, por isso, ele não resistiu, mas tampouco ajudou, apenas assistindo-o em seu processo calmo e metódico. Kunikida tinha uma pele quente e era aterrador ser tocado por algo cheio de vida.

            “Jesus, você está congelando aqui” O loiro soava irritadiço enquanto esfregava suas mãos juntas, estimulando a preguiçosa circulação sanguínea de Dazai que sempre negligenciou suas extremidades “Estou surpreso por Nakahara ter deixado você sair de casa tão mal agasalhado.”

            “Nah, Kunikida-kun~” Dazai esboçou um sorriso forçado e aguado, um reflexo frágil de dias melhores “Gênio não precisam se agasalhar, nunca ficamos doentes! Acho que simplesmente atraio parceiros irritantemente preocupados, uh?”

            (“Continuo atraindo pessoas estupidamente gentis que nunca aprendem a não amar coisas perdias e quebras, coisas de gaiola que acabam soltos e sujos nas ruas”)

            “Idiota” Kunikida revirou os olhos soltando um bufo mau-humorado, mas entrelaçou seus dedos juntos sem segundo pensamento quando os considerou tão aquecidos quanto esfregar os deixaria “Vamos, ande só mais um pouco antes de cair com hipotermia no chão e eu posso te comprar uma bebida quente quando chegarmos na agência.”

            “Para mim? De graça?!” Sua própria voz soava aguda demais aos seus ouvidos, alta o suficiente para dar enxaquecas “Kunikida-kun que deve estar doente!”

            “É, devo estar mesmo” Kunikida olhou-o nos olhos, uma expressão complicada no rosto de quem se encontra sentindo coisas difusas e complexas demais para se analisar “E não podemos ter dois detetives doentes, seria péssimo para meu cronograma caso você morresse agora.”

            Dazai assentiu, inclinando a cabeça para um lado em curiosidade. O detetive imaginava que Odasaku se daria muito bem com Kunikida por algum motivo.

            “E quando seria adequado, Kunikida-kun?”

            “Ainda não sei bem” O home contraiu os lábios levemente “Acho que você deve ficar por perto até eu descobrir, não é? E encaixar um espaço na minha agenda.”

            As mãos de Kunikida eram calorosas contra as suas e por comparação ele notou o quão frio se sentia no resto do corpo, o entorpecimento que se espalhara pelos seus membros tendo pouquíssimo a ver com o clima. Kunikida estava o olhando do mesmo jeito que ele pegava Chuuya o encarando quando acordava no meio da noite, os olhos doloridos, acompanhando o ritmo da sua respiração tão visceralmente preocupado que ele parasse de respirar caso ele não o observasse.

            Chuuya era sua chama gêmea. Eles eram parceiros mesmo antes de ter nascido, seus corações se amavam no momento que foram criados, mas Kunikida era o parceiro que ele havia formado. A amizade deles tinha sido refinada pelo cuidado mútuo de ambos, sem contas a prestar com o destino ou almas entrelaçadas. Eles se importavam com o outro contra todas as probabilidades e por motivos sinceramente ainda desconhecidos por Dazai.

            “Soa justo para mim” Dazai concordou o tom mortalmente sério e sem espaço para gracejos enquanto ele se permitiu se inclinar contra o ombro do homem porque ele estava congelando. Kunikida estremeceu, mas não se afastou. Era o suficiente.

            Havia algo de tentador em quedas.

            Porém havia algo ainda mais tentador em ser segurado antes de cair e Dazai era egoísta o suficiente para se permitir desejar.

            (Kunikida o levou até o café do prédio e comprou-lhe uma xícara de café excessivamente chique junto com alguns petiscos e não saiu do seu lado até ele ter comido cerca de metade do seu muffim.

            No final do dia, era apenas um três e meio que por pouco não chegou ao zero quando ele voltou para casa e se desmanchou nos braços do seu Chuuya se sentindo confuso e confortado em doses iguais.)

                                                           *

“Você parece tão familiar...

Eu devo ter amado

Em mais de uma vida”

— N. R. Hart

            Os peixinhos beta que nadavam alegremente em seus tanques. Eram um casal verde e azul brilhantes que surpreendentemente não tentavam se matar à cada poucos segundos, limitando-se a dançar alegremente um em volta do outro e pelos corais que decoravam o aquário.

            Os peixes eram graciosos além de bonitos e bem cuidados, e, por algum motivo, combinavam em um contraste perfeito com o ambiente estéril que era a enfermaria sob jurisdição de Yosano Akiko.

            Enfermaria e centros hospitalares em geral ainda deixavam Dazai excessivamente em alerta, a mente espreitando por um perigo que não estava lá já há muito tempo, mas incapaz de permanecer desconfiada e deixa-lo em paz. O cheiro forte de antisséptico, a brancura das paredes, o desconforto das macas, tudo esfregava seus sentidos da maneira errada e ele nunca havia se sentido confortável aos arredores dali.

            E havia também a própria Yosano em questão. Havia qualquer coisa na mulher entre o estalar das luvas de nitrilo, o traço ligeiramente cruel na curva do sorriso, a contração dos olhos violetas e os dedos longos e firmes, todas as pequenas coisas, minúsculas até, que o traziam a memória sempre fresca demais de Mori. As recordações nunca deixando de fazer crescer um bolo de nervosismo infantil na sua garganta e ele voltava a ser um menininho que nunca teve medo de agulhas a não ser quando estavam nas mãos de outra pessoa.

            Dazai, no entanto, era auto-consciente o suficiente para saber que Yosano também deveria enxergar muito de Mori Ougai no escuro das suas íris, no som do seu riso, nos passos do seu andar ou na inexpressividade que as vezes se enfeitava em seu rosto. Ambos estavam interligados por um único denominador comum e Dazai lembrava de noites que preferia esquecer sobre uma mão que corria por sua pele e uma voz que murmurava sobre a beleza pueril de uma certa garotinha com uma habilidade divina.

(Ele já havia chegado um tanto quebrado para as mãos de Mori e restavam apenas destroços meio esfrangalhados de infância nele, existia pouca coisa de pueril em Dazai, o médico havia o dito parecendo desapontado, mesmo que isso não tivesse o impedido de cortar à faca o que havia sobrado ).

Eles eram dois prodígios que traziam o pior que havia um no outro.

Eles eram, os dois, um casal de peixes beta, inerentemente agressivos e territoriais, a violência que vem do pedigree, que surpreendentemente não tentavam se matar à cada poucos segundos, limitando-se a dançar alegremente (cuidadosamente, temerosamente) em volta um do outro.

Yosano cantarolava baixinho uma melodia sem letra enquanto separava no balcão uma série de pílulas brancas e as colocava em um frasco de vidro. Dazai sabia que a embalagem original, comprado com prescrição, continha cerca do dobro da quantidade a médica estava separando, sendo suposta para durar por pelo menos um mês inteiro.

Mas Dazai vinha de quinze em quinze dias recarregar seus frascos, porque assim a quantidade que ele recebia por vez não era grande o suficiente para causar uma overdose e, ao passo que ninguém poderia realmente impedi-lo de tentar novamente o suicídio caso ele estivesse realmente determinado, era reconfortante que as tentações fossem diminuídas.

“Aqui” Yosano depositou o frasco na maca onde ele estava sentado, balançando as pernas de maneira falsamente despreocupada “Tente não pular suas doses dessa vez.”

“Muito obrigado, Yosano-sensei” Dazai sorriu brilhante e só um pouco falso “A agência não seria nada sem seu diligente trabalho~”

“Hm, sei” A mulher soltou um risinho de escárnio, colocando a mão na cintura e parecendo ligeiramente reprovadora “Você está mesmo bem para voltar? Não é como se sua pilha de trabalho atrasado fosse se importar muito com sua ausência por mais uma semana.”

“Yosano-sensei! Kunikida-kun ficaria muitíssimo decepcionado se ouvisse você sugerindo uma coisa dessas para mim!” Dazai apertou o peito teatralmente, jogando-se de costas na maca dura “Imagine! Eu? Abandonar meus relatórios assim sem mais nem menos!”

“Não banque o idiota fanfarrão comigo, Dazai” Yosano sentou-se na sua cadeira próximo à ele, cruzando as pernas “Sou eu que acabo tendo que remendar você no final das contas quando você volta a trabalhar sem estar realmente apto para isso.”

O moreno franziu o cenho, o sorriso sumindo da sua expressão como açúcar na chuva, restando apenas aquela expressão branca e sem emoções que ainda arrancava arrepios de Yosano, mas que ela havia aprendido ser apenas o rosto que Dazai fazia quando estava olhando dentro da própria cabeça e nada mais.

“Eu estou tão bem quanto posso ficar, Yosano-sensei” Sua voz era séria e tão neutra quanto a sua face “Ficar chafurdando na minha própria miséria em casa não vai ajudar em muita coisa também.”

Dazai abriu um sorrisinho melancólico para ela, os olhos se suavizando.

“Nada pode realmente me ajudar”

Yosano arqueou uma sobrancelha, não impressionada.

“Você soa derrotista para caralho quando está chateado sabia?”

Dazai jogou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada divertida. O riso por pouco quase não chegou aos seus olhos.

“Faz parte do meu charme” Dazai piscou para ela “Todo mundo sempre quer um homem bonito com coração partido para tentar consertar. A tristeza pode ser ridiculamente atraente.”

“Fale por você” Yosano bufou dando um tapinha leve em seu peito “Mas se você está bem o suficiente para fazer piadas, deve estar bom o suficiente para trabalhar também.”

Um sorriso suave enfeitou os lábios finos da médica e o animal frágil que se escondia entre as costelas de Dazai se encolher, sentindo-se ofuscado e trêmulo. Indigno em algum grau.

A mulher se inclinou e hesitantemente ergueu a mão e bagunçou seus cabelos, Dazai se segurou para não se inclinar de maneira muito óbvia para o contato. Yosano seria para sempre o tipo de boa doutora que segura na mão de crianças nas consultas (“Hey, não precisa ter medo, vai ser só uma picadinha e...Viu? Nem doeu”)

.           Yosano era tão igual, mas tão diferente dele ao mesmo tempo. A mulher havia dançado com o próprio trauma e criado um jardim para si mesma com sua dor. Dazai a invejava e se orgulhava dela em medidas próximas.

            “Você é um bastardo” Yosano declarou com carinho indisfarçado nas palavras “Mas estou feliz que seja um bastardo vivo.”

            Dazai desviou o olhar, subitamente constrangido como sempre ficava quando ele se via cercado de emoções fugazes e opressoras como bondade ou afeição e seus semelhantes.

            “Yosano-sensei?”

            “Sim?”

            Dazai apontou para o aquário atrás dela, até a médica se angular para trás na cadeira e contemplar o grande tanque de vidro junto com o detetive.

            “Eu achei que você não deveria criar peixes betas juntos ou eles devorariam ou ao outro” Ele comentou e a mulher assentiu com um meneio de cabeça em concordância.

            “Sim, mas esses dois são um caso especial.”

            “Oh?” Dazai voltou o olhar para a mulher. Violeta e castanho se entrelaçando. “Yosano-sensei acha que eles se tornaram amigos ou coisa assim?”

            “Não seja estúpido” Yosano cruzou os braços no peito, revirando os olhos “Eu tenho certeza que eles se tornaram.”

                                                                       *

“Não há beleza sem alguma estranheza.”

— Edgar Allan Poe

            “Você se leva à sério demais” Ranpo declarou, puxando o pirulito de cereja da boca com um estalo e apontando para ele, parecendo sério. Ou tão sério quanto alguém quanto Ranpo conseguia ser “É esse todo o seu problema, pare com isso agora.”

            Era quase meia-noite, uma missão havia falhado, ele e Ranpo estavam sozinhos na agência, havia um quebra-cabeças aparentemente insolúvel disposto no chão e uma leve dor de cabeça havia começado a se infiltrar nas bordas do crânio de Dazai, não que ele fosse admitir isso em algum futuro próximo.

            O moreno abriu um sorriso pequeno e polido, sempre muito polido, que todos por algum motivo reservavam sempre à Ranpo, perdoando toda e qualquer falta de tato que ele costumasse demonstrar. O detetive era uma espécie completamente diferente e sua honestidade podia ser bruta, mas sem um osso cruel nela. Às vezes era até bem-intencionada.

            “Eu vou precisa que elabore isso com mais palavras, Ranpo-san” Dazai estendeu uma pecinha translúcida (como todas as outras peças que estavam espalhadas por sinal) para o homem mais velho “Essa deve ir no canto esquerdo superior.”

            Ranpo pegou a peça, mas não fez nenhum movimento de encaixa-la aonde fora indicado.

            “Não, você não precisa” Dispensou despreocupadamente com um movimento de desdém da mão “Além disso, você está errado, isso aqui vai aqui” Encaixou a peça na região central do jogo “Não lá.”

            “Descuido meu” Dazai suspirou encarando as outras tantas peças restantes no chão “Para combinar com o resto do dia”

            Ranpo franziu as sobrancelhas para seu tom, os olhos verdes como pequenas frestas esmeraldas que pareciam bastante descontentes no momento.

            “A missão não falhou por sua causa” Ranpo declarou simplesmente, analisando-o como faria com algum caso particularmente intrigante “Como eu disse e odeio me repetir: você se leva à sério demais.”

            “Bem, eu poderia ter previsto que-”

            “Eu também poderia ter previsto” Ranpo revirou os olhos, abraçando as pernas e enfiando o queixo entre os joelhos “E ainda sim, nenhum de nós previu, certo? Não foi por descuido, às vezes coisas inesperadas acontecem e sempre é muito mais fácil encontrar maneiras de esperar por elas, depois que elas já aconteceram.”

            “Dispenso o sermão, Ranpo-san”

            “Salve as pessoas” dissera Odasaku, como uma maldição e aqui estava ele: Sentado impotente no chão frio da agência, montando quebra-cabeças de mil peças, enquanto em algum lugar estavam enterrando o filho de alguém. Ranpo podia falar o que quisesse sobre efeitos colaterais e acidentes e absolvição de culpa, mas Dazai sabia que ele também não estava se sentindo menos frustrado.

            Afinal, quando eles não se levavam à sério demais, pessoas morriam e funcionaria assim sempre. Se eles não se pressionassem tanto quanto podiam quando era necessário, se eles não estivessem disposto a quebrar um pouco...

            O quebra-cabeças incompleto no chão com suas peças idênticas espalhadas, parecia zombar dos dois detetives que aparentemente eram brilhantes: mais uma coisa que ambos não conseguiam resolver por mais que se esforçassem.

            Dazai não saberia dizer porque o hábito de montar quebra-cabeças juntos se tornou a atividade noturna compartilhada dos dois. Pelo tanto que o moreno se lembrava, ambos estavam apenas fazendo algumas horas extras em um caso singularmente complexo sobre tráfico sexual de crianças e alguma coisa nos depoimentos fez a mente de homem mais novo se perturbar perigosamente e Ranpo surgira do nada com uma caixa de quebra-cabeças infantil e exigiu que Dazai brincasse com ele enquanto voltavam a discutir.

            Com o tempo, ambos começaram tender aos modelos menos infantis e mais intricadas que exigiam esforço real de ambas as partes e Dazai que nunca teve tempo para brincar quando criança permitia-se o luxo do passatempo confiável.

            Era calmante de certa forma, ter atividades paralelas ocorrendo ao mesmo tempo dentro da sua cabeça, impedia a sua mente de vagar por lugares perigosos e Ranpo costumava ficar objetivamente mais focado quando tinha coisas para fazer com as mãos.

            Mas, às vezes, a diversão inofensiva tendia a se tornar tão frustrante quanto um dia de trabalho falho.

            Dazai odiava o sabor da derrota desde a época da máfia em que pessoas eram pouco mais que taxas e números que subiam e desciam, mas que as punições podiam ser cruéis com inaptos. Todavia, agora, mesmo sem a ameaça de uma retaliação, a nuvem da sua falha ainda pesava em sua mente porque ele não estava mais falhando só consigo mesmo e mesmo que nada dele fosse sangrar no final da noite, ele ainda desejava o sabor de uma punição que o fizesse se arrepender de ter sido tão relaxado na execução dos seus planos.

            Dazai tendia para o castigo do mesmo jeito que uma mariposa tendia para a chama: alegremente e prometendo dor. E havia tantas formas doces de se punir e quando ele sentia que era justificado, conseguia jogar qualquer senso de auto preservação pela janela.

            “Está tarde” Ranpo comentou, espiando o relógio da parede da sala “Sr. Chapéu Extravagante não vai ficar preocupado com sua demora?”

            “Poe-san não vai ficar preocupado com a sua?”

            “Touché” O detetive soltou uma risadinha cansada, esfregando um dos olhos daquela maneira meio criança que sempre estava presente em seus modos “Errar não é nada divertido, Dazai, e eu particularmente odeio, mas não acho que há uma maneira de evitar, uh?”

            “Há uma” Dazai estava se sentindo especialmente mórbido no momento, Poe-san teria adorado “Mortos tendem a parar de cometer erros.”

            Ranpo arqueou uma sobrancelha curiosamente para ele, parecendo se divertir.

            “Isso é verdade, mortos não erram” Ranpo quebrou o pirulito nos dentes, mastigando ruidosamente o doce “Mas a coisa é se você morre também não pode mais acertar nada e eu adoro estar certo, você não?”

            Dazai bufou, rindo meio abafado, os olhos momentaneamente fechados. Ele ainda se sentia cansado, mas talvez fosse o cansaço que poderia ser resolvido com uma boa noite de sono.

            “Ranpo-san é tão sutil.”

            “Se você se atirar de uma ponte na volta para casa, vão achar que a culpa é minha” Ranpo revirou os olhos levantando do chão num pulo “Estou com sono, me leve para casa.”

            “E isso?” Dazai gesticulou para a direção geral do quebra-cabeças pela metade.

            “Não vai fugir daí, vai?” Ranpo bocejou se espreguiçando, os olhos verdes piscando vagarosamente “O melhor que podemos fazer é tentar de novo amanhã.”

            “Acho que sim” O outro detetive levantou-se também, os ossos estalando com o movimento depois de muito tempo imóvel,

            Ranpo assistiu ele se esticar um pouco antes de abrir a gaveta da sua mesa e puxar um pacote de salgadinhos e empurrar a contragosto no seu peito.

            “E coma isso” Resmungou soando mal-humorado “Você se acha muito esperto pensando que ninguém vai notar você se matando de fome pelos corredores, não é?”

            Dazai abriu os salgadinhos. Era o favorito dele e Dazai não fazia a menor ideia de como raios Ranpo sabia disso, mas há muito tempo ele havia parado de questionar esse tipo de coisa, era muito mais simples deduzir que Ranpo sabia de tudo. Normalmente estava certo.

            “Não esperto o suficiente para enganar, Ranpo-san, uh?”

            “Não se culpe” O homem sorriu brilhantemente, os olhos fechados parecendo satisfeito como se houvesse vencido alguma pequena batalha que Dazai estava alheio naquele meio tempo “Ninguém é.”

            (Dazai entendeu exatamente qual batalha tinha sido quando horas depois tateou o bolso do sobretudo em busca do seu canivete de estimação e não encontrou nenhum.)

                                                                       *

“Você não tem uma alma

Você é uma alma

Você tem um corpo”

— C.S. Lewis

            Dazai contemplou a mão.

            Era uma mão pálida de dedos longos e pálidos que pareciam habilidosos mesmo que meigos demais, com ossos demasiadamente delicados e frágeis, apenas ligeiramente cobertos por uma película fina de carne, nervos e pele. Havia algumas cicatrizes na palma, manchas de queimaduras levemente escurecidas pelo tempo junto com os calos nas pontas dos dedos. Um anel de ouro descansava no dedo anelar e parecia caro.

            Entre o dedo indicador e o polegar existia uma desgastada pecinha de madeira- uma koma.

            Dazai analisou com atenção como a luz da salinha incidia sobre a peça, o kanji um pouco borrado pelo uso constante, mas ainda legível.

            “É sua vez” Fukuzawa falou no mesmo tom de sempre: sério e severo.

            Dazai voltou a atenção para o tabuleiro e, com surpresa, notou que a vez era de fato dele. E olhe só: a mão, em algum ponto, também devia ser.

            (Ele sentia tanta conexão com aquela mão quanto sentia com aquela peça de shogi e qual era o sentido de esforçar tanto tanto tanto para manter um corpo vivo se isso o chutaria para fora disso na primeira oportunidade?)

            De alguma maneira, o detetive conseguiu assistir (se é que aqueles olhos, aquelas esferas gelatinosas de humor vítreo, molhadas, inervadas, frescas, eram mesmo suas e faziam mesmo parte dele. Imagine ser feito de coisas apenas esperando o momento certo para começar a apodrecer) a mão mover a peça para uma casinha no tabuleiro.

            Ele –ele- havia movido a peça. A mão. A mão que era a sua mão, a mão que não parecia sua, mas bem, devia ser dele porque ele a usava constantemente, não usava? Não usava? Não usava?

            Aquele corpo (fresco, fresco, fresco) era dele, não era?

            Ele o vesti- Não! Ele o usava todos os dias e era dele para beijar Chuuya, sorrir para Atsushi e atormentar Kunikida.

            (Era dele para buscar vingança contra, machucar, abrir, destrinchar, cutucar os órgãos-).

            Era dele.

            Dazai contemplou a mão.

            Não parecia que era dele.

            Dazai contemplou o corpo.

            Não parecia que era dele.

            Aquela coisa cheia de carne, nervo, pele, osso, sangue, suor, cabelos, dentes, aquela coisa que só podia pertencer à mesas de cirurgia e necrotérios. Aquela coisa feita de fluidos orgânicos, aquela coisa humana não podia, não podia, não podia ser dele.

            (Mori, Mori uma vez tinha o atormentado por meses falando sobre ele ter um esqueleto dentro do corpo e que seus ossos sempre estavam molhados e Dazai passou anos inteiros ensaiando e reproduzindo fraturas expostas até conseguir tocar...).

            “Dazai?” As vezes Fukuzawa falava assim: Severo, duro e ligeiramente preocupado, suas sobrancelhas franziam um pouco e sua expressão já não era mais tão impassível. Era uma expressão tão Fukuzawa e quão louco seria pertencer desse jeito à si mesmo.

            “Eu não existo.”

            Nem sua voz soava mais como sua voz. Estava muito aguda, oitavas mais alta que o ronronar profundo natural, beirando a pura histeria e ele nem havia notado que estava histérico, mas devia estar porque as mãos que talvez fossem dele estavam tremendo compulsivamente contra o tabuleiro e havia uma respiração sibilante nos seus lábios que se perdia no meio do caminho de encontrar os pulmões.

            Como o corpo – o seu?- podia ter entrado em uma espiral de pânico e não avisado? O sangue trovejava nos seus ouvidos, o coração estourando dentro do peito em batidas frenéticas como se quisesse quebrar suas costelas e Dazai nunca havia pego o jeito de fraturar suas costelas para fora da pele ao ponto de mostrar os ossos brancos e úmidos, talvez agora, sem sua permissão, o corpo conseguisse e...

            “Hey!”

            Dazai olhou – quando ele tinha parado de olhar?- para Fukuzawa.

            O homem ainda mantinha o mesmo cenho sério, mas seus olhos cinzentos pareciam suaves e Dazai que havia catalogado todas as micro-expressões das pessoas que o cercavam, sabia da curvatura desconcertante dos lábios e da tensão pronunciada dos ombros.

            O diretor estava genuinamente preocupado.

            “Você existe” Fukuzawa declarou como se fosse assim tão fácil, como se ele pudesse apenas existir, como se não houvesse algodão entre seus neurônios e seus receptores, como se... “Você, Dazai Osamu, existe.”

            Fukuzawa estendeu a mão.

            E Dazai contemplou aquela mão.

            Era calejada, tinha cicatrizes profundas e parecia firme. Havia uma graça sutil nela também, uma mobilidade praticada debaixo daqueles tendões.

            Era decididamente de Fukuzawa. E Fukuzawa era real.

            Fukuzawa existia.

            Dazai assistiu a mão alienígena, trêmula, estender-se e tocar a do diretor.

            Fukuzawa apertou com firmeza e o zumbido que Dazai nem havia notado que estava nos seus ouvidos sumiu. De repente de fato era a mão dele ali.

            Porque o homem a sua frente era real e existente e suas mãos estavam incontestavelmente juntas e Dazai conseguia sentir o calor, a aspereza dos calos e a maciez da carne da palma.

            Dazai contemplou a sua mão.

            Dazai contemplou o seu – seu- corpo.

            “Eu existo” O moreno murmurou baixo, ofegante como se tivesse corrido uma maratona “não é?”

            “Sim” Fukuzawa contraiu os lábios em um sorriso sem dentes e afagou seu cabelo levemente como uma pena, mas mesmo assim Dazai sentiu porque estava tocando nele “Você definitivamente existe” Fukuzawa sinalizou com a mão livre para o tabuleiro “E também é sua vez novamente.”

            A partida durou quase duas horas inteiras e Dazai obviamente não desentrelaçou os dedos por um minuto sequer.

            (Exceto quando Fukuzawa inevitavelmente ganhou e Dazai precisou das suas duas mãos para argumentar porque ele, Dazai Osamu, não poderia sob hipótese nenhuma ter perdido um jogo de shogi,

            Fukuzawa Yukichi sorriu como um pai orgulhoso durante todo o monólogo).

                                                           *

“Eu espero que você seja abençoado

Com um coração como uma flor silvestre

Forte o suficiente para levantar novamente

Depois de ter sido pisoteada

Resistente o suficiente para resistir

A pior das tempestades de verão

E capaz de crescer e florescer

Mesmo nos lugares mais quebrados”

— Nikita Gill

            “Kenji-kun” Dazai franziu o cenho olhando para o pequeno vaso que lhe fora entregue “Não quero ser ingrato, mas de todas as plantas, por que justo essa?”

            Nem Kenji ou o pequeno cacto que Dazai segurava pareceram particularmente ofendidos com sua pergunta.

            Kenji inclusive pareceu até satisfeito por ter ser inquirido, exibindo um sorriso radiante como era de seu feitio e Dazai sorriu de volta, sem notar, porque esse era o efeito do menino nas pessoas em geral e Dazai, dessa vez, não era uma exceção à regra. O menino era uma bolinha de energia solar ambulante e o detetive era fraco.

            “Primeiro porque Dazai-san não parece entender muito de plantas e um cacto não é difícil de cuidar” O garoto explicou em um tom alegre “Segundo porque cactos significam resistência e força, combina com Dazai-san!”

            Dazai aprofundou um pouquinho mais sua careta, olhando a coisinha espinhenta plantada em seu monte de terra, não parecendo muito resistente ou forte, apenas capaz de uma quantidade honesta de dano caso ele fosse descuidado.

            “Isso é realmente doce da sua parte, Kenji-kun!” Arrulhou meio cantado “Vou cuidar muito bem dele!”

            Kenji inclinou a cabeça para o lado fazendo um biquinho, mas o olhar dobrando em ternura.

            “Não só dele, Dazai-san” Kenji falou suavemente, olhos redondos, inocentes e afáveis “Por favor.”

            Dazai assentiu, bagunçando o cabelo loiro e agradavelmente macio.

            “Eu vou cuidar de nós dois, então.”

            Kenji se inclinou para o carinho, soltando um risinho alegre e satisfeito.

            “Muito melhor agora, Dazai-san!”

                                                                       *

“Agora, eu sei que é apenas uma teoria

Mas eu acho que descobri de verdade como

O único caminho para a felicidade

É amar o que temos agora.”

— e. h.

            Dazai abriu o saquinho da ração e despejou a quantidade diária adequada no aquário. Os axolotes se agitaram preguiçosamente na água, procurando os pedaços da comida dispersos na água.

            Eram dois, um branco e outro preto, Dazai os havia comprado no ápicie de um surto maníaco dois anos atrás porque tinha lido em algum lugar a informação nada confiável de que eles eram venenosos e, com a passagem da crise, havia mantido os dois em casa por pouco mais que comodismo.

            Além disso, era aterrador a ideia de ter algo que dependia visceralmente dele para sobreviver, mas que não exigia nenhum vínculo afetivo e emocional direto. Os anfíbios eram gloriosamente indiferentes ao seu dono, à exceção de quando estavam com fome quando eles iriam começar a se nadar perto do vidro sempre Dazai passava pelo aquário até serem devidamente alimentados.

            Nenhum deles tinha nome, mas Dazai tinha um ponto fraco por ambos e mesmo quando a depressão o fazia de prisioneiro nos lençóis, ele lembrava de resmungar ou gritar com Chuuya por horas para que ele distribuísse a ração para os bichinhos e os assistisse comer para garantir que os axolotes estavam bem e saudáveis.

            Dazai cutuou de leve a superfície do aquário, tamborilando os dedos ali. Os anfíbios ainda pareciam imperturbáveis, mas mesmo assim era bom que ele mesmo conseguisse fazer isso agora, saindo do modo de poupar cada grama de energia para outras tarefas como trabalhar, comer e não abrir os pulsos.

            “Estamos finalmente saindo da fase vermelha, então?” Chuuya questionou de onde estava atirado no sofá lendo algum livro de poesia francesa.

            Claro, alimentar seus animais de estimação também tinha seus próprios méritos na comunicação sem palavras entre soukoku e significava ondas diminuindo de intensidade, números constantemente baixos e Dazai (finalmente!) vendo terra firme ao invés de quedas quando pensava no futuro.

            ‘Yup, oficialmente fora dela”

            Chuuya não conteve o suspiro de alívio genuíno, baixando o livro no peito e Dazai virou-se em seus calcanhares para encarar aqueles olhos azuis afetuosos, assistindo o peso no corpo soltar a tensão que sempre se acumulava em cima de Chuuya durante suas crises. Dazai queria se sentir culpado por submeter o homem á esses infernos intermináveis que volta e meia mostravam as caras, mas a única coisa que conseguia pensar era que ele estava grato à todos os idiotas que o cercavam e tinham um ponto fraco por coisas quebradas e inconstantes igual à ele.

            “Isso é bom” Chuuya estendeu os braços para ele, um sorriso enfeitando seus lábios fazendo pequenas rugas surgirem ao redor dos seus olhos “Agora venha cá, uh?”

            Dazai não precisava ouvir duas vezes e prontamente subiu em cima do homem menor. As pernas se enrolando desajeitadamente, enquanto ele apoiava o queixo no peito do ruivo.

            Chuuya acariciou sua bochecha, afastando os fios de cabelo perdidos no seu rosto.

            Dazai arqueou uma sobrancelha.

            “Chibikko quer ser piegas agora, estou sentindo.”

            Chuuya soltou uma bufadela, mas não o corrigiu ou parou a carícia constante para a qual o moreno se inclinou mais, contente.

            “Eu quero e vou ser piegas, cavala” Chuuya revirou os olhos bem-humorado “Estou orgulhoso de você, sei como suas crises podem ser muito desgastante e mesmo assim você conseguiu passar por tudo isso mais uma vez, Osamu.”

            Dazai desviou o olhar, ignorando o rubor que estava subindo por suas bochechas. A sua lesma tinha o dom de deixa-lo constrangido com a mais seleta e curta escolha de palavras que usasse. Nunca falhava.

            “Mais uma vez” O detetive repetiu, deitando a cabeça no esterno de Chuuya, apenas em parte para não o olhar nos olhos “Ainda está aqui, Chuuya sabe. Vai estar sempre aqui comigo. Continua no carro, mas também estou feliz por ser eu no volante de novo.”

            Chuuya cantarolou em acordo, os dedos deslizando por seu cabelo, massageando a nuca do jeito que nunca havia deixado de o derreter.

            Dazai inspirou fundo, sentindo o cheiro de colônia chique, vinho e cigarros que o moreno havia aprendido a associar com lar.

            Com o canto do olho, ele podia ver o arranjo de anêmonas na mesa de jantar. Chuuya havia cortado os caules e os mergulhado em um vaso com água para durarem mais tempo e as flore continuavam bonitas e adoráveis como se tivessem sido recém-colhidas.

            Flores resistentes de fato.

            Dazai se lembrou de crepes, cafés chiques e muffins. Recordou de peixes betas e quebras cabeças, tabuleiros de shogi e o cacto que descansava na janela do quarto deles.

            “E...” Dazai continuou de olhos fechados e seriamente considerando tirar uma soneca “Também é bom que nós dois não estejamos sozinhos dirigindo. O inquilino na minha cabeça pode gritar o quanto quiser nas curvas, os outros passageiros falam muito mais alto.”

            Quase dormindo, Dazai não viu o sorriso de Chuuya, mas sequer precisava ver.

            Ele tinha o seu próprio descansando nos lábios.


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Notas finais do capítulo

Eu poderia matar para saber se isso ficou bom ou não.



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