Réquiem de um Bardo escrita por Kairon


Capítulo 1
Réquiem de um Bardo


Notas iniciais do capítulo

Eu pensei nessa história curtinha, ouvindo duas músicas diferentes a primeira e mais impactante foi: Je te laisserai des mots - Patrick Watson e Some Sand - ibi. Me baseei em DnD. Bem, espero que goste!



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Então você caiu, não consegue nadar direito, sofreu um ataque muito forte, teu corpo não aguenta se mexer apropriadamente. Está se afogando e afundando. Dói. Muito. Você sente a água fria roubando teu calor e teu fôlego. Por algum motivo, você tá afundando mais rápido do que nunca esteve.

   “dentre todas as vezes, justo agora?” Você pensa. O desespero te consome, a frustração também. “e se eu conseguisse pegar meu instrumento e fazer alguma magia” Pobre bardo. Você sabe que instrumentos não funcionam dabaixo d’água. E como assoprar? Sua garganta destruida, se afogando no próprio sangue mais do que na água que tu tanto afirmava ser traiçoeira nos teus pensamentos. E como dedilhar? Um braço quebrado, nem respondia mais, teu corpo não respondia mais, nem para estalar os dedos na esperança de fazer algum som conseguiria. E como falar? Se tua voz não ia se expandir, se tu não tinha mais voz? Só tinha teu tato, quase dominado e tua visão, além da tua consciência. O que te assustava.

   Tua visão vai perdendo um pouco mais de foco, tu já não escuta mais os berros dos teus amigos em total desespero. Ninguém viria te salvar. Sabia que não iriam conseguir. Pobre bardo, nunca experimentou tanto silêncio assim antes. Tinha medo do silêncio. Passou maus bocados no barulho, um barulho que o deixava no silêncio então logo aprendeu a cantarolar. Odiava o silêncio. Então logo aprendeu a tocar flauta. Odiava o silêncio. Então logo aprendeu a tocar tudo o que encontrava pela frente. Odiava o silêncio. Então logo foi embora e logo conheceu gente e sempre ficou rodiado de vários amigos e vários amores. Odiava ficar sozinho.

   “Por quê?” Pobre bardo, não conseguia chorar. Estava no pior pesadelo imaginável para ele. E estava sozinho. “sozinho de novo” Pensou ele, morrer sozinho isto é.

   Sua capa, seus objetos, suas bugigangas e instrumentos, o que estava em seus bolsos se desvinculava do seu corpo. Via as moedas. Lembrava que tinham sido da missão passada, lembrava que iria beber com seus amigos. Sentia que seus instrumentos não estava mais perto. Odiava o silêncio, mas agora não importava seu cantarolar, sua flauta, seu banjo, seu violão, nada disso. Seus amigos tinham que se salvar, seus amores tinham que se salvar e os que não estavam ali nem sabia que você poderia estar assim. Então ficou sozinho, mas odiava ficar sozinho.

   E mais um pouco sua visão ainda mais turva e mais escura nos cantos. Seus cabelos prateados e grandes dançavam como nunca antes, a dança mais lenta do mundo.

   “peixes?” Você se surpreende. Claro que haveriam peixes ali, eles não se importavam muito com você, passavam por você como se fosse qualquer coisa dali mesmo.

   Você conseguia olhar pra cima e ver ainda um pouco do clarão do sol, mas extremamente sutil, como se alguém tivesse colocado um véu preto nele.

    “que lindo” Você pensou. Os peixes, as algas, a luz do sol que não entrava na água e como ela se refratava, o movimento da água na superfície. Era lindo de fato, mas de outra perspectiva parecia que estava se afastando da luz. Se existe um paraíso, começou a achar que não iria pra lá.

   Quis rir quando pensou nisso. Seus amigos ririam se você contasse isso como piada. E de fato ririam. Isso se você fosse salvo. Agora estavam chorando. Ficava mal que os fazia chorar não por uma música, ou um conto seu, mas por sua morte. “meu enterro vai ser uma festa” disse uma vez. Pobre bardo.

   Ficou mais escuro, aquela luz da superfície vai aos poucos se transformando num ponto distante.

   “ainda nada” queixou-se. Queria que aquilo terminasse logo. Não sentia mais nada do seu corpo direito.

   Ficou ainda mais escuro, praticamente não via luz, praticamente não via peixes, algas, ou o que quer que fosse. Nem ajuda. Nem nada.

   Fechou os olhos.

   Porque cortar sua visão antes do tempo, bardo?

   Não conseguia cantarolar.

   Mas começou a ouvir um cantarolar.

   De onde? Quem? Seu? Sua voz voltou? Era tudo um sonho? Era algum amigo? Algum amor?

   Abriu os olhos, mas nada.

   “não lembro disso” você pensou. E porque se lembraria, bardo?

   “era meu?” perguntou. E porque seria, bardo?

   “não é meu” afirmou. Não é seu, bardo.

   “obrigado” e então fechou os olhos.

   Seria seus pensamentos? Sabia que não poderia ser seu, se lembrava de toda vez que cantarolou. Não era sua voz. Não era voz de nenhum amor seu, de nenhum amigo seu. Seria seus pensamentos em busca de confortá-lo? Poderia ser sua vida passando diante seus olhos, ou melhor, seus ouvidos? Toda uma vida se resumiria num cantarolar de alguém que não conhece.

   “um piano?!” indagou o bardo. “mas instrumentos dentro d’água?”

   Afundou ainda mais. Abriu os olhos. Não via mais luz alguma. Mas a escuridão aos poucos se transformava num azul. Então voltou a ver os peixes, então voltou a ver a vida, enquanto a sua ia embora.

   Mas o azul escuro era apenas ao seu redor. A partir de um ponto pra cima era tudo escuro. Podia ver vários pontos brilhantes. “não são estrelas” afirmou. “são aguas vivas” pensou para si.

   Mas então o cantarolar continuou e o piano continuou.

   “não são minhas lembranças” afirmou o bardo. Não são, bardo.

   E então já não sabia mais se o que o sufocava era a água ou só o seu sangue.

   Sabia que aquela música não era sua.

   E então como despedida dos deuses, essa seria a última música que iria escutar. Algo que ninguém ouviu e nem ouviria. Pensou o bardo. Algo só seu, como quando começou a cantarolar e lá era apenas para si, não teria cantado para ninguém, queria manter o passado no seu devido lugar. E assim como suas músicas exclusivas, seria sua morte, seria seu presente final. “não existe presente melhor” pensou ele. Ficou feliz. Ao final, o bardo teria seu réquiem de fato. Mesmo que só ele fosse ouvir.

   Afundou mais, mas nada mudou dessa vez. Sentia no entanto que seu tempo estava perto.

   Estranhou a água, caótica quando começou a se afogar, depois fria fazendo seu corpo morrer, agora não estava nem quente, nem fria ou caótica. Estava perfeita como nunca esteve, como nunca poderia em situações normais. Por isso, você passou a aceitá-la.

   E você sabia que se fosse uma chuva, você dançaria nela.

   Talvez sozinho, talvez com alguém que amasse, mas certamente dançaria.

   “que voz linda” afirmou sobre o cantarolar. Era a voz de um homem, as vezes cantava algo, algumas palavras soltas, algumas frases que escapavam, mas eram de alguma língua que não entendia. Não que isso importasse.

   “que piano e violino lindo” o bardo se agraciou. Queria os seus. Queria tocar, mas já não estava mais no silêncio e era isso que importava.

   Tinha certeza que viu um tubarão, mas nem ele se importou com o bardo. Tudo ali estava perfeito do jeito que estava.

   Pobre bardo. Seria ótimo encontrar esse lugar enquanto vivo.

   “talvez aqui não exista” você pensou.

   Você viu algo brilhando, não conseguia virar seu corpo pra baixo e ver o que tinha ali, mas era forte o suficiente pra saber disso.

   Você lutou bem, bardo.

   “conheci tantos lugares, tantas pessoas, tantas músicas”

   Você se esforçou mais uma vez.

   “não quero ir agora, apesar do presente”

   Você lutou bravamente mais uma vez, bardo. Conseguiria viver. Mas não adiantava nada nessa situação. Pobre bardo.

   Sua visão escuresceu.

   “quero ouvir até o último segundo” pontuou. E vai, bardo.

   Seu corpo não afundava com tanta velocidade quanto antes.

   Nada mais tirava seu conforto.

   “obrigado”

   Descanse, bardo.

   E num último instante ele teria pegado até a última nota da música e agora morreria.

   Ficou tudo silêncio.

   Agora.

   Você morreu, bardo.

   Ou era o que você achava.

   Você tinha convicção que morreria.

   Acordou em cima de uma cama e viu à sua frente, onde normalmente teria uma janela num quarto, uma parede inexistente. Mas, nada passava por ela, só feixes de luz e azul da água. Como se fosse um aquário, mas ele que estava em um. Via de tudo, peixes, tubarões, polvos, baleias ao fundo e algumas outras criaturas que não sabia exatamente o que eram, porém não havia atritos entre elas.

   Olhou para o resto do quarto, era de madeira, não estava muito bem iluminado, então não conseguia ver o que tinha ali mais detalhadamente mas era confortável e pacífico, de um jeito que nunca foi.

   “Onde estou?” falou o bardo sem crer em nada. “eu de fato morri então” afirmou o bardo. Então alguém da entrada do quarto foi aos poucos em direção do bardo, largou um riso pelo comentário. E antes que pudesse fazer qualquer comentário, o bardo o viu. Arregalou os olhos, por vários motivos, mas primeiramente que lindo e gracioso ele era. Sem conseguir falar pela surpresa no geral, só esperou por algo. Após o outro parar com sua risada e olhar o bardo com certa ternura, comentou.

   “Que sorte a sua, bardo. Justo no dia que resolvi cantar”


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Notas finais do capítulo

Eu utilizei de algumas referências como algumas magias, até mesmo testes de vida ou morte na narrativa. A personalidade que canta e toca eu inventei, faz parte do meu mundo, lá caso você estivesse para morrer na água, não importa onde, ou qual profundidade, seria salvo por seu canto, afundaria como se fosse num portal até sua "casa". Você seria completamente curado de qualquer coisa e teria mais uma chance. Isso claro ocorreria apenas quando ele cantasse e se estivesse ligado à ele pelo destino.