1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 23
Capítulo XXI


Notas iniciais do capítulo

Hello, ladies!
Chegando com mais um capítulo para vocês. Esse acabou ficando bastante longo, uff, mas tentei deixar a leitura o mais dinâmica possível, as always, para que vocês não sofressem muito. Não tenho muito o que comentar sobre esse capítulo em particular, então só espero que vocês gostem dele. Also, queria dividir que estamos quase chegando à metade de nossa história ( sim, pois é, o tempo voou, ao menos para mim XD ).
Anyways, boa leitura e sei que estou devendo algumas respostas de comentários a vocês e estarei providenciando isso!
Beijos!



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Londres, 1812

 

Sarah Holroyd.

O nome insistia em voltear pela mente de Ophelia Wright, não importava o quanto ela se esforçasse para manda-lo para longe dos próprios pensamentos. O que era muitíssimo incômodo, considerando o fato de que ela tinha maiores preocupações as quais se atentar. Como, por exemplo, se adaptar ao novo trabalho e tudo que vinha junto com ele – a nova rotina, o novo lar.

Quando ela pusera os pés pela segunda vez na escadaria que levava à entrada da Casa Beaumont, ela sentiu-se segura o suficiente para subi-la, diferente da primeira vez. Afinal, não era uma intrusa indo xeretar o casamento do irmão de sua anfitriã. E sim uma empregada contratada e aguardada. Contratada. O termo a tinha feito sentir-se um tanto zonza, talvez pela inesperada velocidade com a qual tudo se desenrolara.

Após retornar da Harri’s para a pensão onde estava fazendo morada, Jo escrevera uma missiva e a enviara imediatamente para a Casa Beaumont, demonstrando interesse na oportunidade que a família abrira para uma nova Governanta para suas crianças, e pondo-se à disposição para uma entrevista caso os interessassem.

Sua resposta chegara no dia seguinte, com um convite... Para que trouxesse suas coisas e se mudasse imediatamente para a mansão na Grosvenor. Durante todo o processo de arrumar seus pequenos pertences em sua malinha surrada e pegar o coche alugado em direção a seu destino, Ophelia tentara buscar qualquer explicação lógica para aquela aceitação tão rápida.

Era verdade que ela já conhecia Lorde e Lady Beaumont. Mas seu único e primeiro encontro fora breve, e ela não estava certa de que a Condessa a apreciava, visto que tinha desafiado seu orgulho para arrancá-la para fora do berçário onde se escondera durante o casamento do irmão dela. Na melhor das hipóteses, ela deveria achar Jo indiscreta e, na pior, alguém extremamente rude.

Esse tipo de opinião revelaria grande sensatez por parte da Condessa, mas de modo nenhum explicaria então porque...

Ela decidira contratar Ophelia. Sem nem mesmo entrevista-la antes.

Talvez ela não fosse alguém demasiado preocupada com a educação de seus filhos. Ophelia já conhecera algumas mães aristocratas do tipo; mulheres que deixavam suas crianças nas mãos das babás e iam viver suas vidas normalmente, como se elas não existissem ou não fossem suficientemente relevantes para serem vistas mais de uma ou duas vezes durante a semana.

O pouco que vira da Condessa e do Conde, no entanto, sugeria o contrário; afinal, eles haviam escapulido da recepção do casamento para poder conferir seus filhos adormecidos no berçário. Ophelia ainda lembrava das palavras que Lady Beaumont tinha dito, naquela ocasião. Não resisti a tentação de vê-los antes do desjejum, embora tenha estado com eles duas horas atrás.

Pois então, se não eram pais negligentes, então por qual motivo...?

— Senhorita Wright. — fora o próprio casal quem a recebera no saguão da mansão, após o mordomo abrir as portas para Ophelia. Lady Beaumont fora a primeira a cumprimenta-la. — Chegou rápido.

— Sim, milady. — Jo respondera, após fazer uma pequena reverência. — Não andava muito... Ah, não estava tendo muitas ocupações.

— Imagino que não. — Lorde Beaumont dissera, com certo traço de humor na voz. Mas não parecia estar debochando dela. Aquele bom-humor apenas parecia ser parte de seu tom natural de voz. — Talvez vá ficar feliz em saber que aqui terá muito o que fazer?

Ophelia sorrira levemente.

— Ah, sim, milorde. É um grande alívio. — e era mesmo. Jo suspeitava que se tivesse sido forçada a enfrentar mais uma semana de ócio e incertezas, provavelmente teria saído gritando pelas ruas de Londres à fora.

— Ah, — murmurara a Condessa. — antes de falarmos sobre isso, Senhorita Wright, eu gostaria de lhe perguntar algo que tenho em mente desde que nos encontramos pela primeira vez, no casamento de meu irmão.

— Por favor, milady.

Lady Beaumont franzira levemente as sobrancelhas louras, o primeiro sinal de expressão clara que Ophelia a via performar.

— Já nos conhecíamos antes? — indagou, abruptamente.

Ophelia erguera levemente as próprias sobrancelhas.

— Creio que não. — respondera. — Não posso imaginar como poderíamos ter nos conhecido.

— Você tem razão. — a Condessa dispensara o fato com um aceno de mão. — Há algo vagamente familiar em seu rosto, mas devo ter apenas conhecido alguém com traços parecidos. Acontece o tempo todo. James, por que não vai buscar as crianças enquanto eu levo a...

— Senhorita Wright está ótimo, milady.

—... A Senhorita Wright para cima, para que se instale.

— Basta que me apresente ao resto da criadagem. — Jo atalhou. — Estou certa de que podem me mostrar tudo o que preciso.

Era muito estranho a própria dona da casa se preocupar com a contratação de uma funcionária. Na ausência da governanta, certamente seria mais adequado que o mordomo se encarregasse da contratação e ambientação de serviçais do sexo feminino, embora este não fosse o mais usual. Ainda era menos usual ainda que Lady Beaumont se interessasse pessoalmente por Ophelia.

Lorde Beaumont partira em busca dos filhos, enquanto a Condessa levara Ophelia para o subsolo da mansão, onde ficavam os alojamentos dos serviçais. Pensara, por um instante, que percorreriam todo o caminho em silêncio, mas assim que tinham posto os pés nas escadas internas que as levariam para baixo, a mulher perguntara:

— Tem experiência como governanta de crianças, imagino, Senhorita Wright.

Jo assentira.

— Nunca trabalhei com crianças novas como as suas, milady, mas passei quatro anos trabalhando na Casa Dashwood, responsabilizada pela educação da senhorita Dashwood, irmã do Visconde Bedwyn.

— Ótimo. — a Condessa dissera. — Você fala muito bem. Tem o hábito da leitura?

Então ela decidira realizar a entrevista naquele momento, após contratar Ophelia? Elas haviam chegado ao fim das escadas, e Lady Beaumont seguira guiando-a pelos corredores – vazios, àquela hora do dia, visto que seus habitantes certamente estavam ocupados desempenhando seus papéis na superfície.

— Sim, milady.

— Sabe escrever também?

Ophelia assentira uma vez mais.

— Minha caligrafia é decente. — falara. — Também domino francês, música e outros conhecimentos básicos semelhantes.

Fora a vez da Condessa anuir. Um instante depois, elas estavam diante de uma porta num corredor repleto de outras portas semelhantes.

— Este será seu quarto. — Lady Beaumont falara. — Espero que sinta-se confortável. A rotina na Casa Beaumont talvez seja um pouco diferente do que estava acostumada na Casa Dashwood, mas não somos pessoas particularmente extravagantes. Então estou certa que se adaptará bem. A deixarei sozinha por hoje para que se instale e possa se familiarizar com o resto da criadagem.

As palavras não haviam sido especialmente calorosas, mas Ophelia já compreendera que a Condessa não era alguém de muito carisma, diferente de seu marido. Ela era muitíssimo educada, no entanto. Aquilo haveria de ser suficiente, foi o que Jo refletira, quando a vira virar-se para ir embora...

Antes que ela partisse, no entanto, Ophelia a chamara uma última vez:

— Milady?

A Condessa voltara-se para ela, já na metade do corredor em direção à saída.

— Sim? — indagara, erguendo uma única sobrancelha.

— Tenho uma pergunta a fazer. Se não se incomodar em responde-la.

— Vá em frente.

Jo hesitara por um instante a mais, mas então chacoalhara ligeiramente a cabeça, afastando o receio e dando lugar à curiosidade ao perguntar:

— Por que aceitou-me para o trabalho, sem nem mesmo estar certa de minhas qualificações?

Lady Beaumont voltara a franzir as sobrancelhas, como se ela mesma estivesse intrigada com aquele dilema em particular. Após um minuto, no entanto, ela respondera, com franqueza:

— Meu irmão visitou-me ontem, um pouco depois de eu ter recebido sua missiva. Dividi com ele a notícia de sua candidatura e ele foi bastante... Incisivo na ideia de que eu deveria contratá-la.

Ophelia sentira-se ainda mais confusa do que estivera antes de fazer a pergunta.

— O Duque? — questionara, desacreditada. Qual seria o interesse do Duque em dizer uma coisa dessas à irmã? Qual seria o interesse do Duque em ajudar Ophelia?

O olhar que a Condessa lançara a Jo, então, a convencera de que nem mesmo ela sabia a resposta para aquela questão.

 E, por alguma razão, aquele rumo de pensamentos a tinha levado a Levi Holroyd. E ao seu último encontro na Harri’s, dois dias antes. Após retornar para a pensão, ela cogitara, mais de uma vez, a possibilidade de realmente escrever a ele... Como prometera que faria. Oh, bem, não prometera nada, mas a ideia fora levantada entre eles, e aceita. Mas em todas as vezes que tentara pôr a pena no papel, uma palavra flutuara ameaçadoramente por sua mente, fazendo-a desistir.

Não, não uma palavra. Um nome.

Sarah Holroyd.

Quem seria Sarah Holroyd? Ophelia não sabia mas, mesmo assim, o nome a deixava com um desconfortável sentimento pesando no fundo do estômago. Talvez porque o fato daquela mulher desconhecida carregar o sobrenome de Levi Holroyd sugeria que ela fosse alguém próxima... Alguém da família. Como uma irmã. Ou prima.

Ou esposa.

Mas não. Não poderia ser. Não poderia ser, pois Levi Holroyd não era casado. Se fosse, Ophelia saberia, não? Eles não eram de forma alguma íntimos, esforçou-se em lembrar a si mesma, de modo que de modo algum o homem lhe devia qualquer coisa, muito menos uma explicação sobre ser ou não casado, mas...

Ele dissera que sentiria-se tentado a atrair seu interesse, em outras circunstâncias. E não usava nenhuma aliança. Ophelia não se lembrava de ter procurado uma aliança em seu dedo, mas estava certa de que teria notado uma, caso existisse. Ela precisava agarrar-se àquilo. Pois se não estivesse certa, isso queria dizer que ele dissera que sentiria-se tentado a atrair seu interesse, estando comprometido e isso...

Iria de encontro a tudo o que sabia sobre Levi Holroyd. Ou tudo o que achava que sabia. Deixe de ser tonta, pensara consigo mesma, você não o conhece. O que ela sabia sobre aquele homem para acreditar que sabia qualquer coisa relevante?

Ela sabia que ele era um médico. Sabia que tinha servido em campo na Península, até ser obrigado a retornar para a Inglaterra, mesmo contra os próprios desejos. Sabia que ele cuidara do Visconde Bedwyn, assim como do Duque de Barclay e do Conde de Lannair e de outros soldados vindos da Península. Sabia que ele era irmão de um Duque, e que sua família o condenara ao ostracismo por sua escolha de seguir o próprio sonho profissional. Sabia que havia algum tipo de rusga envolvendo ele, a esposa de seu irmão e seu sobrinha.

E sabia que havia uma Sarah Holroyd em sua vida, quem quer que aquela mulher fosse.

E sabia também que nada daquilo definia quem ele era, de fato. Aquelas coisas eram parte de seu eu, mas não definiam o homem abaixo daquela imagem. O homem de verdade sentia-se solitário, apesar de concordar não ter qualquer razão para tal. O homem de verdade era muito diferente, muito mais vulnerável. Muito mais adorável.

Mas aquelas não eram coisas que ela sabia, e sim coisas que supunha. Coisas que criara em sua própria mente, com base nas próprias experiências e percepções, durante o período de tempo em que pensara naquele homem... E sim, sonhara com ele, como uma jovem debutante estúpida e inexperiente.

E como uma jovem debutante estúpida, ali estava ela, refletindo naqueles dilemas inúteis, enquanto havia muito mais com o que se preocupar. Questões verdadeiramente pertinentes. Por isto, em sua primeira noite na Casa Beaumont, decidiu pôr tudo aquilo de lado, e dedicar sua atenção ao que realmente importava ali.

Concentrou a atenção no trabalho que a aguardava.

Embora Edith Beaumont ainda fosse muito pequena, seu irmão, por sua vez, já estava em idade de aprender algumas coisas. Ele já estava começando a ter um bom domínio das letras, mas aquele era só o começo. Música, francês e escrita criativa vinham depois. Para não falar da tão temida matemática. Os conhecimentos de Ophelia eram de ensino básico, mas o jovem Jacob não precisaria de nada complexo até os doze anos, pelo menos, quando fosse para Eton e poderia receber lá o ensino acadêmico adequado.

Quando isso por fim ocorresse, Edith já estaria crescida o suficiente para precisar da atenção integral de Ophelia, e dessa forma, ela poderia manter-se suficientemente ocupada e, se realizasse um bom trabalho, o que era sua intenção, poderia conseguir uma posição duradoura na Casa Beaumont, uma posição que lhe renderia segurança e estabilidade por anos.

O início era sempre o momento de maior importância. Ela precisava mostrar serviço. Ela precisava fazer com que aquilo desse certo. Não podiam haver distrações naquele momento.

Foi com este pensamento que Ophelia adormeceu naquela primeira noite, e com ele que despertou no dia seguinte. A professora terminava de desembalar seus pequenos pertences e guarda-los nas gavetas de sua nova penteadeiras quando seus pensamentos foram interrompidos por uma batida na porta. Quando disse “Sim?”, a porta abriu-se e Lady Beaumont entrou.

Ophelia se levantou no mesmo instante e fez uma reverência.

— Deseja alguma coisa, milady? — perguntou.

— Não, nada. — a Condessa respondeu. — Vim apenas conferir se você já estava devidamente instalada. Me perdoe por vir tão cedo.

— Ah, não se preocupe. — Jo disse. — Só me surpreende... Que já esteja acordada.

A maior parte dos nobres aristocratas que Ophelia conhecera só começavam a cogitar levantar da cama após as nove da manhã, pelo menos. E naquele momento ainda eram sete, e Lady Beaumont já estava inteiramente vestida, penteada e evidentemente pronta para qualquer convite repentino que aparecesse à sua porta, fosse para uma caminhada no Hyde Park ou para um baile diurno.

— Costumo despertar cedo. — a Condessa comentou, vagamente. — Precisa de algo?

Ophelia piscou. Lady Beaumont acabara de perguntar se ela precisava de alguma coisa? Pela parca experiência de Jo, os papéis ali pareciam um tanto quanto invertidos.

— Hã, não, muito obrigada. — disse. — Mas ficaria contente em fazer algo pela senhora.

A Condessa dispensou a oferta com um aceno de mão.

— Não a contratei para me servir, e sim para educar meus filhos. — falou. — Mas não precisa fazer nada hoje. Prefiro que conheça a casa e se adeque primeiro, para que não se distraia depois de começar. Além disso, Jacob está resfriado. Não quero mais uma pessoa doente nessa casa.

Ophelia lançou um breve olhar para a pequena mala no chão.

— Não tenho muito o que guardar, milady. Com toda a sinceridade, gostaria de começar a trabalhar agora mesmo.

— Bobagem. — retrucou Lady Beaumont. — Ainda não teve a oportunidade de ser apresentada ao resto da equipe, imagino, e ainda é necessário que o Sr.Watkins a leve para conhecer a casa.

— Mas...

— Sem discussões, por favor. — A Condessa pediu, virando as costas em direção à saída. — Assim que estiver devidamente familiarizada com tudo e todos, pode me procurar lá em cima, para que possamos discutir seus planos quanto às crianças. Não pretendo sair hoje, de modo que certamente estarei em casa quando subir.

E assim, Ophelia foi deixada sozinha, mais uma vez.

Seguindo as ordens de sua nova patroa, a professora buscou o Sr.Watkins, o mordomo, para lhe pedir que fosse apresentada ao resto da criadagem e, se não fosse incomodá-lo, ao resto da casa. O mordomo demonstrou-se tão carismático quanto sua senhora, mas igualmente educado, de modo que realizou as devidas apresentações aos novos colegas de trabalho de Jo e depois de terem todos tomado café da manhã juntos, a levou para um pequeno tour pela Mansão Beaumont.

Ophelia ouviu muito atentamente todas as instruções que lhe foram dadas. Como governanta das crianças, ela deteria liberdade de circular pela maior parte dos cômodos livremente, contanto que estivessem desocupados, é claro. Ela deveria evitar ficar zanzando por aí sem as crianças nos cômodos onde os senhores estivessem repousando, a não ser que fosse convidada por eles a fazê-lo.

Até então, nada de novo. Jo conhecia perfeitamente bem a dinâmica e a etiqueta implícita existente entre a criadagem e a família a qual ela servia. Mas ficou claro a ela que o Sr.Watkins, particularmente, levava aquele assunto bastante a sério, de modo que fez de tudo para manter uma expressão atenta e humildemente interessada no rosto durante todo o percurso realizado.

Quando por fim acabaram, o almoço já viera e passara há muito. Ophelia cogitou a possibilidade de descer para comer tardiamente, mas isso significaria que ela teria de ficar a sós com o Sr.Watkins, visto que o resto de seus novos colegas certamente já tinham tomado as próprias refeições, e ela pensou que por hora precisava de algum descanso...

Da presença e da voz imperiosa do mordomo.

Dessa forma, ela subiu para o andar de cima, em busca de Lady Beaumont, conforme fora orientada a fazer assim que tivesse finalizado. Antes só passou no próprio quarto para pegar sua cesta de costuras e o vestido novo que a Condessa deixara para ela mais cedo. O vestido pertencera a ela anteriormente e, embora Jo soubesse que não era de todo incomum que as senhores passassem às suas criadas roupas que não mais lhe eram úteis, ela também sabia que normalmente esse luxo era dado às camareiras que eram íntimas às suas patroas.

Ophelia era uma governanta, não uma camareira e, de toda forma, a última coisa que era da Condessa era íntima. O que tornou o gesto mais significativo, de alguma forma. Embora não fosse dada a sorrisos e suas palavras fossem sempre curtas e diretas, Lady Beaumont parecia ter o próprio modo silencioso e discreto de demonstrar gentileza.

O vestido era verde, com corte simples e um decote quadrado modesto. Suas mangas iam até um pouco antes dos punhos, mas isso Ophelia poderia corrigir adicionando talvez uma faixa de renda nas pontas para somar o comprimento. Pensou que poderia aproveitar o resto de seu dia livre, após conversar com a Condessa, para fazê-lo, e foi com essa ideia que pegou a cesta de costuras antes de rumar ao andar de cima da Casa Beaumont.

A camareira que servia Lady Beaumont, Agnes, informou Ophelia de que a senhora se encontrava na sala de chá no final do corredor. Ao parar em frente ao cômodo indicado, Jo pensou ouvir alguma agitação de vozes murmurando baixinho... A governanta deu uma pequena e hesitante batida na porta, e ao ouvir a voz da Condessa permitindo sua entrada, empurrou-a com o quadril visto que tinha as mãos ocupadas com o vestido e a cesta.

No entanto, quando adentrou o cômodo, Lady Beaumont não foi a única pessoa com quem deparou-se. Sentada numa poltrona à sua frente, vestida em um creme primaveril, com o cabelo escuro preso no alto da cabeça estava...

A Duquesa de Barclay.

Ophelia recordava vagamente de seu rosto do dia do casamento – o casamento que, lembrou-se, fora tão dela quanto fora do Duque. Jo recordava-se de ter trocado breves palavras de congratulação com a nova Duquesa, e também se recordava da expressão melancólica que condecorara o rosto bonito dela durante todo o evento. E recordava de questionar-se sobre o desejo dela de estar naquela posição.

A mulher à sua frente, no entanto, estava muito distante da moça pálida e apática que conhecera durante a cerimônia. Ela carregava um ar de dignidade serena – parecia uma mulher que tinha chegado a um acordo com a sua vida e aceitou-a como o que era. Talvez, afinal, o título e a posição tivessem lhe caído perfeitos como um par de luvas novas.

Embora, naquele momento, houvesse algo em seu rosto – talvez a maneira como tinha os lábios crispados, ou a forma como seus olhos escuros encaravam fixamente a Condessa com um ar ligeiramente consternado, que sugeria que a conversa que travavam antes da entrada de Ophelia não era das mais agradáveis. Não havia cheiro nenhum de conflito no ar, mas se estendesse a mão, Jo suspeitava que conseguiria apalpar...

O que quer que estivesse pairando ali.

As duas mulheres voltaram-se imediatamente para a governanta no momento em que a porta fechou-se atrás dela.

— Milady. — desculpou-se Ophelia. — Me perdoe, não sabia que tinha visitas. Voltarei em um momento mais oportuno.

A Condessa balançou a cabeça.

— Não. — disse, empergitando-se no assento. Então limpou a garganta e disse mais uma vez: — Não. Por favor, Senhorita Wright, sente-se. Vossa Graça, a Duquesa, só decidiu me fazer uma visita de cortesia surpresa.

O senso de etiqueta de Ophelia então deu-lhe uma bofetada, e ela fez uma reverência na direção da mulher mais nova.

— Vossa Graça. — cumprimentou-a, respeitosamente.

— Olá. — a Duquesa sorriu-lhe levemente, um sorriso educado. — É um prazer conhece-la, senhorita Wright.

— Khaleesi, — a Condessa interpôs-se, bebericando seu chá. — a senhorita Wright esteve em sua cerimônia de casamento, não lembra-se?

Certa confusão cruzou os olhos da Duquesa, então, e logo em seguida foi substituída pelo que parecia um toque de remorso.

— Ah, — ela murmurou. — Me perdoe, senhorita Wright. Acredito que minha mente naquele dia estivesse um tanto... Distraída. — ela abriu outro sorrisinho amarelo, voltando-se para a Condessa. — Você sabe, Morgan, as ansiedades de estar casando-se, hah...

A mulher parecia honestamente constrangida por sua gafe, por isso Jo decidiu dar a ela uma colher de chá ao abrir um sorriso solidário:

— Não há o que desculpar, Vossa Graça. De verdade. Estou certa de que se tivesse sido meu casamento, eu certamente não lembraria da presença de nenhum dos convidados, inclusive de meus próprios familiares.

Após aquelas palavras, a Duquesa pareceu voltar a relaxar... E, inesperadamente, Ophelia foi convidada pela Duquesa a sentar-se com elas. Ophelia voltou-se para sua senhora, mas Lady Beaumont limitou-se a menear levemente com a cabeça e a erguer as sobrancelhas claras.

— Sente-se inclinada a recusar o convite da Duquesa, senhorita Wright? — indagou. Aquele era um teste? Uma instrução implícita para que permanecesse? O que quer que fosse, Jo não teve muitas chances de decidir por si mesma como enfrenta-lo...

 Pois a Duquesa garantiu que aquele não passava de um chá informal, e que não havia problema algum em Jo permanecer por perto. As mulheres continuaram a conversar sobre assuntos amenos então, como o clima e o estado de saúde do pequeno Jacob.

De primeira instância, Ophelia somente permaneceu parada, sentada rígida como uma vara na poltrona ao lado da Duquesa, sentindo-se terrivelmente ilícita. Mas como poderia simplesmente levantar-se e partir, tendo sua senhora solicitado que permanecesse? Dessa forma, ela viu-se naquela posição pelos próximos minutos.

Então, em determinado momento, a Duquesa empurrou em sua direção a bandeja de bolinhos quentes e o bule de chá quente e leite fresco que tinha sido recentemente servido na sala.

— Por favor, senhorita Wright. — ela pediu. — Se eu for forçada a olhá-la mais um instante com esta expressão lívida, eu acabarei me sentindo a pior das pessoas existentes. Não se aterrorize. Um título é apenas um nome, e certamente ainda me verá bastante pela Casa Beaumont.

— Não estou aterrorizada, Vossa Graça. — Ophelia retrucou, e era verdade. Não lhe incomodava a posição de nenhuma daquelas mulheres em comparação a sua. Ela tinha o próprio orgulho, afinal. Mas era completamente inatural – além de inadequado – a ela, como uma serviçal, prestar-se aquele papel de acompanhante.

— Se não está aterrorizada, — a Duquesa disse. — então quer dizer que está desconfortável. Qualquer que seja a razão, por favor, deixe-a de lado e pegue um bolinho. Morgan disse-me que hoje tem o dia livre.

Jo lançou um breve olhar em direção a sua nova senhora, buscando algum tipo de orientação... Mas a Condessa parecia distraída com o chá em sua xícara.

— Sim, tenho, Vossa Graça. — Ophelia retrucou. Então, hesitantemente, estendeu a mão e pegou um bolinho. Ainda sentia-se como uma pequena infratora, mas a sensação de que seria uma infração maior ainda contradizer a Duquesa, e o cheiro da massa amanteigada recém-assada afastou o pensamento...

Por um instante.

Depois disso, o relaxamento veio gradativamente. Ophelia começou a adicionar comentários pontuais ao diálogo. O chá estava morno, àquela altura, não quente, mas isso de forma alguma tornou-o menos saboroso. O mesmo poderia ser dito dos bolinhos. Em determinado ponto, Jo julgou que não seria rude fazer-se um pouco mais invisível...

E começou a cerzir os punhos do vestido, como pretendia fazer. A lembrança da razão pela qual entrara na sala, para início de conversa – afim de discutir com a Condessa seus planejamentos quanto às aulas do pequeno Jacob – distanciou-se de Ophelia, assim como a sensação de ilicitez que antes a dominava, e a aura densa que incorporava o ar do ambiente antes de sua chegada inesperada. Por um momento, ela deixou de ser uma mera serviçal para se tornar apenas uma mulher comum, conversando e rindo sobre as amenidades da vida na companhia de suas semelhantes.

Ela foi trazida de volta à realidade por uma batida na porta da sala de chá, que antecedeu a entrada do Sr.Watkins. Ele lançou um olhar significativo na direção de Ophelia, sentada com um bolinho numa mão e a agulha de costura em outra, antes de informar a Condessa que o médico convidado acabara de chegar à Casa Beaumont afim de examinar o estado do jovem mestre Jacob.

— Ah. — a Duquesa disse. — Acredito que está na hora de partir.

— Pode ficar para o jantar, se desejar, Khaleesi. — a Condessa sugeriu, cordialmente. — Estou certa de que James apreciaria sua presença.

— Eu agradeço, Morgan, mas a Duquesa Viúva me aguarda em casa.

Dessa maneira, a Duquesa despediu-se de sua cunhada e de Ophelia. Após a saída dela, a Condessa colocou-se de pé e, embora não tivesse sido convidada ao mesmo, Jo imitou-a, deixando o bolinho parcialmente comido em cima da bandeja e começando a juntar todas as suas coisas de volta na cesta.

Lady Beaumont adiantou-se para fora. Ophelia seguiu-a pouco depois, decidindo que iria refugiar-se nas próprias acomodações para terminar o trabalho que começara. Afinal, ainda havia uma considerável quantidade de tempo a ser enfrentado antes de precisar se recolher para dormir, e ela não conseguira terminar de cerzir a renda nem em um punho inteiro.

Ela estava tão distraída pensando nisso que, quando chegou ao saguão de entrada da casa, mal apercebeu-se da identidade do recém-chegado. Ela já estava quase na passagem para a escada interna que a levaria para o alojamento dos serviçais no subsolo quando a voz da Condessa a fez estacar no meio do caminho:

— Senhor Holroyd, obrigada por vir.

Então o que Ophelia fez a seguir demonstrou muitíssima sensatez de sua parte, mas simultaneamente foi o ato mais infantil e covarde que ela realizou em muito, muito tempo; Ao invés de seguir em direção a passagem da escadaria, que ainda estava a alguns bons passos de distância, sem se quer olhar para trás, para o homem parado no centro do saguão, ela virou de lado e em duas passadas longas atravessou a arcada que a levaria ao terraço externo da Casa.

No entanto, não parou por ali. Como uma ladra fugindo no meio da noite, ela acelerou e desceu ainda a curta escadaria que a levaria do terraço para os pequenos jardins da propriedade. Ophelia não estava certa de que aquela minúscula faixa de grama do tamanho de uma nota de uma libra poderia ser chamada de jardim. Mas era o mais perto que os Beaumont tinham de algo semelhante.

Jo instalou-se num banco de ferro forjado no pequeno pátio e saboreou...

A sensação de sentir-se a pessoa mais patética na face da terra.

Alguns dias antes, na Harri’s, tinha ficado estupidamente feliz com a perspectiva de manter contato com Levi Holroyd. E agora...

Agora parecia que sob a simples possibilidade de olhá-lo no rosto tudo nela, todas as partes de seu corpo, sua cabeça, suas emoções, giravam em um redemoinho. Aquilo só poderia ser culpa de Sarah Holroyd. Era a única explicação. Aquele nome escrito naquele livro de registro andava perturbando Ophelia além do que deveria, embora muito menos isso tivesse nexo.

E ela nunca fora mulher de fugir.

Ah, ela já tivera o suficiente daquilo.

Talvez tenha sido por essa razão que, alguns minutos depois – ela seria incapaz de especificar quantos –, quando uma sombra pairou acima dela, Ophelia não levantou-se e saiu correndo... Uma vez mais. Ao invés disso, ergueu o queixo e encarou muito diretamente o médico.

— Senhor Holroyd. — disse, ensaiando seu mais convincente sorriso amarelo. Seus olhos foram até a mão dele. Sem aliança, como ela recordava.

O médico encarava-a com algum divertimento contido nos olhos. Quando abriu a boca, ele apontou justamente o comentário que ela estava torcendo para que não fizesse:

— Acreditei, por um instante, que fosse uma miragem, de tão rápido que desapareceu de meu campo de vista lá atrás.

Jo desviou os olhos, sem graça. Ela não conseguiu pensar numa resposta espirituosa ou perspicaz o suficiente para dar prontamente. Talvez o médico tenha notado seu embaraço, pois fez a menção de mudar de assunto, embora suas palavras seguintes não tenham sido de muita serventia no quesito deixar Ophelia menos sem graça:

— Seu vestido novo é bonito.

Ele fizera o comentário com simplicidade, com o mesmo tom de voz com que alguém comentava sobre o clima ou sobre o fato do preço das frutas terem subido de uma semana para a outra. Mesmo assim, algo naquela frase – talvez a sugestão implícita de que ele notara o vestido, o que também queria dizer que notara Jo – fez com que Ophelia ficasse inquieta.

— Obrigada. — disse. — Foi Lady Beaumont quem me deu.

Um outro curto silêncio seguiu-se. Então o médico voltou a pronunciar-se:

— Eu tenho a ligeira impressão, — começou, com delicadeza. — de que minha presença a incomoda de alguma maneira, senhorita Wright.

Ophelia quase pulou para fora do banco, agarrando com força o vestido.

— Não é verdade — falou apressadamente. Ensaiou outro sorriso, como se aquilo fosse fazer com que soasse mais convincente. Então, estupidamente, para completar o show de horrores que estava sendo aquela performance, indagou: — Por que pensa isso?

O médico ergueu as sobrancelhas.

— Talvez — disse. — porque embora tenhamos concordado em fazê-lo, eu não tenha recebido nenhuma missiva da senhorita, e talvez porque ao acabar encontrando-a ocasionalmente, vi-a correr para longe antes de poder deseja-la uma boa tarde?

Jo suspirou. Pois ele estava certo, é claro.

Ela mesma decidira que não havia risco real envolvido em manter uma amizade com Levi Holroyd, considerando o fato de que tudo que supostamente tornaria isso impossível – seus próprios arroubos de fantasia, os pensamentos impertinentes que estavam cada vez mais difíceis de controlar –  estava... Dentro de sua cabeça.

Mas parecia que sua cabeça estava começando a suplantar sua razão. E aquela era a última coisa que podia permitir que ocorresse. Considerando isto, talvez a atitude mais sensata fosse, afinal, afastar-se do médico...

Mas isso seria perder. Para si mesma. Para a própria incapacidade de manter aquelas emoções turbulentas e impertinentes contidas. E Jo não podia simplesmente aceitar que, após vinte e seis anos de vida, logo agora que sua vida estava novamente entrando nos eixos, ela começara a sentir-se e agir como uma garotinha imberbe.

Pensando nisso, ela ergueu o rosto para encarar o homem à sua frente.

— Me desculpe — disse.

— Você não me deve desculpas, senhorita Wright. — ele retrucou, baixinho. — Não me deve desculpas. Não me deve nada. Sugeri que trocássemos correspondência pois gosto de passar tempo em sua companhia, gosto de nossas conversas e nutri a egoísta expectativa de que você também sentisse o mesmo. Mas se não for assim...

— Ah, é assim. — Jo atalhou, interrompendo-o. — É sim, é mesmo. É só que...

Ophelia interrompeu-se, pois percebeu que naquele momento ela ganhara a oportunidade... De esclarecer as questões que a estavam perturbando, de saná-las de uma vez por todas e por fim poder seguir com sua vida e com sua pressuposta amizade com Levi Holroyd – ou não.

Ela poderia perguntar sobre Sarah Holroyd. No pior dos casos, seus arroubos de fantasia seriam cortados pela noção de que aquele homem era comprometido. No melhor, ela poderia seguir tendo uma relação amigável com dele, mantendo uma distância perfeitamente segura e adequada e reconquistando sua tranquilidade e paz de espírito.

Mas, por alguma razão, talvez o senso de que, afinal, os detalhes da vida pessoal da Levi Holroyd não eram de sua conta, talvez um desejo inconsciente de permanecer debaixo daquela incômoda dúvida, fez com que ela se limitasse a sorrir e concluir:

—... Andei bastante atarefada com a mudança para a Casa Beaumont e tudo o mais. Queria uma vez mais agradecê-lo, senhor...

— Levi. — o médico a interrompeu. — Acho que a disse que podia me chamar pelo nome, na livraria.

—... Levi. — Jo se corrigiu, sentindo-se um tanto estranha ao se referir a ele pelo primeiro nome. Dava uma falsa sensação de intimidade. Mas ela gostava do nome dele. Levi. Era um nome simples, sem afetação, que sugeria uma força de caráter que caía-lhe muito bem. — Obrigada, Levi, por ter me falado sobre essa oportunidade.

Ele balançou a cabeça, modesto.

— Você a conquistou de próprio mérito, senhorita Wright. — disse, abrindo um daqueles meio sorrisos. — Fico feliz em saber que conseguiu se restabelecer. A família Beaumont tem suas afetações como toda família nobre, mas são boas pessoas.

— São sim. — Jo estava bastante certa disso, embora tivesse passado muito pouco tempo com as pessoas mencionadas. Pelo pouco que vira, não tinha razões para discordar do médico.

— Está contente com a perspectiva de voltar a atuar como a melhor professora do mundo? — ele perguntou, e sua menção à conversa anterior deles arrancou um sorriso de Ophelia.

— Gosto de ensinar. — respondeu. — Sinto que faço algo útil com a minha vida.

Ele ergueu uma única sobrancelha.

— E antes disso não fazia nada útil?

A mente de Jo vagou pelos anos seguintes à morte de seu pai, e por uns instantes pensou que poderia chorar. Mas já fazia tempo que tinha derramado todas as lágrimas por aqueles dolorosos e desperdiçados anos. E jamais tinha lamentado a decisão que tomou, a de virar professora ao invés de correr para se refugiar na casa de parentes bem-intencionados.

Se tivesse que fazer tudo de novo, faria.

— Acredito que a independência seja algo maravilhoso para uma mulher. — Levi refletiu consigo mesmo.

— Não era feliz anos atrás. — Jo declarou. — Agora sou.

— Você é feliz? — Levi perguntou, olhando-a de uma forma que a deixou um tanto desconcertada. O clima tranquilo que tinha assentado-se ao redor deles de repente pareceu se densificar.

Aquela parecia ser uma pergunta importante.

— Agora sou.

— Não são todos que podem dizer isso.

— Você não é feliz, então?

O médico sorriu levemente.

— Sou um médico formado, um homem adulto e independente. — respondeu. — Meu presente e meu futuro são respeitáveis e seguros. Trabalho com o que sempre quis trabalhar, tenho bons amigos que são como família para mim. Por que eu não estaria feliz?

Ophelia fechou os olhos. Ele não percebera que tinha deixado a pergunta sem resposta? Você não é feliz, então? Depois de listar uma série de motivos para estar feliz, ele havia concluído com outra pergunta: Por que eu não estaria feliz?

Isso fez com que ela se lembrasse de uma linha de pensamento semelhante que andara nutrindo naquelas últimas semanas. Desde o Natal com Adelaide. Desde o primeiro de seus encontros  com Levi Holroyd, no Hyde Park. Percebeu que se reconhecia naquele gesto, naquela pergunta sem resposta direta, naquela dúvida. Aquele era certamente um pensamento horrivelmente ingrato, mas o fato de ser ingrato não o tornava menos real.

— Me perdoe. — murmurou. — Usei a palavra errada. Eu estou contente com minha vida. Estar contente é muito mais seguro que estar feliz. A felicidade é um extremo que implica no risco de outro extremo, a infelicidade. O contentamento está no meio disso. O que significa que ele significa paz, estabilidade.

Levi olhou-a por um instante. Parecia pensativo. Após um instante, questionou:

— E estabilidade é tudo o que pode querer?

— É tudo o que eu preciso. — Ophelia retrucou com firmeza, como se tentasse convencê-lo de sua certeza naquelas palavras... Ou talvez não fosse ele a pessoa quem tentava convencer. — Você não entende, senhor. Em minha posição... Não há nada mais precioso que isso.

Em seu terceiro encontro despropositado no Hyde Park, eles tinham admitido um ao outro se sentirem solitários, e tinham dito a verdade. Naquele dia, tinham declarado estar contentes com a vida que levavam...

E haviam mentido.

Ao menos, ela mentira. Por quê?

Uma única palavra flutuou por sua mente.

Medo.

Ophelia pensou no que tinham conversado então, naquela ocasião. Eu nem se quer sei o que é solidão, ela dissera a ele. Se não é literalmente ser uma pessoa solitária, o medo da solidão é então o medo de estar sozinho consigo mesmo? Se for, não sinto esse medo. Eu gosto de estar sozinha.

A resposta do médico fora uma pergunta.

Do que tem medo, então?

Afinal, do que ela tinha medo?

— Compreendo o apelo que a estabilidade tem. É tudo o que venho buscado nos últimos anos. — o médico disse. E ela acreditou nele. — Mas possui-la obrigatoriamente significa que não temos o direito de aspirar além dela? Esse pensamento não me parece certo.

— Isso é porque você é homem. — Jo retrucou.

O médico olhou-a por um instante, com atenção. Não parecia ofendido pela carga de acusação contida em suas palavras. Parecia, por sua vez, ponderar nelas.

— É um destino terrível, — ele refletiu, então. — nascer mulher.

A governanta quase deu risada diante daquilo. O som teria saído sem humor algum, contudo, se o tivesse deixado escapar.

— Pode ser. — Ophelia concordou. — Mas nós tendemos a nos acomodar a algo e a algum lugar melhor do que os homens. Somos mais propensas a aceitar nossa sorte e fazer o melhor possível com o que temos. Estamos menos propensas a perder tempo com hesitações, diferente de vocês. Homens ficam se indagando em que direção devem ir, o que devem fazer... Nós, mulheres, não.

Ela se recordou do momento em que decidira ser professora. Professora, não astrônoma. Pois nunca poderia frequentar uma universidade, afim de estudar a fundo e profissionalizar-se naquilo que verdadeiramente a interessava. Não fora uma decisão difícil de tomar. Sua escolha era bastante simples, pois só havia um caminho a se seguir; Aquele que era descomplicado, o mais óbvio, o que daria resultados mais rápidos e maior segurança...

Estabilidade.

— Sabemos o que devemos fazer, — concluiu. — não porque somos decididas. Mas porque não nos restam muitas escolhas.

Era simples assim.

— Sou feliz como estou agora. — Jo reforçou, quando pareceu que Levi não diria mais nada.

O médico se mantinha somente encarando-a, até então. Mas depois de suas últimas palavras, ele rapidamente emendou:

— Contente. — murmurou, baixinho. — Acabou de se corrigir, senhorita Wright, dizendo que está contente. Não é a mesma coisa. Me permite dizer algo?

— Acho que você dirá permitindo eu ou não.

— Está errada. — ele disse. — Se disser que não quer me ouvir, então não direi nada.

Sabendo que iria arrepender-se amargamente depois, Ophelia engoliu em seco e falou:

— Diga.

— Eu tenho a impressão, senhorita Wright, — o médico começou, com suavidade. — e esta é somente uma impressão, visto que não a conheço tão bem ainda... De que você não foi feita para estar contente. Me parece o tipo de mulher que foi feita para a mais gloriosa e apaixonada felicidade possível. Ah, e também para a infelicidade, é claro. Arrisco que a graça de viver está em aspirar a uma e aprender com a outra, embora nem sempre consigamos tirar aprendizados dos nossos sofrimentos, somente suportá-los.

Ophelia permaneceu em silêncio após aquele pequeno monólogo. Ela ficou ali, estática, absorvendo aquelas palavras, encarando aqueles olhos muito azuis – aqueles malditos olhos – e pensando... E pensando...

Que nunca tinha ouvido nada mais dolorosamente inalcançável, nem nada mais sedutor, que a ideia que elas carregavam.

— Creio que eu deva ir, agora. — Levi disse, então, quando ela não fez nada além de continuar encarando-o fixamente. — A senhorita deve ter trabalho a ser feito, e eu também o tenho. Boa tarde tarde, senhorita Wright. Espero que possamos nos ver de novo.

Assim, ele a deixou sozinha, com o redemoinho dentro da própria cabeça ameaçando transformar-se num furacão.

 

Escócia, 1812

 

Isabella não conseguia se lembrar a última vez em que tinha dormido decentemente.

A febre da excitação em que ela havia concebido toda esta grande aventura uma semana antes havia se convertido em uma forte ansiedade na noite anterior à partida. Ela tinha sido incapaz de dormir, exceto em trechos intermitentes acompanhados de sonhos bizarros. Na manhã em que deveriam partir, ela tinha sido consumida pelo terror, se questionando onde ela tinha se enfiado e como ela prosseguiria a partir dali.

Mas decidiu que não iria se corroer por isso. Ela tomara aquela decisão por um motivo, embora ainda não soubesse definir muito bem qual era - Pelo bem de Lorde Shawcross, ao tentar levá-lo para um lugar que o deixasse mais confortável e alegre do que Londres? Pelo próprio bem, ao se afastar da mesmice comoção da temporada londrina, que tanto a aborrecia? Ela definitivamente não planejara aquilo muito bem, mas agora era tarde para recuar.

Ainda assim, agora, sentada dentro de uma das carruagens que levava sua família, com Henrique e Pedro como companhia, ela não conseguia não se sentir com a língua presa e insegura. Quando Griffith propusera aquela viagem, ela soubera de imediato que não poderia simplesmente ir embora com ele. Afinal, sua família não permitiria que ela simplesmente partisse acompanhada por um cavalheiro semiconhecido por eles para o outro lado do país.

Por isso, Isabella precisara convencê-los a vir... Mas não imaginara que seus pais fossem convocar o clã espanhol em peso para ir junto. Dessa forma, além deles, Henrique e Pedro também estavam seguindo rumo à Escócia, assim como Carlos, Vivian, Philipp e mesmo Vovó. O fato não parecera incomodar o anfitrião, mas incomodara Isabella, pois tornara toda a coisa muito maior do que ela imaginara que seria.

Além disso, havia o simples fato de que eles não estavam indo para Gloucester ou para Bath, mas sim para as Terras Altas.

A viagem era longa, e tinha um curso consideravelmente mais longo devido a necessidade de Griffith de fazer paradas em estalagens mais recorrentes do que os viajantes comuns fariam. Eles paravam para tomar suas refeições e dormir, e era nesses breves momentos em que Isabella tinha um vislumbre de Griffith - mas ele não comia com eles, e obviamente ficava sozinho no próprio quarto, de modo que eles não passavam disso; vislumbres.

Nesses breves momentos, eles conseguiam trocar algumas palavras, mas poucas. Foi nesses momentos em que Isabella aprendeu mais algumas coisas sobre Griffith Shawcross. Por exemplo, ela aprendeu que viajar era uma das atividades mais difíceis para ele. Mas ele parecia conhecer o próprio corpo o suficiente para entender o quanto poderia exigir dele.

Por isso, eles estavam viajando em etapas curtas, levando quase o dobro do tempo normal para chegar onde estavam indo. Ela também teve uma pista de que talvez ele estivesse tão inseguro quanto ela. Talvez até tivesse se arrependido de seu convite impulsivo. Até o fim do primeiro dia de viagem, ele parecia não saber muito bem como manter um sorriso quando a via ou, pelo menos, um olhar de interesse no rosto enquanto trocavam breves palavras.

Ela geralmente perguntava como ele estava. Ele dizia que estava bem. Talvez comentassem algo sobre o tempo que restava para o fim da viagem. Talvez não. Então, se despediam e Griffith se recolhia ao quarto que reservara na hospedagem da vez.

O que Griffith não contava a Isabella, e o que ela ainda estava alheia, era que sempre que ele se recolhia após esses breves encontros, ele esperava cerca de vinte minutos no quarto até Isaac aparecer. Todas as vezes ele esperava, e todas as vezes Isaac chegava e, silenciosamente, tirava as botas dos pés do patrão, começando a massagear os músculos rígidos de suas pernas e apertando os nós de tensão até que a dor diminuísse um pouco. Ele sempre acabava precisando de láudano, de toda forma.

Isaac não permitia que bebesse conhaque, considerando que já ingeria álcool na maior parte das refeições que tomava.

— Ela sabe sobre isso? — o valete indagou, numa dessas ocasiões. Não precisou explicar a quem se referia.

— Bom Deus, não. — disse Griffith, esgotado. — Por que deveria saber?

Com o passar dos dias, eles pareceram começar a retomar a antiga dinâmica. Suas conversas se tornaram ligeiramente mais longas e mais determinadas. Isabella redescobriu o que já sabia - que Griffith era, na verdade, alguém fácil de se conversar, quando se determinava a fazer isso de maneira decente.

Ele sempre respondia às suas perguntas e, em seguida, ela própria perguntava, em resposta. Não monopolizava a conversa nem tampouco esperava que ela monopolizasse toda a conversa. Ele começou a falar sobre algumas lembranças vividas desde quando ele tinha se mudado para as Terras Altas. Ela começou a compartilhar mais algumas memórias sobre sua infância na Espanha. Também começaram a haver momentos em que eles simplesmente se cumprimentavam e ficavam em silêncio sociável, enquanto Isabella esperava o resto da família descer para comer e ele esperava o mesmo para subir para o próprio quarto.

 Fora esses momentos, passavam o tempo todo na estrada. O ritmo da viagem, assim como os dias dela, eram sutilmente diferentes, variando conforme o humor dele e, mais importante, a intensidade das dores.

Houve alguns dias - dias em que suas pernas queimavam de tanta dor, deixando-o devastado na cama das estalagens em que paravam - mais difíceis que outros. Em outros, ele não ficava acamado, mas Isabella percebia pela ridigez de seu maxilar que não queria falar com ela, nem com ninguém.

Mas, nos bons dias, Isaac - o valete de Griffith - conseguia levá-lo várias vezes para o lado de fora, para o sol da primavera. Isa sempre dava um jeito de escapar da visão de sua família e segui-los. O criado não parecera muito satisfeito na primeira vez em que ela tinha aparecido - ele certamente considerava tudo aquilo extremamente inadequado, e o era, de fato. Mas seu patrão não abriu a boca para dizer nada contra, de modo que ele aparentemente foi obrigado a aceitar e colaborar com aquela situação ilícita.

Ela já compreendera que uma das coisas que ele mais detestava era a pena que estranhos demonstravam, por isso convencia o valete a levá-lo para lugares mais isolados, o mais distante possível das estradas e da civilização, onde por uma hora mais ou menos, eles pudessem ser só os dois - E Isaac. Isa pegava algumas coisas na cozinha da estalagem onde estavam hospedados e ficavam no campo, aproveitando a brisa, observando o modo como a paisagem mudava à medida que se afastavam do mundo que conheciam e rumavam a um mundo diferente.

Era essa a impressão que Isabella tinha; De que aos poucos eles partiam do mundo que conheciam e seguiam para um outro. Ela sabia que as Terras Altas eram somente outro lado do território, mas tudo o que ela ouvira falar sobre o lugar sempre tinha-a feito enxergá-lo como um meio selvagem, misterioso e folclórico, muito diferente do que ela estava adaptada.

— Minha família está ansiosa para conhecer você. — Isabella disse, numa dessas ocasiões, quando tinham chegado na última parada que fariam antes de chegar a Stirling. Ela tirou sanduíches de queijo e picles de dentro de uma cesta que trouxera e entregou um a Griffith.

Enquanto os outros descansavam na hospedagem, ela tinha escapado depois de dizer que iria deitar um pouco para um cochilo. Quando Griffith estivera prestes a chamar Isaac, Isabella tinha dito para que ele deixasse o valete descansar. O pedido não parecera deixar Griffith escandalizado... Mas Isabella não pudera deixar de se sentir um pouco ilícita por estar fugindo escondido com um cavalheiro para longe da supervisão de outros.

Embora eles só estivessem indo para o outro lado da estrada, e embora aquele cavalheiro em particular fosse Griffith Shawcross; O terrível, ácido e arrepiante Lorde de Lannair. O pensamento não deixava de ser, de alguma forma, excitante.

Assim, ela mesma tinha empurrado a cadeira de Griffith para o outro lado da estrada, na direção de uma colina acima da qual podiam ver a estalagem e o outro lado do vale oposto, separado por campos cheios de ovelhas.

— Mas eles já me conhecem. — ele apontou.

— Eles já viram você nos momentos em que desceu da carruagem para nossas paradas, mas não tiveram a chance de conhecê-lo, já que você fica trancado no quarto e só sai para voltar a carruagem.

— Isso foi uma reprimenda?

— Talvez.

Ele pareceu pensativo.

— Por que querem me conhecer?

— Querem saber que sujeito é esse que passou tanto tempo com a filha deles na casa de Francesca e então os convidou para o outro lado do país no meio do auge da temporada londrina.

Estranhamente, Griffith pareceu achar a ideia animadora.

— Os Ortiz.

— Meus pais estão bem curiosos sobre você.

— Fico nervoso quando uma dama quer que eu conheça os pais dela. — Griffith estremeceu dramaticamente. — Como está sua mãe? Pelo que você me disse, imagino que ela não tenha ficado feliz em ter de partir de Londres.

— Não muito. — Isa deu de ombros. — Mas Fran me ajudou a convencê-la.

— Imagino que tática infalível ela tenha bolado para tal.

— Você não vai querer saber. — a espanhola garantiu, e então se sentiu meio constrangida. Nada, no céu ou na terra, convenceria a mãe dela a partir de Londres em meio a temporada, a não ser...

A esperança de que sua filha talvez tivesse capturado o interesse de algum cavalheiro. Isabel parecera surpresa em saber que este cavalheiro era supostamente Lorde Lannair, e até mesmo receosa de encorajar o suposto cortejo... Mas, no fim, talvez o desespero tivesse convencido-a. Ao menos Isabella se interessara por alguém.

Supostamente.

Afinal, era tudo mentira. Mas Isa convenceu-se de que era uma mentira boa, com boas intenções. O que não mudava o fato de que admiti-la a Griffith seria... Bom. No mínimo, constrangedor. Por isso, ao invés de respondê-lo com toda a verdade, ela ofereceu a ele uma meia-verdade:

 — Eu tive de jurar a ela que voltaríamos a tempo de pegar os eventos finais da temporada, e jurar que participaria de cada um deles. De todo modo, eles me perguntaram se teríamos a chance de jantar juntos em Stirling. Mas, tudo bem, eu disse a eles que você não iria querer.

— Quem disse que eu não quero?

Isabella começou a listar nos dedos da mão:

— Você detesta pessoas de modo geral. Não gosta de se movimentar na frente dos outros. E não gosta da minha família. Não me pareceu uma questão difícil de responder.

Ela fizera de propósito. Outra coisa que ela descobrira era que a melhor maneira de convencer Griffith Shawcross a fazer algo era dizer a ele que sabia que ele nunca a faria. O lado dele que era do contra, obstinado e teimoso não suportava um desafio daqueles.

Ele ponderou por um instante.

—  Não. É claro que jantarei com sua família. Fui eu quem os convidei, afinal. Seria deselegante não entretê-los. Isso pelo menos sanará a curiosidade de seus pais, se não servir para mais nada. E eu nunca disse que não gostava deles, de onde você tirou isso?

— Griffith. — Isabella disse, muito solenemente. — Você é a pessoa mais aversa a agitação e ruído que eu conheço, e minha família é o grupo mais agitado e barulhento do mundo.

— Não me importo. Eu tolero você, não tolero? Não deve ser tão ruim assim.

— Mesmo? — Isabella perguntou, surpresa. — Oh, céus, se eu contar, minha mãe começará a pensar no que irá vestir e em como arrumará o cabelo hoje mesmo.

— Tem certeza que você não é adotada? — indagou Griffith. —  Não devia haver alguma semelhança entre vocês duas? Me passe outro sanduíche, por favor, Isabella. Eu estou com fome.

A piada tinha sido apenas meio exagerada.

Mamá entrou em parafuso só em pensar no que usaria no jantar de um Conde que era rico o suficiente para ter um castelo na Escócia – e uma mansão em Gales. Suas mãos voaram para o rosto e ela começou a passá-las pelo cabelo, como se Griffith fosse entrar a qualquer momento pela porta do quarto.

— Eu não sei se trouxe a roupa certa para isso, — ela disse. — ah, seu pai ficou tão apressado para partir que não me preparei. O que se usa na Escócia? E se eu não tiver trazido nada adequado? Precisa ser xadrez? E seu pai, ele precisa usar um kilt?

— Não precisa se preocupar com esses detalhes, Mamá. — Bella tentou tranquizilá-la. — Lorde Lannair apenas mora na Escócia, mas é tão escocês quanto nós somos ingleses.

— E sobre a comida? O que se come na Escócia? Meu estômago anda sensível devido a viagem e...

— Calma, Mamá. Escoceses comem comida de gente normal.

Isabella não sabia disso. Mas as coisas não podiam ser tão diferentes, podiam? A Escócia não era outro universo, afinal. Só outro território.

E assim ficou acordado. Eles alcançaram Stirling na metade daquela tarde - por fim, após quase uma semana de viagem. O castelo era por si só admirável. Uma fortaleza clássica, com torres altas que se estendiam para cima e para cima até onde a vista alcançava, mantida em bom estado de conservação. Isabella supôs que deveriam haver muitas escadas. Como Griffith lidava com elas? Achava que logo descobriria.

O salão de entrada era amplo, imponente e medieval. Havia uma lareira imensa do lado oposto às portas da frente e, em frente a ela se estendendo por quase todo o saguão, uma grande mesa de carvalho cercada por cadeiras. O teto era sustentado por vigas de carvalho. As paredes eram da pedra nua que compunha o castelo, e tinham estandartes, brasões e armas pendurados.

Em um dos lados havia um intricado painel esculpido em madeira com uma galeria de menestréis acima. Na outra extremidade, uma escadaria ampla levava ao andar de cima. Nos outros aposentos, as paredes eram cobertas de tapeçarias antigas que retratavam cenários históricos e folclóricos da Escócia, cenários que Isabella desconhecia.

Mas isso não era o mais impressionante na propriedade. O que mais chamou a atenção de Isabella foi a terra ao redor do Castelo. Uma faixa de terra ampla que se estendia dos dois lados de um grande lago. Havia espaço o suficiente naquele vale para construir casas, plantar alimentos e abrigar outras várias famílias. Mas, no momento, ele se encontrava vazio.

Sua vastidão era impressionante mas, ao mesmo tempo, fazia Isabella sentir-se terrivelmente solitária. Ela pensou se Griffith não sentia este mesmo efeito. O frio que fazia ali, mesmo que estivessem no ápice da primavera, também não colaborava muito. Ao invés de bloqueá-lo, as paredes de rocha pareciam perpetuar o frio dentro da fortaleza.

Bella precisou usar um dos poucos vestidos de lã que tinha para jantar e, ainda assim, quando desceu, ficou aliviada pela lareira do saguão estar ardendo forte. Quando ela entrou no salão, Griffith já estava lá em sua cadeira de rodas. O valete, Isaac, estava a seu lado. O Conde se esforçara em pentear o cabelo. Ele também usava uma casaca azul que Bella nunca o vira usando. Deveria ser nova.

A espanhola não sabia se ficava satisfeita com o esforço que ele fizera ou preocupada porque Mamá certamente iria passar todo o jantar atormentando-se por supostamente não ter se vestido adequadamente.

— Olá. — Bella acenou.

Papá surgiu atrás dela.

— Arrá. Estamos atrasados, milorde?

Ele tinha passado a tarde inteira repetindo sobre a importância de não deixarem seu anfitrião esperando, de modo que todos - incluindo Henrique, Pedro, Carlos, Vivian e até a vovó - tinham sido forçados a se preparar com uma hora de antecedência e esperar até que a hora do jantar chegasse em seus quartos.

Seu pai não era tão obcecado com sua posição na sociedade inglesa quanto sua mãe. Mas, naquela ocasião, ele parecia bem nervoso. Provavelmente Mamá enchera seus ouvidos com as próprias preocupações.

Isaac empurrou a cadeira de Griffith até encaixá-la na extremidade da mesa, canto reservado ao proprietário da terra e anfitrião.

— Nem um pouco. — O Conde disse. — Já vi ingleses bem menos pontuais.

— Ruan Ortiz. — Papá estendeu a mão para Griffith. Então retirou-a, num ataque súbito de constrangimento. —  Ruan. Desculpe, hum... Como eu deveria cumprimentar um...? Minha esposa é muito melhor nas convenções sociais aristocráticas que eu... —  ele gaguejou ligeiramente.

— Beijar meus pés será o suficiente. — Griffith respondeu, ironicamente.

Papá parou um momento mas, ao notar que aquilo fora uma brincadeira, riu com evidente alívio.

— Ah! Beijar os pés. Essa foi boa. Ah!

Isso quebrou um pouco o gelo. Isaac pediu licença e se retirou, deixando seu patrão por conta própria. Mamá tomou a frente, então, e fez uma pequena reverência. Griffith então estendeu a mão e, surpresa, ela entregou-lhe a própria, que ele levou aos lábios levemente.

Ela só esqueceu de tirar as luvas que seda que colocara.

— Perdão. — disse ela. — É que está tão frio... Ah, não quis dizer que sua casa é fria, milorde, somente...

—Está mesmo um clima gelado. —  respondeu Griffith. — Fique à vontade, senhora. A Escócia pode ser um lugar frio, mesmo na primavera, mas espero que o calor de meu lar seja suficiente para deixá-los confortáveis.

Todos se sentaram, então. Griffith convidou Papá a se sentar à sua direita, um lugar de honra, enquanto ofereceu o outro assento à esquerda a Isa. Seguido dela vinha Mamá com Vivian e o pequeno Philip, enquanto ao lado de Papá ficaram Carlos, Pedro e Henrique.

— Então... — Papá comentou. — Como faremos isso? Aqui na Escócia a bebida também é servida antes da comida?

— Ruan! — Mamá exclamou, horrorizada.

Griffith sorriu.

— Sim, é. Mas não costumamos tomar vinho. A Escócia prefere uísque, e eu também. Seria de seu gosto, senhor Ortiz?

Isabella não conhecia ninguém que apreciasse tanto boa bebida quanto seu pai.

— Ruan, por favor. E uísque está ótimo, obrigado.

Ele deu um gole e Isabella ficou o encarando, subitamente se dando conta de quão deslocada sua família parecia naquele lugar. Stirling tinha certa imponência talvez implicada pela sua idade e história, era elegantemente mobiliada, com móveis esparsos e bonitos, embora antigos.

Mesmo Griffith parecia fazer parte daquele cenário; ele não usava um kilt, o que talvez tenha deixado Isabella um tantinho desapontada, mas em seu peito havia uma espécie de faixa cruzando-o. Era uma medida de tecido xadrez vermelho e verde, pendurada em um ombro e descendo até o quadril oposto. Algo brilhante prendia as duas pontas da faixa. Um broche, talvez.

Sua família, no entanto, parecia uma apresentação de circo de excentricidades: enquanto Isa vestia lã, Mamá escolhera seda, uma cor vibrante que se destacava em meio ao cenário macambúzio do castelo, Papá esquecera sua casaca e Pedro parecia não ter penteado o cabelo muito bem. Philip trouxera um pedaço de papel para o jantar, onde rabiscava, os cotovelos apoiados na beirada.

Mas, se reparou qualquer desses desalinhos, Griffith não comentou. Ele e Papá descobriram logo um interesse em comum: A completa incapacidade de Isabella de conter as próprias emoções. Pela primeira vez, Isa não se importou em ser alvo de chacota. Isso claramente fez os dois felizes.

— Você sabia que uma vez, quando criança, ela chorou por duas horas inteiras, em bom e pleno som, pois eu neguei-a dar um gato de estimação?

—  O senhor precisava ver quando nos conhecemos. Gritou comigo no jardim de Lady Florence Haylock. Parecia que eu estava de frente a minha mãe.

Papá morreu de rir. Mamá não ficou muito feliz em descobrir que sua filha gritara com um Conde. Imagine se ela soubesse que isso acontecera não uma, mas duas vezes. Ou haviam sido três? Por sorte, ela estava preocupada demais com a própria aparência para dar um piti sobre aquilo no momento.

— Mamá. Você está ótima. — Isa garantiu.

Esperou que ela se virasse para olhá-la, então passou os braços em volta dela, lhe dando um breve abraço. Ela estava rígida de tensão. Isabella sentiu uma repentina onda de afeto por ela. Podiam ter suas diferenças, mas ela a amava. Além disso, não parecia fácil ser Mamá.

Ela desvencilhou-se do abraço, provavelmente pois aquele não fora o momento mais adequado para uma demonstração daquelas, mas apertou uma das mãos de Isabella por debaixo da mesa em resposta.

Griffith inclinou-se ligeiramente na direção de Isa.

— Trouxe algo para as damas.

Isabella olhou para o lado. Um servo trouxe uma garrafa de cidra.

— Uísque não parece agradar muito às mulheres. —  ele disse.

— Ah, — Mamá exclamou.— que atencioso de sua parte, milorde!

— Deixe que eu abro. — Carlos pegou a garrafa, retirou a liga de metal e posicionou seus dedos embaixo da rolha. Desde que o jantar começara, ele encarava fixamente Griffith, como se ele não fosse quem ele esperava.

— Os servos farão isso, Charles, querido... — Vivian começou.

— Se fizer assim, — O Conde interrompeu-a, olhando Carlos. — a cidra espirrará em cima do cabelo da senhora Vivian. Segure a rolha e gire a garrafa. Será mais seguro.

— Eis um homem que conhece sua bebida! — Papá exclamou, satisfeito.

— Eu sei. — Carlos disse. —  Era o que pretendia fazer.

A cidra foi servida aqueles que tinham recusado o uísque. Ao menos, ninguém teve o disparate de se levantar para brindar, visto que o anfitrião em si não podia fazê-lo.

— Somos muito gratos a você, milorde, —  disse Mamá. — por ter nos convidado.

— Sou eu quem agradeço. — Griffith respondeu, então olhou de relance para Isa.

— Ao Conde de Lannair — Papá disse. — E à longa e feliz vida que ainda o espera.

— E a sua grande gentileza. —  Mamá acrescentou.

—  Puxa, — Griffith disse. — se soubesse que seria tão bajulado, teria trazido convidados a Stirling antes.

Todos deram risada, então voltaram a conversar. Papá começou a contar alguma outra história sobre a infância de Isabella e dos outros filhos, o que fez com que ele e Mamá rissem. Foi bom vê-los sorrir. Naquelas últimas semanas, Papá parecia bastante esgotado - ele costumava ficar assim naquela época do ano, graças a agitação da temporada e consequente instabilidade nos negócios. Mamá também estivera distraída, de olhos fundos, como se sempre estivesse em outro lugar.

Isabella quis aproveitar ao máximo aquele momento. Vê-los esquecer um pouco aquilo que os preocupava, com piadas entre si e sentimento de união familiar. A espanhola quis muito intensamente, por um momento, que Francesca e Hartfield também estivessem lá. Então a família estaria completa, como era para ser.

Estava tão perdida em pensamentos que levou um instante para notar a expressão no rosto de Carlos. Estava rindo da tentativa desajeitada de Griffith tentar falar espanhol com Vovó, rindo tanto que em determinado momento viu-se apoiando-se nas costas da cadeira de rodas dele, ou então achava que cairia para o lado. Ela só percebeu a familiaridade do gesto quando viu o choque no rosto de Carlos.

Griffith voltou-se então para Papá e Isabella encarou o irmão mais velho, querendo que ele parasse de encará-los daquele modo. Perto dele, vovó comia com muito gosto o ensopado de carne de cervo que tinha sido servido, emitindo pequenos gemidos e suspiros de prazer.

— Uma carne deliciosa — disse Mamá para Griffith. — nunca tinha experimentado. Um sabor ótimo, realmente.

— Bom, isso não é algo que comamos todo dia por aqui. Cervos são difíceis de caçar. — respondeu Griffith. — Mas pedi ao cozinheiro algo diferente hoje, já que tinha convidados. O garoto dos estábulos também é um exímio caçador, e assim aqui estamos.

Por fim, Carlos captou o olhar bravo de Isabella e desviou os olhos. Parecia consternado.

Um belo porco assado foi servido depois do ensopado de cervo. Àquela altura do jantar, os sorrisos de Griffith estavam vindo menos a seu rosto, e sua pele parecia mais pálida. Ele estava sentindo dor. Isabella sabia disso e se inclinou levemente em sua direção:

— Não prefere voltar ao seu quarto? — perguntou, baixinho.

— Eu estou bem, Isabella. — ele retrucou.

— Mas seu rosto...

Eu estou bem. — ele reiterou, firmemente. Então, após um instante de hesitação, acrescentou: — Agradeço a preocupação.

O jantar seguiu, apesar das preocupações de Isabella. Ficou evidente que os pais dela ficaram completamente encantados com Griffith. Pedro e Henrique também não pareceram nutrir uma má opinião sobre ele. Vovó o chamou de “bom garoto”, em espanhol, em determinado momento. Isabella pegou até mesmo Vivian sorrindo para o anfitrião uma ou duas vezes. Carlos, não.

Papá perguntou de tudo para Griffith: sobre a vida que tinha antes do incidente que imobilizara suas pernas e até como fora o incidente; Griffith parecia estar à vontade o suficiente para respondê-los sem rodeios. Na verdade, Isa acabou descobrindo coisas sobre ele que não sabia. Ele não nascera herdeiro de um Condado, por exemplo.

Embora seu pai tivesse sido um cavalheiro por nascimento, ele vivera uma vida humilde, como um professor no vilarejo de Heybridge. Ele gostava particularmente de lecionar história - daí vira a ideia para o nome excêntrico do filho, a Escócia e sua cultura sempre interessara muito o pai Shawcross. Griffith deu bastante detalhes sobre ele - um homem atraente, charmoso, carismático e inteligente, sempre alimentando a esperança de ganhar riqueza incalculável e que tinha nos lábios a frase “um dia meu navio chegará, Grifo”.

Aquele navio nunca chegara, de fato, e ele vivera até seu último ano de vida como um homem pobre. Educara o filho decentemente, para que fosse capaz de ler, escrever e fazer contas suficientemente bem para entender que os exíguos e precários recursos financeiros da família jamais permitiriam que vivessem com estabilidade.

Então, um dia, pegara uma febre de chuva e duas semanas depois estava morto.

— Ele sobreviveu a varíola quando menino. — Griffith contou. — Embora tenha se recuperado da doença, acho que ela o enfraqueceu. Suponho que tenha sido por isso que ele morreu tão jovem.

Ele e sua mãe tinham se virado por dois anos após o ocorrido. Sua mãe começara a trabalhar na casa de uma família abastada que vivia próxima a Heybridge, e o próprio Griffith começara a fazer pequenos serviços aqui e acolá. Mas, certo dia, eles tinham recebido a visita do Conde de Lannair, primo de seu pai. Os dois homens tinham crescido juntos como irmãos, mas devido ao afastamento do primo mais novo após a chegada da vida adulta, o Conde só ficara sabendo recentemente do que lhe ocorrera, e quisera descobrir o que se dera de sua família.

Griffith aproveitara o ensejo da repentina gentileza daquele familiar desconhecido e tinha pedido a ele que conseguisse um posto para ele no exército. O soldo não era muito, mas seria o suficiente para manter sua mãe enquanto a família juntava os cacos e buscava uma nova maneira de viver sem o pai por perto. Além disso, o garoto sempre sonhara secretamente em se tornar um soldado no futuro, de modo que enfim podia unir o útil ao agradável.

Quando ele retornara da Península, após seu incidente, o Conde, talvez compadecido da incrível má sorte que abatera a família, primeiro com o falecimento do primo, depois com a invalidez de seu filho, se dispusera a bancar os cuidados médicos que ele precisaria, e assim ele partira para o Chalé em Bath onde passara dois anos de sua vida ao lado de Levi Holroyd, Aiden Gillingham e William Hayes, recuperando-se.

Sua liberação do hospital fora precedida por uma tragédia sem proporções em sua família; um acidente de carruagem que tinha tirado a vida do primo de seu pai e dos três filhos dele, deixando para trás um sentimento intenso de amargor e injustiça...

E o título de Conde de Lannair a ser herdado pelo próximo homem na linhagem da família.

Isabella pensou no jovem Griffith Shawcross, ferido e repentinamente dono de tanto poder, de tanto dinheiro. O título certamente lhe dera muito conforto, mas não parecia fazê-lo feliz. Ele não parecia o tipo de homem que gozava de suas riquezas, nem conseguia satisfação nelas.

Ele provavelmente nunca quisera todo aquele dinheiro e influência. Tinha dito que a única coisa que verdadeiramente desejara, após seu incidente, fora Ty Gwyn. E, agora, embora a possuísse, ele jamais poderia desfrutar dela como sonhara.

Quando o jantar acabou, Griffith parecia aliviado em poder novamente retornar ao próprio quarto.

— O jantar foi adorável, milorde. — Mamá disse.

— Fico feliz que tenham gostado. — o Conde retrucou, e parecia sincero.

Em seguida Papá contou alguma piada e riu alto dela. O uísque o tinha deixado muitíssimo feliz. Isabella aproveitou a algazarra para aproximar-se discretamente dele.

—  Não consigo nem dizer o quanto gostei. —  falou, sorrindo. —  Obrigada. Obrigada mesmo. — esticou o braço e tocou atrás de um dos ombros dele. — Mesmo.

— Vá dormir. — Griffith respondeu. — Você deve estar cansada da viagem.

Todos se retiraram para os próprios quartos numa algazarra. Papá, que estava bêbado, continuou agradecendo ao Conde pelo convite e o fez prometer que iria visitá-los no interior quando a temporada passasse.  

— Talvez possamos sair para pescar. Há um belo lago onde nossa casa fica. —  falou.

— Eu adoraria. —  Griffith respondeu, embora Isabella nunca o tivesse mencionado qualquer interesse em pesca antes.

Que cavalheiro, Papá e Mamá diziam repetidamente mais de uma hora depois de todos terem se recolhido, um verdadeiro cavalheiro. A própria Isabella se recolheu em sua cama sorrindo, e foi assim que adormeceu naquela noite, exausta e feliz como não se sentia em muito tempo.


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