1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 2
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Cá estou eu novamente! Dessa vez com o que deveria ser um teaser, mas acabou se tornando um capítulo oficial realmente ( a autora que não consegue se controlar, haha ). As ideias para esse capítulo já estavam elaboradas, e como tive certo tempo livre ( que não terei nos próximos tempos, suponho ) decidi escrevê-lo de já. Esse é um capítulo feito para introduzir algumas coisas sobre nossos rapazes - e dar mais um gostinho sobre o que esperam suas personagens, enquanto esperamos o finalizar das fichas. Por ser introdução, não teve muito movimento, mas quando as personagens começarem a aparecer, a movimentação também vai! Não teremos tantas narrações deles quanto das chars durante a história, é claro, então decidi aproveitar esse tempinho do prazo para explorar um pouco a mente deles. Nesse em específico, quis mostrar um pouco mais sobre dois deles, e no próximo capítulo farei algo semelhante com os outros dois
Boa leitura!



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Londres, 1812

 

Há um grau de cansaço em que a exaustão consome o indivíduo até os ossos, e que passa longe da simples sensação de sonolência.

Aiden havia chegado a este ponto quando sua carruagem parara diante do Castelo de Stirling, no comecinho daquela semana. Chegara cedo numa manhã fria, de modo que quando pusera os pés para fora do veículo, não havia sinal de movimentação nas janelas, além das usuais sombras dos criados zanzando pelos corredores no proceder de seus afazeres. O proprietário e seus convidados provavelmente ainda permaneciam em suas camas, descansados e aquecidos. Naquela ocasião ele, particularmente, não conseguia se lembrar da última vez em que tinha dormido, embora tivesse parado em mais de uma estalagem no caminho e, com certeza, tivesse se deitado em pelo menos uma delas. Lembrava-se de ter tirado as botas e desejar ter trazido seu valete.

Não só o percurso que percorrera como todos os dias anteriores eram como um borrão em sua mente. Ele havia agido, tomado decisões e falado durante aquele período, mas parecia que não o tinha protagonizado de fato; parecia que somente tinha assistido aos acontecimentos de longe, reagindo a eles, e não realmente participando de seu desenrolar. Recebera uma carta da avó quando ainda em Londres. Quando respondeu ao seu chamado, ainda faltavam três dias até a manhã em que deveria partir para a Escócia afim de encontrar com seu grupo.

Seu grupo. Estranhamente, nunca pensava naqueles seus companheiros como amigos. Aquele parecia um termo muito supérfluo para defini-los. Aiden não era dado a grandes sentimentalismos, mas sabia que tinha um vínculo mais forte que laços de sangue com aqueles homens, algo que ia muito além da amizade.

O momento em que os reencontrava, todos os anos, era sempre o momento mais feliz do ano de Aiden. Embora ele sempre tivesse à disposição inúmeras distrações com as quais se ocupar, principalmente quando estava em Londres. Essa era a razão pela qual sempre optava retornar para a cidade quando partia da Escócia. Ela oferecia a possibilidade de alguma distração, embora ele não tivesse grandes perspectivas de se divertir. Sem dúvida, visitaria os mesmos lugares de sempre, com a mesma falta de propósito de sempre. Talvez naquele ano fosse ligeiramente diferente, visto que agora tinha uma cadeira na Câmara dos Lordes - uma cadeira que era obrigado a comparecer e honrar, não importava que não nutrisse e nunca houvesse nutrido qualquer interesse nela.

Seu avô estava morto. E agora ele era o Duque de Barclay.

Quando sua avó o convocara, de algum modo ele soubera de imediato que aquela era a razão. Fazia quase dois anos desde a última vez em que pisara em Kenelston, a propriedade campestre onde o duque se estabelecera em sua última década, mas recordava-se vagamente de ter achado o avô um pouco mais velho do que antes. Ainda que não menos enérgico. E, decididamente, não menos autoritário.

Era só uma questão de tempo. E o tempo havia chegado, talvez bem antes do que Aiden esperava – ou desejava. Ele havia se comportado bem. Se esforçara para manter o ambiente sob domínio, muito mais pela avó que pelo homem moribundo. Sua avó, que sempre parecera um passarinho, mas que se tornara mais frágil durante aqueles dias: corajosa, altiva e perdida. Ela enfrentara tudo com muita bravura, embora, ao fim do processo, não parecesse em nada com a mulher que o recebera no dia em que ele chegara a Kenelston. Mas com uma versão muito mais esmaecida daquela mulher.

E ao invés de permanecer a seu lado como certamente deveria ter feito, quando o funeral pomposo do duque fora finalizado, ele simplesmente havia ido embora. Havia fugido, como o covarde que era. Como um animal em busca de seu refúgio diante de um incêndio que gradativamente se alastrava na floresta em que vivia. Mas ele só conseguira fugir do fogo por um pouco. Agora, não havia mais qualquer rota de fuga. Era seu dever, ainda que não seu desejo, voltar-se para as chamas e encará-las frente a frente.

Durante a viagem de ida incansável até a Escócia, Aiden sabia que, se desejasse chorar, aquele era o momento. Quando alcançasse as Terras Altas, já teria conseguido enxugar os estragos causados pelas lágrimas em seu rosto. Mas não houvera nenhuma lágrima, é claro. Aiden não chorava. E jamais o faria pelo avô. No lugar, houvera uma latência contínua e extremamente familiar. Um espaço vazio onde deveria habitar a tristeza ou mesmo talvez alguma dose de satisfação. Qualquer coisa estaria bom.

Mas não houvera nada; apenas uma pontada dolorosa de desespero reavivada por esta constatação. Aiden sentia dor pela avó que sofria. Sentiu dor mesmo quando estivera na companhia de seu grupo, quando tentara desesperadamente ignorar os recentes acontecimentos de sua vida e concentrar-se na alegria que a presença deles lhe trazia. Sentia dor naquele momento, por si mesmo e por tudo que havia de errado e que era tarde demais para corrigir, agora que o duque estava morto. Dor pela perda da inocência, pela frieza moldada pelo ressentimento e pelo idealismo perigoso.

Ah, como seria fácil se permitir voltar aqueles primeiros dias de sua recuperação, em que questionava-se quem havia se tornado, questionava-se se algum dia poderia retornar ou, ao menos, encontrar alguma forma de felicidade, mesmo que tudo apontasse na direção contrária. Permitir que a vergonha e o ressentimento se transformassem em frustração, a frustração em remorso, o remorso em melancolia, depois em autopiedade, daí em ojeriza a si mesmo, até que...

Acreditara já ter aprendido a lidar com o pior.

O duque não tivera irmãos, apenas um filho falecido e um único neto vivo. A não ser que caçassem por gerações muito passadas e procurassem um ramo mais frutífero da árvore genealógica, havia na família uma notável escassez de herdeiros para o ducado. Aiden, era, na verdade, o único. E não tinha filhos. Ou filhas.

Nem esposa.

Fora o que a avó tinha o lembrado em Kenelston. Ele não poderia providenciar herdeiros - ao menos, não legítimos - se não arranjasse primeiro uma esposa jovem e fértil e então cumprisse com aquela que era sua principal responsabilidade no momento. Ele a prometera que faria isso. E era esta a promessa a causa para a inquietação anormal, beirando a depressão, que tomava dele durante a viagem para Londres.

Tentou lembrar-se de que não estava sozinho, de modo que não estava em seu direito afundar-se de tal forma em suas próprias problemáticas. Griffith estava com ele. E ele jamais saía de seu lar isolado na Escócia. A última vez que tinha feito isso havia sido quando ainda estava inteiro, em suas próprias palavras. Aiden de modo algum podia culpá-lo. Certamente aquela seria uma experiência extremamente desagradável para Griffith.

 Mas após as palavras de Levi naquela última noite ele insistira em dizer que ficaria alguns dias na cidade, em companhia à Aiden. E, claro, ninguém o dissuadira do contrário. Nenhum deles cometeria o erro de demonstrar qualquer indício de compaixão ou pena um pelo outro. Em contrapartida, Aiden refletia que talvez, com sorte, eles pudessem realmente se encontrar uma outra vez com os outros dois integrantes de seu seleto quarteto.

Aquilo seria agradável. Embora não pudesse mudar a iminente missão a qual Aiden deveria cumprir, de preferência ainda naquela primavera. Dentro de algumas semanas toda a nata da sociedade teria se deslocado para Londres, para as sessões do Parlamento e o frenesi dos acontecimentos sociais que divertiriam a todos com vigor implacável por alguns poucos meses.

Aiden provavelmente teria de participar de bailes, festas, concertos e afins. Não para aliviar seu tédio, mas para começar sua busca. Quando sua mãe soubesse que estava na cidade, certamente o convidaria para algum evento que organizaria e, conhecendo-a, aguardaria que o filho já tivesse alguma espécie de lista pronta. Ou ao menos iniciada.

Não sabia bem onde Griffith se encaixaria nesse meio. Se esforçaria para passar algum tempo com ele, embora soubesse que ele não o cobraria de nada. Mas Aiden sentia que ele precisaria da companhia do companheiro, se desejasse sobreviver à temporada vindoura. De qualquer modo, permitiria que o amigo escolhesse onde desejaria se enfiar ou não.

A última coisa que desejava era arrastá-lo para o mesmo poço em que se afogava.

— Acredito que nossa última parada está se aproximando. — o rapaz disse, enquanto mantinha os olhos fixos na janela da carruagem.

Durante os três dias de viagem que tinham enfrentado, trancados dentro da mesma carruagem, haviam ficado quase que em completo silêncio. Não que isso houvesse sido desconfortável. Embora Aiden soubesse manter uma conversa educada, ele não era do tipo de emitir ruídos apenas afim de preencher o silêncio. E Griffith também não. De modo que conseguiam permanecer calados de maneira confortável, sem criar aquela sensação incômoda de dever dizer algo mesmo quando não se queria falar nada.

Suas bagagens iam no veículo atrás deles e, há um dia de distância, estavam William e Levi. William disse que levaria Levi até sua residência em Londres e então partiria para a própria casa em seguida. Como as coisas de Aiden e Grifo já estavam todas perfeitamente empacotadas, haviam partido com antecedência.

— É. — Aiden concordou. — É um pouco cedo para a troca de cavalos, mas parece que vai cair um dilúvio a qualquer momento. O melhor é que paremos mais cedo. Mas com sorte, ainda amanhã estaremos em Londres.

 Griffith parecia ansioso para que alcançassem a estalagem. Aiden supunha que ele deveria estar extremamente desconfortável, mais desconfortável do que naturalmente já se ficava ao passar horas sentado no banco sacolejante de uma carruagem. Não tinha jeito; mesmo o mais caro forro era incapaz de tornar aqueles assentos agradáveis. E Griffith ainda tinha um outro ponto negativo a seu favor.

Levi havia dito, certa vez, que ele sempre estava com algum nível de dor ou desconforto. Estivesse sentado, em pé ou deitado, não importava. À noite, quando a temperatura caía, Griffith sempre precisava consumir uma dose de láudano para conseguir dormir. E, mesmo assim, sempre despertava dolorido e imerso na névoa mental que a substância desagradável causava. De modo que permanecia preso à cama até que seu criado chegasse e o ajudasse a se lavar e se trocar.

Aiden ás vezes duvidava que seria capaz de suportar a vida que Griff suportava.

— Amém. — o jovem Conde disse, solenemente. Então suspirou, surpreendendo-o quando voltou os olhos muito escuros na sua direção: — Já tem algum evento em mente ao qual vá comparecer?

— Não. Preciso primeiro conferir quais convites me foram feitos. Já devem ter alguns em cima da minha mesa, a essa altura.

— Os dragões ambiciosos já devem ter descoberto que você é o novo Duque de Barclay, e devem estar preparando suas crias para a sua ilustre chegada. — ele abriu um sorriso irônico. Falava das mães aristocratas, é claro, que durante toda temporada londrina pareciam imersas no dever desesperado de arranjar bons pares para suas filhas.

Aiden fez uma careta. Já estava no mercado matrimonial há algum tempo, embora ainda não fosse muito velho. Tinha vivido vinte e oito anos de sua vida fugindo de todas as possíveis armadilhas matrimoniais que lhe tinham sido arquitetadas. Algumas mães, bem como suas respectivas filhas, já tinham parado de cortejá-lo, todas presumindo corretamente que ele não estava interessado.

Era seu dever ter esposa e herdeiros. Mas já aprendera há muito que era ilusória a perspectiva de combinar felicidade pessoal e dever. Afinal, como um duque poderia escolher qualquer mulher para ser sua duquesa e esperar ter satisfação pessoal com o acordo? Quem se casaria com um duque pela pessoa que ele era?

De qualquer modo, Aiden não acreditava em felicidade, fosse a conjugal ou de qualquer outro tipo. Não para ele, ao menos. Esperava que um dia os amigos encontrassem isso, dentro ou fora de um casamento. Mas não podia esperar encontrar esta mesma felicidade, se quer o mesmo contentamento que eles.

Era incapacitado para o amor – incapaz de senti-lo, dá-lo a alguém ou mesmo desejá-lo. Sempre que dizia isso, seus companheiros o lembravam, com muita ênfase, que ele os amava – o que era verdade. Como Aiden amava sua avó. E sua mãe. E sua irmã. Mas a palavra amor abrangia uma gama tão vasta de emoções que era praticamente inútil em transmitir qualquer significado. Era um termo vazio. Aiden tinha vínculos profundos com algumas pessoas, mas sabia ser incapaz do amor, aquele algo especial que alimentava um bom casamento e que ás vezes até o tornava feliz.

— Me sinto tentado a frustrá-las. — foi o que respondeu, por fim.

— Eu posso ir a um ou outro evento desses com você, se isso fizer com que você pare de choramingar feito um moleque. — Griffith disse, suspirando alto, como se estivesse dizendo que sacrificaria sua própria cabeça em prol do bem do amigo.

 O duque franziu o cenho.

— Não precisa se sujeitar a essa tortura.

 O mais novo estalou a língua. Então seus olhos adquiriram um brilho perverso.

— Mas eu quero me sujeitar a ela, não vê? A humilhação de ter que socializar e comer em público é um preço muito pequeno a se pagar para ver você dançando com jovens debutantes intimidadas por sua incrível magnificência, meu caro Aiden. Ou então vê-las fugir da sua cara feia.

— Eu não vou dançar. — Aiden praticamente grunhiu em resposta.

O rapaz sacou uma de suas muletas, que estava repousada no chão a seus pés, apontando-a na direção de Aiden. A ponta dela quase tocava seu nariz.

— Ah, mas você vai. — ele falou, severamente. — Ou eu o abandonarei no meio de um concerto, sozinho, afim de que os dragões se banqueteiem com a sua carcaça.

Aiden agarrou a ponta da muleta e puxou-a com força, quase levando o corpo do dono dela junto. Obteve como resposta um xingamento... Que foi logo seguido por uma gargalhada, quando a carruagem sacudiu subitamente numa curva fechada, e ele não conseguiu segurar a tempo na alça da porta, de modo que quase colidiu com Griffith, que estava no banco da frente. Por sorte, o bater dos cascos sobre pedras, provavelmente na entrada da estalagem, encobriu o xingamento que ele proferiu.

Quando estava descendo os degraus do veículo minutos depois, no entanto, pegou-se querendo sorrir também.

 

 

A carruagem havia entrado em Londres quando Griffith se permitiu soltar um suspiro que carregava um misto de alívio e consternação.  

Ele odiava viagens, de qualquer tipo. Odiava o trabalho de preparar todos seus pertences, embora quem fizesse isso fosse seu valete, e não ele. Odiava como a maioria dos destinos eram distantes. Odiava saber que haveriam pessoas lá. E que ele teria de aturá-las. Mas nutria um desprezo especial por aquelas longas demais, em que era obrigado a permanecer confinado ao banco do veículo, sem a chance de movimentar-se afim de esticar as pernas ou a mente. Rá. Como se ele pudesse simplesmente erguer-se e se lançar para fora da janela, realizando o resto do percurso até Londres correndo. Só imaginar isso era o suficiente para trazer uma grande vontade de rir à tona - mas talvez, se pensasse demais sobre, ele acabasse chorando em meio à sua gargalhada.

Fazia muito tempo desde a última vez em que tinha estado na cidade. Em que havia estado em qualquer outro lugar que não fosse Stirling, na verdade. À medida que atravessavam as ruas de Mayfair, Griffith bebia com os olhos a visão estranha que era a profusão de cores e formas de Londres. Tantas pessoas concentradas num só lugar. Carruagens que simbolizavam distintos níveis de riqueza circulavam pela rua, assim como alguns cabriolés de onde cavalheiros e damas acenavam para os transeuntes abaixo. Estes transeuntes andavam pelas calçadas, entrando e saindo das construções opulentas que se estendiam dos dois lados da estrada. Ás vezes, paravam ocasionalmente para cumprimentar seus conhecidos com graciosidade e então seguir seu rumo.

O Conde se encolheu ligeiramente no próprio banco diante daquela visão. Se se encolhesse mais, com sorte conseguiria se fundir ao forro do assento e desaparecer. Talvez, afinal, não tivesse sido uma boa ideia ir até lá. Na verdade, desde o início ele sabia que não era, em todos os aspectos possíveis e consideráveis. Mas fora levado pela animação e, embora jamais fosse admitir aquilo em voz alta, principalmente por um senso infantil de provar que poderia enfrentar aquilo. Após quatro anos vivendo como um ermitão distante de qualquer vestígio de sociedade, ele queria provar que era capaz de adaptar-se perfeitamente a ela novamente. E talvez o fosse mesmo.

Mas o ponto era que não queria testar essa teoria.

Griffith não desejava viver naquele meio. Embora, para todos os fins, detivesse o honorável título de Conde de Lannair, e aquele meio fosse o que deveria pertencer. Mas ele não nascera ali; era filho de um professor pobre de um vilarejo em Somerset, não filho de um aristocrata. E só a ideia de ter de conhecer, conversar e principalmente se mover na frente do mar de desconhecidos que certamente o cercaria era o suficiente para deixá-lo aborrecido. Em sua mente era capaz de prever todas as situações que certamente se desenrolariam, cada uma pior que a outra. A velha problemática das escadas. A forma nada discreta como todos os olhares focavam-se nele enquanto acompanhavam seus movimentos desajeitados com as muletas. E o pior; os relances de pena que às vezes aqueles olhos carregavam e os cochichos que sempre se seguiam e que, por mais baixos que fossem, sempre chegavam a seus ouvidos.  

“Tão novo. É mesmo lamentável.”

“Se ao menos houvesse tido a chance de viver um pouco mais antes de...”

“O destino é mesmo uma coisa cruel.”

Era mesmo. Griffith sabia disso, talvez melhor do que ninguém. Assim como sabia de todas as outras afirmações óbvias que eram proferidas. Ele não precisava que as repetissem diante de si, mas era o que sempre faziam. E é claro que, na primeira vez em que decidira se retirar de seu casulo tão confortavelmente projetado, havia escolhido justamente o centro do frenesi social inglês. Havia uma excelente razão para que Griffith tivesse optado por viver aquém de toda a sociedade. Mas um ímpeto infantil fora o suficiente para convencê-lo a recuar, mesmo que momentaneamente, em seu posicionamento.

Tentou convencer-se de que tivera melhores razões. A perspectiva de estar novamente com seus amigos era, definitivamente, a melhor razão possível. Talvez a única que tinha, de fato.

Todos tinham se ferido com severidade durante a guerra, e então passado dois anos num chalé campestre na tentativa de recuperarem-se. O proprietário do chalé era Levi Holroyd, um médico que atuara nos campos das guerras napoleônicas. Levi nunca segurara em qualquer arma, nem tampouco fora machucado por uma. Mas estava tão ou até mais ferido quanto qualquer um dos outros, que haviam sofrido terríveis mazelas físicas, algumas até irreversíveis, como no caso de Griffith, e decidira abrir seu lar afim de usá-lo como hospital e depois moradia para alguns oficiais em convalescença.

Griffith, William e Aiden haviam sido os três que haviam permanecido durante mais tempo que o resto.

Em sua última batalha, Aiden sofrera inúmeros ferimentos. Haviam cicatrizes espalhadas por todo seu corpo que contavam as histórias das lacerações, ossos quebrados e contusões que ele havia sofrido. Mas Griff suspeitava que, no caso do duque, piores que as feridas visíveis haviam sido aquelas não visíveis. William ficara cego. Mas, com o passar dos anos, conseguira se adaptar relativamente bem à cegueira. Vivia sua vida de uma maneira independente... Ao menos, nos limites que sua falta de visão lhe permitia.

Griffith não tinha esse luxo. E certamente nunca teria.

Na verdade, há quatro anos precisava de auxílio para praticamente tudo. Não podia andar muito, e o pouco que podia era com o auxílio de suas muletas. Não podia dançar, nem fazer nenhum esforço físico de qualquer tipo. Tinha de permanecer em sua cadeira de rodas a maior parte do tempo, de forma que a maioria dos lugares era inacessível a ele. E, de qualquer modo, ele odiava estar em público, pois sempre se tornava o centro das atenções; nunca de um modo positivo. Não podia permanecer muito tempo do lado de fora, pois era mais sujeito a enfermidades que o resto das pessoas. E, mesmo que um dia se casasse, Levi não estava certo se ele poderia ter filhos.

Quando a carruagem parou de frente a Casa Barclay, a mansão que agora era oficialmente propriedade de Aiden, Griffith praticamente saltou para fora do veículo. Com a diferença de que não o fez, é claro. Não podia saltar.

— Lar doce lar. — o Conde anunciou, enquanto deslizava no banco até a porta que Aiden já abrira afim de sair. O amigo não lhe ofereceu qualquer ajuda, nem tampouco ficou virado para ele, para garantir que descesse com segurança. Nunca fazia nada do tipo. E Griff era grato por isso.

 Sacou as muletas, pondo-se de pé com o auxílio delas. Quando colocou o máximo de peso que conseguia nos próprios braços, pôde senti-los estremecer ligeiramente, desacostumados ao esforço após tanto tempo inertes.

— Sim. — Aiden respondeu-o, com pouca convicção.

Griffith tentara levantar um pouco seu ânimo durante a viagem. Mas não podia se dizer criativo nos setores de diálogo - certamente, essa parte de sua mente estava completamente enferrujada. Se se concentrasse direito, talvez até conseguisse ouvir as engrenagens rangendo enquanto tentavam trabalhar. E, na verdade, sabia que o que o amigo mais precisava no momento era um pouco de silêncio e espaço.

Mesmo hoje em dia, Griffith se surpreendia ao notar como conhecia bem seus amigos. E como eles o conheciam.

— Eu não sei você, mas depois de uma viagem dessas, preciso urgentemente de um banho e de uma refeição quente. — o mais novo disse, enquanto começava a galgar seu caminho até as escadas na entrada. Olhou os degraus, com desânimo. — Barclay, você precisava mesmo ter tantas escadas em sua maldita casa?

O quarto de Griffith ficava no térreo. Quando entrou, o cômodo já estava perfeitamente preparado para sua chegada. A lareira ardia quente, e a cama impecavelmente forrada parecia clamar para que ele se deitasse. Mas não poderia. Não ainda. Chamou Isaac Wright, seu valete.

— Isaac.

— Sim, senhor. — o sujeito respondeu.

— Gosta de estar em Londres?

O criado arqueou as sobrancelhas, certamente aguardando para entender se aquela havia sido ou não uma pergunta retórica.

— Eu não gosto. — Griff disse, antes que ele pudesse respondê-lo. Suspirou. — Na verdade, estou há menos de uma hora na cidade e já percebi que a odeio.

Isaac permaneceu impassível, como um ótimo criado sempre ficava. Após tanto tempo, já estava acostumado com as estranhezas repentinas de seu patrão.

— Irá voltar, senhor?

Griffith abriu um sorriso sem qualquer indício de graça.

— É claro que não. — respondeu, enquanto fazia o caminho desajeitadamente até seu vestíbulo. — As coisas que fazemos por quem nos importamos, não é?

 Isaac assentiu, enquanto começava a despi-lo. Algo que Griffith particularmente gostava em Isaac Wright era o fato dele trabalhar sem qualquer alvoroço. O melhor de tudo era que não ficava rodeando.

Quando Griff, por vezes, enganchava o encosto de sua cadeira de rodas na quina de uma mesa, ou passava por cima de um objeto no caminho, ou de vez em quando se desequilibrava quando estava subindo as escadas, ou – em uma ocasião memorável – perdia o controle de sua cadeira e mergulhava de cabeça num lago de nenúfares, Isaac estava lá para cuidar dos cortes, arranhões e de outras sequelas, e também para fazer comentários apropriados e inapropriados, sem qualquer tipo de emoção na voz.

Às vezes dizia ao patrão que ele era um cabeça-dura desajeitado. E não estava incorreto, é claro.

Isaac tinha vindo do mesmo vilarejo que Griff. Seu pai era o padeiro do vilarejo. Eles tinham frequentado juntos a escola, pois a família de Griffith não tinha dinheiro para pagar uma instrução particular para ele, apesar de, teoricamente, sua posição social ser a de um cavalheiro. O sonho do padeiro era que o filho aprendesse a ler e a escrever. Griff sempre tinha aulas com o pai, que também se dispôs a ensinar a Isaac. Desse modo, os meninos estavam sempre brincando juntos. Na verdade, todas as crianças do vilarejo sempre brincavam juntas, independente de instrução, hierarquia, gênero ou idade.

Aqueles haviam sido mesmo tempos idílicos. Era irônico como a vida era capaz de transformar-se tão radicalmente em tão pouco tempo.

— E então, quem morreu dessa vez? — foi o que Griffith perguntou, quando entrou na sala de jantar uma hora depois, deslizando sobre as rodas da sua cadeira.

Aiden já estava sentado numa das pontas da imensa mesa, com alguns envelopes em mãos, o cenho franzido enquanto lia as palavras concentrado. Permanecia sério, mas aquela era somente a seriedade comum ao amigo, Griffith notou com certo alívio, e não a austeridade deprimente que ele tinha carregado nos últimos dias.

— Ninguém. — o Duque respondeu, depois de um minuto em que finalizava a leitura de uma correspondência em especial. Então colocou a carta que tinha em mãos aberta em cima da mesa. — Mas eu acho que recebemos nosso primeiro convite.


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