1812 — Interativa escrita por Holtzmann


Capítulo 19
Capítulo XVII


Notas iniciais do capítulo

Olá, babies!

Primeiramente, eu creio que devo a vocês um pedido de desculpas. Passei um tempo sem atualizar essa história por algumas razões externas que creio que não adianta de muito repetir por aqui. Por isso vou me limitar apenas a me desculpar - pela demora, principalmente, e por trazer a vocês um capítulo um pouco mais curto do que essa história está acostumada a ter. Mas, also, para assegurar a vocês que não desisti dela! Nem de vocês! A 1812 atualmente é responsável por conservar a maior parte de minha sanidade de jovem adulta no auge de seus vinte anos, e acho que preciso dela mais do que ela precisa de mim XD Para compensar vocês, estarei postando o próximo capítulo mais rápido - não prometerei prazos porque trabalho com surto e ansiedade.
Ademais, espero que vocês ainda estejam por aqui e que possam me perdoar pelo sumiço não planejado. Estarei respondendo os comentários que estou devendo a vocês nos próximos dias.
Xoxo e boa leitura!



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Londres, 1812

 

Os dias de Beatrice tinham começado a se dualizar entre aqueles em que ficava em casa, dividindo-se entre a leitura e suas tentativas fracassadas de bordado, e os momentos em que o Visconde Bedwyn a vinha resgatar de sua prisão particular. Eles não eram tão recorrentes quanto desejava, aqueles momentos...

Mas eram sempre precedidos por um sentimento enorme de alívio. Ela sempre pensava que, por fim, conseguiria passar algum tempo em liberdade.

E com seu pressuposto novo amigo.

Com certeza isso era muito bom. Quando ele estava por perto, sempre havia risadas e bom humor. Entretanto, quando estavam juntos não havia  risadas e bom humor. A cada dia que se passavam, Bea sentia que começava a conhecê-lo mais como pessoa e descobrir que não era tão superficial e egocêntrico quanto imaginava a princípio. E começou a acreditar que ele tinha verdadeiro interesse nela e em seus pensamentos e ideias, e não só nela como um rosto bonito. De fato, aparência era a última coisa que importaria ao Visconde em qualquer situação que fosse.

Havia algo mágico, pensou Triz, em descobrir uma possível nova amizade em um lugar tão inesperado. Ela não tinha levado muito a sério a ideia no início, mas aos poucos começava a mudar de ideia.

Mesmo que ela raramente pudesse ficar a sós com ele. Todas as vezes em que Will - ela se acostumara a pensar nele dessa forma, de tanto chamá-lo assim em suas atuações - a tirara de casa, ela fora forçada a tolerar a presença de um de seus irmãos - normalmente Zachary, que tentava sempre encontrar um jeito de incluir a senhorita Dashwood no embolo - ou de uma criada que lhe servia de acompanhante.

Naquela tarde, ele tinha dito que a levaria para um piquenique. Parecido com aquele durante o qual eles tinham se encontrado pela segunda vez. Parecia fazer muito tempo desde então, mas só algumas poucas semanas tinham passado. O local escolhido para o piquenique era uma grande clareira gramada junto a extremidade de um enorme lago. Havia uma pitoresta ponte de pedra de três arcos que unia suas margens. Abaixo dela corriam as agitadas águas de um riacho que desaguaria no lago.

Outras pessoas tinham tido a mesma ideia que eles. Outros casais e famílias se espalhavam por aquela área do parque. William parava para cumprimentar quase todos - aparentemente, ele era uma figura popular em Londres embora, de acordo com ele, raramente ficasse lá por muito tempo. Essa era uma das coisas que ela descobrira sobre Will; ele era uma alma inquieta, um andarilho. Tinha passado o ano anterior inteiro no exterior, em visita às Índias, e planejava ir para a França, em sua próxima viajem. Ou talvez à Grécia. Ele ainda não tinha decidido.

Outra coisa que ela descobrira era que, sempre que vinha a Londres, ele raramente ficava na Casa Bedwyn, a mansão de Mayfair que estava atrelada a seu título. Ele costumava viver em apartamentos menores, nos arredores da Piccadily, e costumava mudar-se com certa constância, nunca permanecendo na mesma acomodação por muito tempo. Quando ela perguntou a ele por quê não ficava na Casa Dashwood, com sua mãe, ele lhe replicara que raramente sua presença era bem quista lá.

Quando ela perguntara o porquê, ele tinha mudado de assunto.

William nunca tinha dado a entender que havia qualquer tipo de desavença entre ele e sua mãe. E Bea não achava que qualquer mãe, independente de qual fosse, desejaria que seu filho se mantivesse longe. Mas aceitou que aquele era um mistério a ser desvendado posteriormente. E havia uma lista um tanto longa deles, quando se tratava de seu prometido de mentirinha, Triz logo percebeu.

Ela não o conhecia por inteiro, é claro. Mas Will era alguém muito expressivo, de modo geral, e isso permitira que ela descobrisse algumas coisas só de observar ele e suas atitudes.

Havia no rosto dele a força do seu caráter, bem como certo cinismo, intensidade e tanto mistério que seria impossível desmascará-lo por completo mesmo depois de uma vida inteira ao seu lado, ela suspeitava. Não que ele fosse alguém evidentemente recluso ou fechado; não. Ele sorria muito para Triz, e sempre respondia ela com franqueza.

Mas nem sempre respondia. Às vezes ele se desviava, utilizando do mesmo sorriso que dirigia a ela quando tentava provocá-la. Seu escudo era seu carisma, e ele se escondia habilmente atrás dele, quando queria. Havia nele nele algo espirituoso, cruel, encantador e doloroso. Um enigma que ela não tinha desvendado por inteiro ainda, mas que suspeitava que estava começando a desvendar.

Depois que ele contara a ela sobre sua experiência particular de desilusão amorosa, ela conseguiu entender a aversão que até então ele tinha demonstrado com a ideia de flerte e casamento - quando se falava a sério sobre esses assuntos. Ele provavelmente fora ferido tão profundamente que não desejava mais ter nada a ver com aquelas coisas. Era um pensamento um tanto fatalista demais, Triz achava - só porque alguém fora um canalha, não queria dizer que todas as outras pessoas também seriam -, mas ela conseguia entender a profundidade que aquele tipo de ferida podia ter.

Não que ela tivesse desistido do amor e do casamento por conta de Dylan. Mas, mesmo que uma oportunidade surgisse a ela, uma oportunidade perfeita, com um pretende ideal e obviamente irrealista, Triz não  conseguiria se entregar. Não naquele momento.

E não por mais algum longo, longo tempo.

No outro lado do lago havia um pitoresco pavilhão octogonal de madeira. Ela, Will, Zachary e Cecily ficaram lá por algum tempo. A senhorita Wright, governanta de Cecily, também viera. Triz suspeitava que William só tinha a convidado pois, quando a oportunidade de ficar sozinho com ela surgisse, ele teria outra pessoa para manter um olho sobre a irmã e Zachary.

Quando descobrira do cortejo entre William e ela, o seu irmão mais velho tinha deixado a xícara de chá cair de sua mão e se espatifar no chão:

— Você só pode estar brincando comigo.

O Visconde claramente não era a pessoa preferida de Zachary no mundo. Ele dizia que era devido a fama que o homem tinha - ele não queria que um cafajeste qualquer viesse atrás de sua irmãzinha. O pai de Triz provavelmente teria concordado com ele, se não estivesse tão feliz pelo fato de sua filha não ter repudiado as investidas do Visconde.

Ah, pai. Apesar de suas diferenças, uma parte de Triz se preocupava com a decepção que traria ao pai quando aquela sua farsa acabasse. Não era a intenção dela envolver mais ninguém naquilo, mas seu pai parecia estar começando a gostar de verdade de William - é claro que estava, afinal, embora Beatrice ainda se recusasse a admitir isso abertamente, quem não gostava dele?

Triz, por sua vez, ainda não tinha tido a oportunidade de conhecer a família de Will. Quer dizer, a família imediata - sua mãe, seu irmão e sua cunhada, sobre os quais Cecily costumava comentar. Bea tinha decidido que gostava muito daquela jovem debutante - ela era bem mais esperta do que parecia, e Triz suspeitava que isso tinha haver com o ensino e influência da senhorita Wright.

Ela e a governanta tinham se conhecido num dos jantares para os quais William tinha sido convidado e levara ela. Tinham se encontrado outras vezes desde então, já que ela continuava trabalhando para William, por enquanto, e tinham trocado conversas breves, mas que tinham sido o suficiente para Abby perceber que Ophelia era muito menos pacata do que as governantas costumavam ser. Na verdade, ela era bastante inteligente, e quando se sentavam ela, Triz e Cecily, as conversas costumavam ir muito além dos assuntos usuais das damas como bordado e chá.

William continuou levando Triz a eventos públicos, outros um pouco mais privados, entre a nobreza, afim de continuar difundindo a picante novidade de que estava apaixonado, apaixonado, apaixonado. Era quase cômico o modo como eles performavam aquilo - Will às vezes exagerava, mas Triz suspeitava que ele fazia de propósito, só para fazê-la rir.

Ele tinha vindo até sua casa certa tarde, com um soneto em mãos, e tinha o recitado de có e salteado na frente dela e de seus irmãos. Quase todo dia Bea recebia um buquê de flores - e todos eram diferentes um do outro. Tinha se tornado um jogo, uma piada interna, ela pesquisar sobre as flores que ele mandava e então mencionar a ele seu nome científico e o que elas significavam sempre que se reencontravam.

William gostava de ouvi-la falar sobre coisas inteligentes, nas palavras dele. Ele a ouvia atentamente enquanto ela falava sobre seus ideais e inspirações e ambições, e nunca a olhava daquele jeito meio constrangido que a maioria dos homens a olhavam - aquele olhar que dizia “eu acho que você está falando um monte de besteira, mas sou cortês demais para contradizê-la abertamente”.

Não. Will a ouvia com atenção e, quando não concordava com algo, a questionava, a instigava, e ela argumentava até conseguir convencê-lo de seu ponto - ou então, como às vezes acontecia, ceder diante dos argumentos dele. Embora isso não fosse muito comum. Beatrice conseguia ser bastante teimosa quando queria. E havia um prazer meio perverso em estar sempre certa. Ou ao menos parecer que estava.

Quando conseguiram escapar das pessoas e do dever social de cumprimentar a todas elas - sendo conhecidas ou não -, William a levou através da ponte para o que ele disse ser um passeio. O céu estava limpo e tinha uma cor azul marvilhosa, o sol emitia um calor morno em vez de sufocante. Soprava uma brisa fresca. Em suma, era o dia perfeito da mais perfeita estação londrina.

Eles caminharam em silêncio pela maior parte do tempo. Nenhum dos dois fez questão de quebrar o silêncio. Não era preciso e, de todo modo, Triz suspeitava que estragaria o melhor do momento. O sol brilhava sobre eles. Ela era capaz de sentir a leve brisa no rosto, ouviu o murmúrio do rio que corria próximo. Caso voltasse a cabeça veria o esplendor que a luz do sol fazia sobre as águas.

Ela permitiu-se fechar os olhos por um momento. Aquele tinha se tornado outro jogo, mas particular dela: algumas vezes, Triz se pegava fechando os olhos em momentos e ambientes aleatórios e tentando imaginar... Como seria viver para sempre daquele jeito. Como William. Havia algo aterrorizante na ideia, principalmente quando ela notava que dependia tanto da visão para tantas coisas. Até para andar dentro da casa durante a qual vivera toda sua infância - ela tropeçara pelo menos três vezes nessa brincadeira, e tombara com pelo menos duas quinas pontudas de móveis.

Mas também havia algo de estranhamente fascinante em não ter a visão como um apoio, às vezes. Falando assim, ela certamente estaria soando como uma idiota - não havia nada de fascinante em ser vítima de uma deficiência. Mas o mundo sem a confiabilidade dos olhos - quando se podia escolher tê-la ou não - era um mundo diferente.

Aquele era um daqueles momentos. Como ela não podia ver, era obrigada a usar os outros sentidos. E todos os seus sentidos estavam muito atentos. Sentia o calor que emanava de Will, a seu lado. Percebia o aroma de sua colônia. Era uma sensação que se tornara estranhamente familiar naqueles dias, muito agradável.

E ela estava tonta de tão feliz que se sentia. Só por poder estar ali, fora de casa. Só por ter novamente um amigo, ou ao menos alguém que estava se tornando um, depois de deixar a maioria dos seus lá na América.

Ela desejou poder guardar cada minuto daquele em um pote e levar todos com ela, para os apreciar depois, quando estivesse de volta em casa, sua prisão solitária de restrição. Não se lembrava de ter se sentindo daquele jeito ultimamente - nem em muito, muito tempo, desde a América.

E não existia ninguém, no momento, com quem ela preferisse dividir aquela beleza e silêncio a não ser com William.

Em algum momento, eles pararam de caminhar para se sentar num banco de madeira à margem do rio. William repousou sua bengala no espaço vazio ao lado de si. Ele a usava muito menos quando estava com Bea, pois ela costumava se apoiar em seu outro braço. Era quase uma bengala humana, ele brincara, certa vez.

Enquanto ela lembrava daquilo, ele falou, abruptamente:

— Eu gosto da amizade. — disse, num tom sério. —  Não é necessário ter que falar. —  deu uma risadinha. — Faz sentido para você? Acho que não. Geralmente as pessoas querem amigos justamente porque precisam de alguém para conversar.

— Ah, faz sim. — Triz respondeu. — O silêncio é incômodo entre estranhos. Deve ser por isso que as pessoas falam tanto com pessoas que não conhecem muito.

— Como eu e você naquele dia do piquenique —  disse Will. — Você estava incomodada?

— Bastante. — admitiu Bea. — Mas muito mais por você ser um conhecido do que o contrário.

Ele riu.

— Eu guardei seu segredo, não guardei?

— Guardou. — Triz cedeu, inclinando a cabeça para o lado. — Mas essa não era minha única ressalva.

— E qual era a outra?

Ao sentar no banco, ela tinha tirado sua mão do braço dele para alisar a saia do vestido. Ficou olhando para a mão dele, repousada numa das coxas abaixo da calça, e notou, distraidamente, como seus dedos eram longos e finos - definitivamente não pareciam nada com os dedos de um soldado.

— Ah, porque você tinha invadido a vida real. — Triz deu de ombros. — Deixou de ser um estranho num evento artístico para ser o Visconde Bedwyn, bonito, elegante, evidentemente rico, muito seguro de si mesmo, embora fosse cego. Um homem do mundo real. Do mundo que eu estava tentando fugir.

—  Superficial, —  ele continuou listando. — vaidoso e paquerador, também. Você esqueceu esses adjetivos. E você me chamou mesmo de bonito, Abby? Que atrevimento o seu.

Triz revirou os olhos.

— Não se convença. Eu errei no meu julgamento, — murmurou. Will começou a abrir um sorriso, então ela emendou: — mas não em todo ele. Você é muito vaidoso, e às vezes fala como um homem ridiculamente superficial.

William ergueu uma sobrancelha.

— Ah, é? E quando eu fiz isso?

Beatrice pensou um pouco - na verdade, não precisou pensar tanto assim para lembrar de uma situação que se encaixasse nas suas palavras:

— Naquela vez em que estávamos falando sobre a educação, e como ela deveria ser igualmente distribuída às mulheres como é para os homens. — falou. — Você me perguntou sobre a necessidade de meninas aprenderem álgebra.

Will cruzou os braços:

— E ela seria...? Algébra é insuportável, Abby, e eu não desejaria a ninguém o fardo de ter de aprendê-la.

— Esse não é o ponto! — Triz exclamou. —  As meninas têm uma mente igual a dos meninos. O mesmo desejo de adquirir conhecimentos, assim como a mesma capacidade de aprender e compreender. É certo que quando ficam adultas a maioria delas leva uma vida para a qual não se requer nenhuma grande preparação, mas nunca é por escolha delas. Nós não temos muitas escolhas. Álgebra é terrível, sim, mas uma mulher deveria ter o poder de decidir se escolhe estudá-la ou não. Como alguns homens fazem.

— Homens como eu? — Will perguntou.

— Segundo o ditado, — Bea retrucou. — se a carapuça lhe serve, que a use.

Ele riu.

— A maioria dos homens diria, em resposta a seu argumento, que dar educação às jovens no pior dos casos faz com que elas tenham encefalite e no melhor dos casos as tornam menos atraentes. Ou talvez eu tenha confundido o pior e o melhor.

— Suponho —  Triz respondeu, áspera. —  que esses homens sentem insegurança em sua masculinidade e temem que as mulheres possam superá-los. Deve ser humilhante ter que perguntar a uma mulher a raiz quadrada de oitenta e um.

— Ui! —  William exclamou, como se tivesse levado um tapa. —  Mas quando isso aconteceria? Não consigo imaginar nenhuma situação assim. A propósito, qual é a raiz quadrada de oitenta e um?

— Nove. —  os dois responderam em uníssono.

Então começaram a gargalhar.

— Sorte a minha não ser um desses homens que tem... Como você disse? Insegurança em sua masculinidade? — Will disse, quando tinham se recuperado o suficiente para voltarem a falar. — Embora eu certamente às vezes me sinta intimidado por sua inteligência, Abby.

— Ah, é?

— É. Você constantemente me faz parecer um neandertal, embora eu não ache que seja intencional. O que torna tudo ainda mais impressionante.

Beatrice aceitou o elogio com um sorriso meio sem graça. Ela estava acostumada a ser elogiada - pela sua aparência, a maioria das vezes, ou pelo seu jeito recatado e gracioso. Mas raramente pela sua mente e pelos pensamentos que ela guardava. E nunca pela sua inteligência. Não com sinceridade.

Percebeu, de repente, que estava começando a adquirir um grande afeto pelo seu novo projeto de amigo - seu cortejo de mentirinha, William, Will. Ocorreu a ela que talvez não tivesse sido a melhor das ideias tornar-se amiga dele. Pois quando aquele teatro deles acabasse, e eles precisassem se separar, ela sentiria sua falta. Não só porque ele estava sendo a sua passagem para a liberdade - embora que temporária -, mas porque ela cada vez mais gostava de sua companhia.

Mas era inútil pensar nisso agora. Era muito tarde para tomar outra decisão e se afastar dele. Tinha levado uma vida muito protegida, muito reclusa, desde que tinha retornado da América, desde que sua mãe tinha morrido. Não podia se arrepender de ter se exposto à luz do sol, embora só fosse por um breve momento.

E tudo indicava que o sol brilhava sobre William.

A questão era que toda luz gerava sombras. E Abby sentia que ainda não desvendara todas as sombras de Will, embora eles tivessem se aberto naquele dia, em seu jardim.

Antes que pudesse respondê-lo, eles foram surpreendidos por um grupo que se aproximava vindo do outro lado do rio. Eram todos jovens aristocratas, entre homens e mulheres, e todos já tinham os cumprimentado anteriormente. Junto com eles também vinham Zachary, Cecily e a senhorita Wright, alguns passos atrás.

Quando o grupo se aproximou, Will sorriu em sua direção... E explicou que, por um momento, tinha acreditado que o calor que começara a sentir repentinamente era a luz do sol sobre sua pele, mas que por fim entendera que na verdade era a aproximação das encantadoras damas que vinham em sua direção.

O patife!

As jovens riram diante de suas palavras, e ele continuou sendo amável, tentando arrancar mais risadas delas. Foi como se ele tivesse voltado a usar sua máscara de frivolidade. Ou talvez não fosse uma máscara. Talvez simplesmente ele tivesse o dom de semear alegria onde estivesse.

Um dos integrantes do grupo, um cavalheiro, propôs que fizessem um jogo antes do chá da tarde. E um coro de respostas entusiasmadas foi ouvido, dando diversas sugestões, de uma partida de críquete até brincar de esconde-esconde. O críquete foi descartado, a não ser que alguém estivesse disposto a buscar o equipamento necesário. A senhorita Moss queixou-se, ainda, de que críquete era um jogo para homens.

O jogo de esconde-esconde não era prático, visto que os poucos arvoredos espalhados não ofereciam abrigo o suficiente para se esconder. As demais sugestões também foram rejeitadas por esse ou aquele motivo. Tudo indicava que deveriam desistir da ideia, até que Cecily propôs:

— E que tal uma corrida de barcos?

Sua proposta foi acolhida com entusiasmo, até que se elevou a inevitável voz discordante:

— Há poucos cavalheiros para remar — apontou a senhorita Jane Gilliard. — A maior parte de nós teria que ficar apenas observando.

As outras damas a olharam com visível decepção, reconhecendo sua afirmação.

— Mas quem disse — interviu Beatrice. — que os únicos que podem se divertir são os homens? Todos nós podemos ser remadores, ninguém precisa ser um mero passageiro ou expectador.

— Que novidade! — exclamou Moss, rindo.

— É a melhor ideia que ouvi em toda a tarde, Abby. — Will concordou, abrindo um sorriso em sua direção.

— Mas eu nunca remei em um bote. — protestou a senhorita Raycroft.

— Nem eu — se queixou a senhorita Krebbs. — Não poderia...

Mas Bea elevou a voz com firmeza:

— Ora, baboseira — sentenciou, olhando o círculo agrupado. — Vamos mesmo desperdiçar a ocasião de empunhar os remos nós mesmas e demonstrar que não somos apenas adornos decorativos, nos contentando a ser apenas passageiras? Não queremos nos esforçar em vencer os homens?

— Eu gosto da ideia — Cecily retrucou, sorrindo.

— Vencer os homens? — exclamou de novo a senhorita Krebbs, histericamente. Parecia que estava prestes a desmaiar.

As outras jovens, no entanto, riram, e pareceram interessadas na proposta.

— Só há quatro botes. — apontou Beatrice. — Teremos que organizar provas de seleção, através do lago até a outra margem e de volta para cá. As mulheres competirão entre si e os homens entre eles. Ao final haverá uma corrida entre o vencedor e a vencedora. Então veremos a capacidade da mulher para derrotar o homem.

— Este vai ser o melhor piquenique da temporada — declarou a senhorita Raycroft com animação exagerada.

Durante a hora seguinte, na margem do lago, houve mais saltos, pulos, aplausos, gritos e gargalhadas do que verdadeira destreza na água. Algumas disputas foram bem acirradas. A senhorita Raycroft perdeu por muito pouco da senhorita Krebbs. A senhorita Moss e Cecily, no entanto, ficaram atrasadas na disputa, devido ao fato que ambas se moviam tanto em círculo quanto em linha reta e nenhuma delas conseguia deixar de rir durante todo o percurso.

Alguns conseguiram ganhar com uma esmagadora vitória, como Will e Bea em suas eliminatórias. Will não tinha a intenção de competir, por um motivo óbvio - ele não podia enxergar, e isso era uma evidente desvantagem na disputa. Mas, após alguns encorajamentos, ele cedera, com a condição de que o grupo ficaria do outro lado da margem lhe gritando incentivos, que ele usaria para guiar seus movimentos.

No meio do caminho ele muitas vezes se desviara um pouco do curso, mas não chegou a perder velocidade em nenhum momento. Foi isso que o fez vencer. Ele não desistiu, nem mesmo quando parecia óbvio que seria derrotado. Beatrice venceu também a senhorita Krebbs em sua última eliminatória, o que a colocou na final, disputando com William.

Todo o grupo, sem exceção, se reuniu do lado oposto da margem quando a hora da última disputa chegou. Outros entusiastas de fora tinham se juntado, se aproximado mais da beira do lago para assistir aos jovens em seu jogo. Todos os competidores estavam exaustos e famintos àquela altura, mas nenhum deles aceitou sair para comer antes do fim da disputa.

— Não acredito que consiga vencer, senhorita Rodwell. — um dos rapazes comentou em tom jovial, mas com uma evidente falta de tato e galanteria.

A senhorita Raycroft deu nele uma cotovelada e as outras damas elevaram suas vozes manifestando indignação. Will e Bea riram. Ele olhou em sua direção, sorrindo, e ela devolveu-lhe o sorriso, embora ele não pudesse vê-la. Esperava que ele pudesse sentir como estava se divertindo.

As jovens pareciam não saber quem apoiar. Resolveram o problema aplaudindo, saltando e ovacionando de forma indiscriminada os dois competidores. Boa parte dos cavalheiros mostravam descaradamente apoio à Beatrice. Incluindo Zachary, é claro.

— É melhor vencer, Bedwyn. — O jovem Lorde Edgecomb disse. — Do contrário será uma humilhação tremenda para todos nós.

— A honra do nosso sexo está em suas mãos, Bedwyn. — emendou outro rapaz, chamado Crossley.

— Acredito que deve procurar não ganhar, milorde — recomendou um terceiro. — Em honra da gentileza de um cavalheiro e essas coisas.

Mas essa sugestão foi recebida com vaias por parte dos homens e um coro indignado de protestos por parte das damas.

Beatrice empunhou os remos e flexionou os dedos para agarrá-los com firmeza. Todos retrocederam alguns passos, Edgecomb indicou aos competidores que se preparassem, ouviram-se umas vozes pedindo silêncio total do público...

E então eles dispararam.

O grupo atravessou a ponte para a margem oposta e começou com seus gritos, torcendo pelos competidores e guiando William. Will estava muito determinado... Mas Abby estava mais. A aba do chapéu de palha que usava se agitava com o vento, e seus braços se moviam em sincronia, incansáveis.

No meio do caminho, Triz gritou para ele:

— Não ouse me permitir ganhar! Eu nunca o perdoarei!

— Deixar você ganhar? — ele gritou de volta, sem deixar de remar. — Como poderia viver com a humilhação de ser vencido por uma mulher?

Ela mostrou a língua para ele, embora soubesse que ele não a veria, e começou a remar com mais afinco. Quando a corrida estava a ponto de terminar e eles se aproximavam da margem oposta, Will se virou em sua direção, sorrindo, satisfeito. Ele estava com a vantagem. Bastava fazer um último pequeno esforço e a venceria.

Mas virou no momento mais inoportuno. Uma repentina rajada de brisa inclinou seu chapéu para frente, e ele levou, por reflexo, uma das mãos até ele para segurá-lo... Perdendo um dos remos.

Assim, Beatrice o ultrapassou e ganhou.

Ambos riram muito quando ela virou o corpo para olhá-lo se aproximando, com um remo só. O voto feminino naturalmente o abandonou em favor da campeã das damas. Estas conduziram Triz para fora do barco, em clima de triunfo, na direção da grama, onde os esperavam cestas de comida do piquenique.

— Devo morrer agora mesmo de humilhação? — perguntou William sorrindo a Edgecomb enquanto desembarcava.

— Acredito que é melhor que morra agora, Bedwyn. — o nobre retrucou. — Nosso sexo jamais superará a vergonha da derrota dessa competição, meu amigo. Não me surpreenderia que a notícia aparecesse na imprensa londrina e você não pudesse voltar a dar as caras pela cidade de novo por um tempo.

— Mas deixou as damas muito felizes. — comentou Crossley, dando uma palmada no ombro de Will. — E esse é o maior prêmio que um homem pode aspirar. Agora vamos comer, ou acho que vou desmaiar.

Bea insistiu para que Will se sentasse, que ela iria buscar algo para dividirem. Foi com as outras jovens, incluindo Cecily e a senhorita Wright, que tinham torcido por ela mais do que qualquer uma das outras. Escolheu alguns pãezinhos recheados e se serviu de dois copos cheios de limonada doce e gelada, sentindo a boca salivar só de vê-los.

Foi equilibrando seus pequenos tesouros no caminho de volta, quase saltitando, ainda imersa na névoa de sua vitória, mas desacelerou o passo ao notar que Will, sentado na manta, não estava mais sozinho. Um casal estava de pé diante dele. Um homem pouco mais novo que ele, talvez da idade de Beatrice, e uma jovem mulher da mesma faixa etária.

O homem tinha o cabelo meio louro, como o de Will, embora a similaride entre eles acabasse ali. Seus olhos eram escuros, e ele era um pouco mais baixo que o Visconde. A mulher, por sua vez, era uma estonteante beleza de cabelos negros e olhos verdes.  

Bea entreouviu sua conversa enquanto se aproximava.

— Você parece bem — disse a mulher para Will. — Você deixou... O bigode crescer um pouco.

William tinha contado a Triz que nas Índias alguns homens costumavam deixar os bigodes crescerem. Ele adquirira o hábito e não o tinha abandonado, mesmo depois de retornar para a Inglaterra, onde o estilo não era apreciado.

Mas diante das palavras da mulher, ele não disse nada. Ele não se colocara de pé. Só olhava para cima, na direção dela, uma expressão indecifrável no rosto. Bea se sentiu quase aliviada de não ser ela o alvo daquele olhar desconcertante.

— Bengala nova, hein? — o homem deu um tapinha no ombro direito de Will. — É bem... Legal. Muito bem feita.

Triz não soube bem o que fazer. Ficou ali, parada à meia distância deles, incerta sobre se deveria se aproximar, e curiosa demais para se afastar. Então a voz de Will por fim rompeu o silêncio.

— Lorde e Lady Dashwood. — falou, num tom de voz inexpressivo. — A que devo o prazer?

— Estávamos só passando, Will, — a mulher, Lady Dashwood, disse. Então eram eles o meio-irmão e a cunhada de William. — e vimos você e Cecily. Como fazia muito tempo que não o vimos, viemos cumprimentá-lo.

— Então... O que tem feito, Bedwyn? — Lorde Dashwood perguntou, com uma alegria forçada na voz.

— Pouca coisa, por incrível que pareça.

— Mas ouvi dizer que você foi para as Índias ano passado. Mamãe me falou. Você a deixou preocupada, hein? E esses olhos? Como anda seu tratamento?

— Philipp, — disse Will, com a voz transbordando sarcasmo. — não acho que voltarei a ver tão cedo. Meu tratamento acabou há muito tempo. Não há mais o que ser tratado.

O silêncio que se estendeu então era carregado. Os recém-chegados pareceram notar Beatrice. Lorde Dashwood a olhou com uma inquisição quase ameaçadora, que forçou Triz a se aproximar mais alguns passos.

— Milorde, milady, é um prazer. — disse, incerta sobre a sinceridade de suas palavras. Triz repousou um dos copos de limonada ao lado do Visconde. — Aqui, Will. Eu trouxe limonada.

Mas ele não lhe deu atenção.

— Então? — ele indagou para o casal. — Há algo mais que desejam me perguntar?

Beatrice nunca o vira agir daquele modo. Aquele não era o William que conhecia. Will, seu cortejo de mentirinha, nunca fora rude com ninguém diante dela, nem jamais agira com impaciência ou demonstrara o mínimo sinal de descortesia.

— Ah, há algo mais... — Lady Dashwood pareceu incerta, por um momento. Mas parecia tarde demais para recuar, agora. — Nós... Temos uma novidade.

Will arqueou uma única sobrancelha. A mulher pigarreou, levemente.

— Achei... Quer dizer, nós achamos... que... você tinha o direito de saber... mas é o seguinte: Deve ter ouvido que Diana, nossa filha, nasceu enquanto você estava fora. E faremos seu batizado.

Triz ficou totalmente imóvel. A mulher continuou, de forma pouco convincente:

— Olha, sei que deve ser um pouco chocante para você. Você se quer teve a chance de encontrá-la desde que voltou. Nós... Isso... Bem, ocorreria cedo ou tarde, é claro. É o que se acontece quando se casa, crianças nascem.

Os braços de Triz começaram a doer de tanto segurar o copo restante e a cesta de pães. Ela olhou para baixo, para a cesta, pensando no que deveria fazer. Se deveria fazer algo.

— Bom, você sabe que eu... Nós...

Outro silêncio pesado.

— Bedwyn, por favor, diga algo. — Lorde Dashwood emendou, com certa impaciência.

— Parabéns. — William falou, por fim.

— Nós só queríamos avisá-lo, já que você esteve distante por tanto tempo, — Lady Dashwood disse. — e queríamos convidá-lo, pois você faz parte de nossa família. É irmão de Philipp e meu cunhado.

— Que generoso de sua parte.

— Por favor, não aja dessa forma. Isso é tão frustrante. Eu fiquei completamente apavorada só pela ideia de vir até você, nós dois ficamos.

— Evidentemente. — disse Will, sem inflexão na voz.

A voz de Lorde Dashwood os interrompeu.

— Só viemos aqui convidá-lo pois nos importamos com você. Não queremos continuar dessa forma para o resto de nossas vidas. A vida continua. Você sabe. Já faz quatro anos, afinal.

Fez-se novamente silêncio. Triz percebeu que, independente do que aquilo fosse, não devia continuar ouvindo. Aquilo não era de sua conta, e seria um desrespeito a William continuar ali, parada, bisbilhotando. Embora a essa altura ela tivesse criado uma teoria - mas não queria acreditar nela, ah, não queria.

Quando estava começando a recuar, a voz de Dashwood soou mais alta, o que fez com que parasse uma vez mais:

— Vamos lá, Bedwyn. Eu imagino que deve ter sido muitíssimo difícil. Mas, se algum dia se importou de verdade com Annelise, deve ficar feliz por ela estar tendo uma vida boa, com uma família.

— Diga algo, Will. — Lady Dashwood suplicou. — Por favor.

Beatrice estava presa no olhar de seu amigo. Aquele olhar bizarro, ao mesmo tempo inescrutáel e carregado de desdém frio.

— Parabéns. — ele repetiu, mais uma vez. — Tenho certeza que o batismo da criança será um evento muito alegre.

Lady Dashwood começou a dizer algo, mas foi interrompida pelo marido:

— Vamos, Anne. Acho que devemos ir. Bedwyn, não viemos aqui esperando sua benção. Foi uma gentileza. Essa divisão criada na família... Isso não faz bem a ninguém. Muito menos a você. Só queríamos consertar isso. Sinto muito, meu velho. Eu espero que, quando a poeira baixar, você nos dê uma resposta digna.

Eles começaram a se afastar e Beatrice seguiu na frente, pensando que William provavelmente não estaria mais com apetite, de modo que o ideal seria devolver os pães a seu devido lugar. No meio do caminho, no entanto, ela parou quando o casal passou a seu lado...

 E Lady Dashwood também se reteve, olhando diretamente em seu rosto.

— Eu sei o que você está pensando. — ela disse, após uma pausa.

— Não sei do que está falando, madame — Triz retrucou, por fim. — E, de todo modo, não é realmente da minha conta.

Mas a mulher continuou encarando-a.

— Eu tentei. — disse, com a voz embargada. — William estava fora de si quando voltou para casa. Tinha voltado a escutar, mas ainda era pouco mais que um animal selvagem. O médico nos disse que não sabia se ele melhoraria. Ele não disse com todas as palavras, mas todos sabíamos que, se ele não melhorasse, o melhor seria que ele fosse confinado a um asilo onde não pudesse ferir ninguém além de si próprio.

Beatrice continuou encarando-a, sem dizer uma palavra. Mas ela não tinha terminado ainda:

— O que eu devia ter feito? Era pior do que a morte. E Philipp também ficou muito transtornado. Ele estava arrasado. Nós dois estávamos. E achamos conforto um no outro. Casamos. — ela deu uma risada sem humor. — Mas nunca fomos felizes. De fato, desde que Diana nasceu, nunca estivemos tão distantes.

E então, quando ficou claro que não receberia nada de Triz diante de seu desabafo repentino e desesperado, nenhuma palavra e nenhum gesto, ela se virou e partiu atrás de seu marido.

Quando Bea voltou para o lado de William, a limonada ainda estava intocada ao lado dele. Ela se sentou... E tão logo tinha se acomodado na manta, ele abriu a boca e disse:

— Abby, — murmurou, com uma voz inexpressiva. — acho que talvez tenha esquecido de lhe dar um detalhe importante sobre aquela história que lhe contei.

Triz não pediu para que ele explicasse o que queria dizer. Ela já tinha entendido. Mas não queria vê-lo dizer aquelas palavras, pois elas confirmavam que a teoria que tecera nos últimos minutos estava certa:

— A mulher que não me acompanhou para o campo de guerra. Ela se casou com um barão, eu a contei. Mas não mencionei o nome do sujeito, mencionei? Ela casou-se com Philipp, meu meio irmão. O atual Barão Dashwood.


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