Nosso Deslumbre escrita por Sirena


Capítulo 14
Capítulo 14




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— Você me chamou de namorada. – Laura cantarolou já fora de casa, de mãos dadas com Giovana.

Tinha vestido uma regata amarela de bojo e um short de malha cinza que combinava com as sapatilhas cinza que havia colocado e prendera o cabelo num coque alto e meio bagunçado. Havia hesitado um instante, mas acabou decidindo pegar sua bengala porque os desníveis do chão e as poças que a chuva deixava eram realmente um problema e suas sapatilhas eram de pano. Seria péssimo se molhassem.

— Chamei. – Giovana deu de ombros. — Pareceu apropriado na hora.

— Que tipo de leitora é você? – Laura provocou, cerrando os olhos. — Onde já se viu, uma leitora sair chamando de namorada sem fazer um pedido digno dos clichês românticos das fanfics de Wattpad?

— Não vamos ser esse tipo de clichê. – Giovana deu de ombros, apertando de leve a mão de Laura antes de soltá-la, contentando-se em ficar apenas com os dedos mindinhos unidos. — Vamos ser o clichê de garotas que tão “foda-se” para que os outros falam delas e que xingam quem olha torto.

— Ok. É um clichê legal. – Laura riu. — Mas, e aí, minha namorada, quando vou conhecer meus sogros? Tenho certeza que é impossível ser tão ruim quanto você conhecendo meus pais!

***

Laura ria das histórias que José contava sobre a filha quando mais nova. Estavam em volta da mesa da cozinha. O jantar já estava pronto e a mesa estava pronta, só esperavam a mãe de Gi chegar para poderem comer.

Havia seguido o conselho da namorada (ainda estava se acostumando a chamá-la dessa maneira e sempre acabava sorrindo demais quando pensava nela assim) e colocado um vestido acinturado de alças finas, azul claro com um padrão minúsculo de aves brancas e que ficava bem com o salto preto que usava. Giovana havia dito que o pai dela era um tanto quanto formal demais quando se tratava da hora do jantar.

Ela sorriu para Giovana, que já havia colocado tranças brancas no cabelo e usava um vestido evasê cinza, com saia plissada, e que a fazia parar uma beldade da década sessenta.

“Vestidos são sempre uma boa aposta para jantares.” – ela havia dito.

— Ai, até essa aí aprender a oralizar direito, foi um inferno. - o pai de Giovana contou. — Ela sempre saía pisando duro quando ninguém entendia o que ela falava. Fosse da família, amigos ou alguém da escola. Começava a xingar em Libras e dava as costas, furiosa. Tivemos que fingir pra professora que o sinal para “sua puta” era um elogio. Era bem constrangedor.

Laura cerrou os lábios, tentando conter uma risada imaginando a cena.

— E ela já desligou o aparelho auditivo quando você tava perto? – Hellen se meteu, dando risada. — Ela sempre faz isso. É só falar algo que ela não gosta que já desliga o aparelho.

— Eu nem perceberia se ela fizesse isso. – Laura admitiu, dando risada. Quando Hellen e José riram, percebeu como sua fala poderia ser entendida.

A porta da sala se abriu e Sara entrou soltando a bolsa de trabalho, os ombros caídos de cansaço e as olheiras escuras sob os olhos. Apesar disso, sorriu calorosamente para Laura enquanto tirava os sapatos e prendia os cabelos loiros num rabo de cavalo.

— Todo mundo com fome?

— Você demorou, mãe! – Giovana reclamou sorrindo enquanto Sara sentava-se num banco ao seu lado. — Finalmente podemos comer!

— Oi.

— Olá. – Laura sorriu gentilmente para a sogra, pegando o prato.

Ficou secretamente feliz por ninguém ter oferecido ajuda e apenas a terem deixado pegar a comida. Havia algo que lhe era sempre incomodo em como as pessoas sempre pareciam querer ajudá-la mesmo quando não pedia ou precisava, como se a vissem como uma criança vulnerável. Era bom que ali fosse diferente.

Giovana não participou muito das conversas, como usual, não estava perto o bastante de Laura para poderem conversar em Libras e não se sentiu muito a vontade com a prosa sobre si mesma e vozes altas

Mas, mesmo assim, era legal, pensou dando uma garfada em seu macarrão com queijo, acompanhado por salada com molho italiano. Pelo que podia entender, com base na forma como seus pais se inclinavam para perto de Laura, sorriam e toda linguagem corporal deles, estavam gostando dela. Provavelmente estavam, pensou sorrindo para si mesma.

Era bom. Como um daqueles momentos confortáveis que, mesmo com seus pais contando histórias vergonhosas sobre sua infância, poderia durar para sempre por ser tão bom.

— Você vai repetir? – Sara arqueou a sobrancelha, vendo a filha encher o prato com mais macarronada.

— Isso tá uma delícia! – Giovana se defendeu, tentando não revirar os olhos.

— Deus... – Sara balançou a cabeça. — Se você continuar comendo desse jeito, logo sua namorada vai agradecer por não enxergar direito.

Laura engasgou, sem reação.

Giovana encarou a mãe, boquiaberta, por um longo momento. Então, respirou fundo tentando controlar suas próprias reações, o coração disparado, a vontade de gritar com a mãe... Respirou fundo de novo, as mãos tremendo. Mais uma vez, só por garantia.

— Pai, eu posso ir pro meu quarto?

José abaixou o garfo e mastigou devagar, tentando conseguir mais tempo enquanto olhava de Sara para Giovana.

— Claro que pode, Gi. – Helen sorriu, colocando uma das mãos sobre a do marido devagar, na intenção de participar uma imagem de parceria e concordância.

A garota deu um sorriso fraco enquanto se levantava e deixava a cozinha.

Laura franziu os lábios por um longo um instante.

— É... É estranho se eu ficar na mesa, né? Eu vou... É... Por onde é o quarto dela? Eu vou... É vou levar isso. – ela decidiu enquanto se levantava, pensando alto e pegando o prato ainda pela metade. — Eu to com fome. Tá uma delicia.

— Obrigada. – Helen sorriu, embora dirigisse um olhar rígido para Sara, que permaneceu em silêncio enquanto a cena seguia se desenrolando. — Depois eu levo um pouco de bolo com sorvete lá pra cima, tá bem?

— Obrigada. – Laura sorriu enquanto saia da cozinha, tropeçando num desnível entre os cômodos em seguida. — Eu tô bem! – gritou.

***

Nenhuma das duas falou nada enquanto Laura, sentada na beira da cama, terminava de comer seu macarrão com molho de tomate, se deliciando com o bolo de carne recheado com queijo que Helen havia preparado e pensando que realmente, nunca conseguiria ser vegetariana. Aquele bolo de carne era muito bom!

Lambeu os lábios e colocou o prato no chão, deitando-se ao lado de Giovana, que permaneceu em silêncio o tempo inteiro olhando para o teto.

— É sempre emocionante assim aqui? – questionou após um longo instante.

— É só tudo tão cheio. – Giovana resmungou. — Às vezes, eu acho que eu tenho pais até demais. Minha mãe é maravilhosa quando se trata da minha surdez, mas quando se trata de comida... Deus. E a Helen? O contrário total, péssima com minha surdez e ótima com meu corpo. E no meio de tudo isso tem o meu pai tentando puxar um pouco de mim pra ele e impedir nós três de gritarmos uma com a outra e nos matarmos e... Nada nunca tá certo aqui.

— Pais que se importam demais? Que pesadelo.

Giovana piscou, sem tirar os olhos do teto e deu um suspiro se deitando de lado e olhando para a namorada.

— Me sinto mal em reclamar disso com você. Desculpa.

— Relaxa. Eu tenho uma ideia de como é. Quando meus pais ainda se importavam comigo, eles só me cercavam tanto... – Laura respirou fundo. — E criticavam absolutamente tudo, a comida que eu fazia, as roupas que eu vestia, os livros que eu lia... Sempre queriam me ajudar com base no que eles achavam que seria o melhor pra mim. E pra eles, o melhor pra mim é o que era melhor pra eles... E... Bom, eles estavam bem errados. Pais fazem muito isso, eu acho. Baseiam o que querem que nossa vida seja com o que eles queriam que a vida deles tivesse sido. Às vezes, é difícil para eles entenderem que queremos coisas diferentes.

— Seria bom se vissem isso logo. Facilitaria muito.

— Facilitaria. – Laura concordou pegando a mão de Giovana.

— É tão difícil... – murmurou, cansada, fechando os olhos. — Eu me esforço tanto pra não me importar com as coisas que ela diz do meu corpo, eu gosto de como eu pareço... Mas, ela me desestabiliza tanto quando fala assim.

Silêncio.

Respirações pacientes.

Carinhos gentis.

— Se serve de alguma coisa... – Laura hesitou. — Não que ajude muito, eu acho, mas... Eu posso não ter a melhor visão do mundo, mas, não preciso disso pra saber o quanto você é linda, gostosa, maravilhosa e todos os adjetivos e sinônimos que conseguir pensar.

— É mesmo? – Giovana riu, tentando não revirar os olhos.

— Uhum... – os dedos de Laura subiram devagar pela mão da namorada. — Eu adoro cada textura, de cada parte do teu corpo... Macio, flácido, áspero, as textura das estrias no teu peito... Que, aliás, eu adoro...

— Eu sei!

— O jeito que minha mão encaixa na tua cintura...

— Hum... – Giovana suspirou baixinho, a mão de Laura passando por cada parte do seu corpo que ela mencionava, a voz ficando cada vez mais baixa enquanto seus lábios se aproximavam.

— Suas coxas...

Giovana selou os lábios da namorada com um beijo forte, cansando-se de dar atenção ao que mal podia ouvir e focando-se, por um instante, no que podia sentir. Sua pele ficou quente enquanto o beijo se aprofundava e as mãos de Laura se enrolavam devagar nas tranças de seu cabelo. O coração disparado, agora não com uma sensação de desconforto provocada por uma frase negativa, e sim por uma excitação quase insopitável... Mas, que precisava ser contida, afinal, tinha muita gente em casa.

Laura se afastou devagar, ouvindo passos se aproximando da porta e sentou-se novamente na beira da cama, ajeitando a saia do vestido e as mechas do cabelo no devido lugar.

Giovana tirou os aparelhos auditivos e se sentou preguiçosamente na cama, largando os aparelhos sobre o colchão enquanto a porta do quarto abria.

— Eu trouxe bolo. – Helen cantarolou, com um pratinho de bolo de chocolate acompanhado por um pouco de sorvete, em cada mão, entrando acompanhada de Sara.

— Eu posso comer bolo, então? Ou vai vir alguma frase ácida sobre isso? – Giovana arqueou a sobrancelha, se levantando para guardar os aparelhos na caixinha adequada.

— Giovana, por favor...

Ela apontou para as próprias orelhas para indicar que não estava ouvindo e forçou seu melhor sorriso dissimulado enquanto pegava os pratos das mãos de Hellen.

— Vamos ser sinceras, mãe, se toda sua auto-estima depende de  estar num certo peso e ficar completamente paranóica com medo de engordar um grama que seja ou com o que está ou não está comendo, não é uma auto-estima realmente alta, só uma máscara para todas as inseguranças existentes. Felizmente, a minha auto-estima não depende de quanto eu peso e do que eu como, então... – ela deu de ombros enquanto se sentava na cama novamente entregando um dos pratos de bolo para Laura.

Sara revirou os olhos antes de deixar o quarto.

Hellen observou as duas antes de suspirar:

“Porta aberta.”— declarou por fim, antes de deixar o quarto.

Laura deu uma colherada no bolo e saboreou um instante antes de apertar o joelho de Giovana.

“Você tá bem?”

Giovana deu de ombros, se sentando mais perto da namorada. Laura notou que ela não fez menção alguma a ir colocar os aparelhos novamente e tomou isso como um sinal de que havia cansado de ler lábios e oralizar.

“Vou ficar. Briga de família... Eu e minha mãe sempre acabamos bem no fim, só é... Difícil. Mas... Mas, eu sei que ela me ama, então...” – deu de ombros empurrando o prato de bolo intocado. – “Não posso comer isso. Vai leite e ovo.”

“Eu como então. Tá uma delicia.” — Laura deu de ombros antes de puxar o rosto de Giovana para perto e dar um belo doce com gosto de bolo e sorvete na namorada. – “Depois de acabar aqui, você podia me dar uma aula, não é?”

“Claro. Quer aprender sinais do que?”

“De comida.”

“Ok.”


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