Sobre as flores e as cores de abril escrita por JN Silva


Capítulo 2
Capítulo 2




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O nome do coronel Teobaldo de Almeida Linhares era conhecido na pequena cidade de Entre-Montes. O bisavô do homem fizera fortuna na juventude, ao descobrir em suas terras a existência de uma jazida de turmalinas que lhe renderam um riquíssimo patrimônio. Daí derivava o nome da fazenda: Pedra Azul. Os muitos anos de intensa exploração do mineral vieram a esgotar sua existência na velha gruta onde fora encontrado. A riqueza acumulada, no entanto, atravessou as gerações.

Atualmente, o coronel Linhares dedicava-se à criação de vacas leiteiras e de gado de corte. Tinha ainda alguns hectares de suas terras destinadas à cultura de café, mas este tinha como um negócio secundário. Com a exportação de leite, café, carne e seus subprodutos, ampliara as riquezas herdadas de seu pai, avô e bisavô, e com isso tornara-se um dos nomes mais influentes da região.

Mas a fama do coronel não se devia apenas à sua riqueza e ao seu histórico familiar. O homem não era um mau sujeito, mas era sistemático, de opiniões fortes e tenacidade irredutível. Ninguém se atrevia a lhe dirigir qualquer palavra, a fazer perguntas descabidas ou brincadeiras que sugerissem uma familiaridade que não existia. De posição firme, sua palavra quase sempre era tomada como ordem e era muito raro que ele mudasse de opinião a respeito de algo.

Em sua propriedade, além dos peões que trabalhavam com o gado e o café, o coronel possuía alguns outros empregados, que tratavam de tarefas específicas da casa. Entre estes, estavam Sebastião e Rosa, um casal de negros de meia idade que há muito moravam na fazenda, servindo à família do coronel. Enquanto Rosa lidava na cozinha, Sebastião fazia pequenos reparos ao redor da propriedade, cuidava de alguns outros animais que se criavam na fazenda e servia como cocheiro ou motorista toda vez que alguém da família precisava ir à cidade.

O paisagismo da propriedade era de uma beleza inquestionável. Para além das campinas onde o gado pastava e dos capões de café cultivados, uma alameda ladeada de ipês e jacarandás conduzia o caminho até a fazenda. Para além da mansão, um pouco mais adiante, subia um monte ao pé do qual se localizava a gruta que outrora fizera a riqueza dos Linhares. Agora, situava-se ali apenas como uma lembrança dos tempos venturosos do passado. Subindo o monte e dobrando a serra para a direita, era possível encontrar caudalosas cachoeiras, de águas claras e frias, escorrendo por entre as pedreiras. Essas águas alimentavam um ribeirão, cujos córregos serpenteavam adiante até desembocarem em um rio que passava por outras terras.

O coronel era casado com Dona Iolanda Delfim de Linhares e tinha duas filhas: Teresa, a mais velha e já uma senhora casada, e Laura, a caçula que havia caído doente há algum tempo. As duas eram sua maior riqueza e ele se orgulhava de ter casado muito bem a filha mais velha com um excelente partido. Tinha planos semelhantes para a filha mais nova e já havia manifestado interesse em oferecer sua mão para o filho de um amigo de longa data, também homem de posses, embora ainda não tivesse apresentado formalmente a oferta. Era apenas uma questão de tempo, até que a convalescente se recuperasse de sua enfermidade, para que o noivado fosse oficializado e se desse início aos preparativos do casamento.

Naquela manhã do início do mês de abril, a filha mais nova do coronel amanheceu pior do que de costume. Já fazia alguns meses que menina havia adoecido e seguia se recuperando lentamente. Ninguém entendia muito bem o que ela tinha, mas naquela manhã em específico, seu quadro de saúde estava visivelmente mais grave. Cheio de temor pela vida da jovem, o pai imediatamente mandara Sebastião à cidade, à procura de um médico que pudesse vir examiná-la.

Enquanto o homenzinho não voltava, o coronel andava de um lado para o outro na varanda, cheio de ansiedade, de minuto em minuto correndo os olhos pelo arvoredo da estrada, esperando o auxílio que logo viria.

***

A charrete de Sebastião quase voava pela estrada de terra, deixando para trás uma grande nuvem de poeira. Já havia mais ou menos meia hora que haviam deixado a cidade. Os pequenos baques causados pelos relevos e os pedregulhos da estrada tornavam ainda mais dolorido o lado direito das costelas de Bernardo, que já havia sofrido um grande impacto alguns minutos antes, em razão do acidente. Mas o moço seguira o caminho todo sem se queixar e sem dirigir palavra ao cocheiro, pois não queria desviar a atenção deste da tarefa que cumpria, compenetrado.

Até porque estava, ele mesmo, mergulhado nos seus próprios pensamentos. Tinha diante de si seu primeiro caso e não se tratava de um paciente qualquer: prestaria seus serviços à família do coronel Linhares. Quem quer que fosse tal sujeito, deveria ser muito importante, o que só aumentava sua responsabilidade e apreensão. Não que a classe social ou econômica tivesse qualquer relevância na sua forma de tratamento aos seus pacientes: trataria um mendigo e o Presidente do Brasil com a mesma dignidade e decência; mas o rapaz conhecia bem o sistema dos coronéis: poderosos, influentes e donos da palavra; se o coronel não ficasse satisfeito com seus serviços, ele poderia ter sua carreira arruinada naquela região.

À frente, a estrada fazia uma bifurcação, com um caminho que seguia à esquerda e outro que seguia adiante, em linha reta. Com um manejo de rédeas, Sebastião virou à esquerda e continuou a incitar o cavalo a correr.

— Nesse pedaço aqui, nóis já tamo nas terra do coroné... – comentou o homenzinho brevemente.

Bernardo correu os olhos pela propriedade. Dos dois lados da estrada, a imensidão dos pastos parecia não ter fim. Ao longe, o verde da relva estava salpicado de pontos brancos, pretos e amarronzados: as reses do coronel pastavam, em um rebanho numeroso, a perder de vista.

— Pelo o que estou vendo, esse coronel Linhares é um homem de muitas posses... – comentou Bernardo.

Sebastião deu uma leve risada.

— O dotô num viu nada ainda...

Em pouco tempo, as campinas foram ficando para trás e logo à frente a estrada se transformava em uma alameda comprida, ao final da qual era possível vislumbrar uma fazenda, com uma porteira de madeira aberta na entrada, e mais ao fundo, um casarão tingido de branco e azul, com uma varanda na frente. Conforme a charrete avançava, a visão da fazenda ia ficando mais nítida e já era possível ver até mesmo a figura inquieta do coronel a andar de um lado para o outro, coçando a barba grisalha.

Quando a charrete emergiu do meio das árvores, o olhar do coronel se encheu de esperança, como se avistasse a própria salvação. A expressão no rosto do homem era de pura ansiedade e foi por este motivo que Sebastião colocou mais ânimo no cavalo, que aumentou a velocidade da corrida, apesar de seu cansaço. Em questão de alguns minutos, a charrete parava em frente à escadaria de pedra que levava ao alpendre da casa.

Sebastião saltou da charrete com a agilidade de um gato e se pôs a subir a escadaria rapidamente, enquanto Bernardo vinha mais atrás, segurando uma maleta.

— Eu trusse o dotô, coroné! Óia ele aí! – disse Sebastião empolgado, apontando para Bernardo que subia as escadas o mais depressa que conseguia. – Esse é o dotô Garcia, eu encontrei ele pur acaso lá na cidade. Ele é de fora, chegô na cidade ainda agorinha, tava procurano hospedáge quando eu... eu... – e de repente, o homenzinho se calou, considerando que não seria uma boa ideia contar ao coronel a circunstância na qual encontrou o rapaz.

Mas nem tinha importância, pois os olhos do coronel estavam o tempo todo no jovem médico e pouca atenção ele havia prestado às palavras de Sebastião. Bernardo e o coronel Linhares trocaram um aperto de mão firme.

— É um prazer conhecê-lo, coronel... – disse o rapaz respeitosamente.

— Igualmente, meu rapaz, igualmente... – respondeu o outro, com certa veemência.

Mas rapidamente o alívio nos olhos do coronel se transformou em certa estranheza.

— Aconteceu alguma coisa? O doutor parece meio estropiado...

— Não foi nada, apenas um pequeno incidente... – respondeu Bernardo ligeiramente envergonhado, desejando não ter que dar maiores explicações sobre o ocorrido.

E para não alongar a conversa, logo perguntou:

— Mas onde está a sua filha?

— Oh sim, o doutor me acompanhe, vou levá-lo ao quarto dela.

E se virando para o cocheiro, ordenou:

— Sebastião, leve a bagagem do rapaz ao quarto de hóspedes. Faço questão de abrigá-lo em minha casa pelo tempo que durar o tratamento da menina.

E assim, enquanto Sebastião voltava para junto da charrete, os dois adentraram na casa. Logo após atravessarem a espaçosa sala de estar, o coronel o conduzira por um longo corredor, ao final do qual se encontrava o quarto da convalescente.  O coronel abriu a porta e estendeu a mão para dentro do aposento, convidando Bernardo a entrar.

— Aqui está ela, doutor.

— Com sua licença... – respondeu o rapaz, tirando o chapéu da cabeça e adentrando no quarto.

No entanto, assim que os olhos do médico repousaram sobre a paciente, o moço sentiu um solavanco dentro do peito e seu olhar se perdeu totalmente na imagem que acabava de ver.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado
Até o próximo capítulo :D



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