Epistrophia escrita por Julia A R da Cunha


Capítulo 1
Capítulo Único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/801025/chapter/1

Eu me lembro de cada amor. De cada olhar, pensamento, desejo, suspiro, toque. Afinal, Eu estou lá em todos eles.

Quando sabem quem Eu sou, muitos imaginam que presencio tantos detalhes que nem todos são “bons o suficiente” para tomar espaço em Minha memória. Eu lhes digo que não é bem assim que funciona. Vejam, é difícil explicar para quem não consegue captar toda a experiência que é ser algo como Eu. Mas saibam que Eu me lembro de tudo e de todos, mesmo que sejam muitos, ainda mais para vocês, que não compreendem as dimensões como a Mim.

Ainda assim, há de fato aqueles que Nos marcam mais do que os outros. Cujo sentimento é tão fervoroso, tão intenso e transcendental, que não há como deixar de relembrá-los com uma saudade agridoce.

Lembro-me de duas jovens, tão belas quanto jovens mulheres poderiam ser. Uma delas era Pauline Dimakos, uma moça de cabelos pretos cacheados curtos na altura da nuca seguindo uma nova moda que ressurgia, a pele olivada dos ombros e do rosto enfeitadas com umas poucas sardas. Seus olhos castanhos eram tão vívidos e curiosos que poderiam abrigar um universo inteiro em suas írises, assim como sua própria personalidade.

A outra era Aphrodite Maxwell, e você pode imaginar porquê esse nome sempre Me faz sorrir um pouquinho. Ela parecia um certo oposto de Pauline, mais reflexiva, com sua beleza e sensualidade reservadas, daquelas que te conquistam só com um olhar. Os cabelos dela eram lisos e escorridos por toda a extensão de suas costas num misto de loiro e ruivo, sua pele era clara como porcelana e as maçãs do rosto altas emolduravam sua face como uma escultura.

Foi por um acaso de um dia quente do verão de 1972 que as duas se encontraram nas margens de um lago do Michigan onde muitas famílias decidiram acampar. Era difícil não notar nenhuma das duas passando por perto, tão belas como eram.

Aphrodite gostava de caminhar pelo píer, colocar os pés na água e olhar para baixo, tentando desafiar seus olhos a vislumbrarem o que vivia nas profundezas. Eram algas? Ou peixes? Aquilo que cintilava seria uma concha ou apenas uma pedrinha refletindo a luz do sol?

— Procurando alguma sereia?

A voz a fez dar um pulo. Quando se virou, viu a moça morena com um óculos de sol e as mãos nos bolsos dos shorts, a luz do sol por trás de seus cabelos e um sorriso brincalhão nos lábios. Aphrodite corou e disfarçou.

Ela estalou a língua, segurou as mechas do cabelo e se inclinou um pouco mais para frente.

— Hm, não sei, mas acho que vi um tritão — brincou de volta.

As duas riram. Pauline aproveitou o momento para se sentar ao lado da outra, ambas aproveitando juntas o frescor da água e do vento, e a beleza da paisagem arbórea ao seu redor.

— Eu sou a Pauline — ela estendeu a mão. — E você?

— Aphrodite.

Pauline ergueu as sobrancelhas, o queixo caído. Aphrodite já esperava por alguma reação engraçada ou exagerada, pois todos sempre ficavam curiosos com o fato de ter o nome de uma deusa grega, e ainda um nome tão longo, não como Diana ou Juno - mesmo que esses sejam as versões romanas - muito mais comuns.

— É mesmo?! Que coincidência! Menina, sabia que minha família é grega?

Foi a vez da outra se surpreender.

— Uau! Não diga?

— Sim, pois é! Meu nome completo é Pauline Dimakos.

Elas riram outra vez, um pouco mais descontraídas e familiarizadas. Relaxadas, surpresas… encantadas. Daquele minuto em diante não teve mais volta e Eu, com meus éons de conhecimento sobre o amor e a vida, sabia exatamente o que cada uma delas pensava e sentia, e cada passo que tomariam dali para frente. Afinal, Eu estive lá em todos esses passos.

Estive lá no verão seguinte, quando as duas retornaram ao lago e o percorreram com passos rápidos e olhares agitados, sondando todas as pessoas ao seu redor em busca dos cabelos loiros ou das sardas familiares. Quando enfim se viram, seus sorrisos iluminaram minha alma por toda a noite, assim como a única lâmpada acesa no quarto de chalé que dividiram. Eu estava lá em cada suspiro.

Foi no final daquela viagem que finalmente trocaram os números dos telefones, sem mais receio de serem mal interpretadas uma pela outra. Durante todo o outono, trocaram conversas curtas e longas pelos fios enrolados dos aparelhos, e também por cartas, quando seu desabafo ou seus desenhos - pois Pauline era uma artista nata - eram íntimos ou sensuais demais para correrem o risco de alguém as ouvir no telefone. Aphrodite, por outro lado, aproveitava o seu curso de literatura comparada na faculdade de Barnard para buscar poemas antigos que pudesse enviar no correio, com apreço especial pela minha querida Sapphó, de quem também tenho tanta saudade.

Mas, como Minha experiência me dizia, e também os tempos em que viviam, mais cedo ou mais tarde, o conto de fadas precisa colocar os pés na vida real.

O quarteirão inteiro ouviu os gritos dos pais de Pauline quando sua mãe sem querer viu uma das cartas enquanto arrumava a cômoda da filha, os gritos dela do mais puro desespero rasgaram Minha carne e Minha garganta, como se Eu mesma urrasse para que não jogassem as folhas ao fogo. Mas eles não a impediram, nem impediram seu pai de deixá-la com um corte no lábio com o tapa. A viatura que os vizinhos chamaram pelo barulho chegou tarde demais e os oficiais não foram de grande ajuda quando descobriram o motivo de Pauline ter apanhado.

O único que a abrigou foi Dimitris, que se esgueirou pela casa no calar da noite e envolveu a irmãzinha com sua jaqueta comprida.

— Junte suas coisas. Nós vamos embora daqui — ele sussurrou em seu ouvido enquanto a abraçava e afagava seus cabelos.

Pauline mal conseguia falar. Sua garganta ainda doía muito e os lábios não ajudavam muito.

— Mas e o seu trabalho? — Sua voz soou quase como um fio. Só os ouvidos dele e os meus foram capazes de escutar.

— Eu arrumo outro. Você vai morrer se ficar aqui e eu não vou ficar onde fizerem isso com você. Vamos. Antes que eles acordem.

As lágrimas rolaram aos montes por sua face. Pelo menos agora, elas tinham um pingo de contentamento, mesmo que mesclado com tantas dores que sofreu com tamanho golpe. Ela não sofreu apenas com a rejeição dos pais ou com os poemas e desenhos incinerados, e sim com a destruição de suas lembranças tão felizes, do abraço caloroso da mãe, da voz retumbante do pai ao cantar e contar histórias de sua família e terra natal, de sair fugida da casa onde cresceu, como se fosse uma criminosa, não como se fosse o seu lar desde pequena.

Nada daquilo existiria mais.

O som da porta do carro se fechando foi o ponto final definitivo. Não teriam mais como voltar atrás. Dimitris ligou o motor e dirigiu, dirigiu, por horas sem fim, em busca da faculdade Barnard em Nova York. A viagem foi mais cansativa do que o processo de procurar por informações, mas os minutos silenciosos da estrada e dos postes escorrendo ao seu lado foram bons para acalmar os humores. Em Nova York, eles já estavam com a mente mais limpa e firme para procurar por Aphrodite.

Assim que encontraram Barnard, precisaram apenas localizar o centro de estudos literários e pedir informações para as pessoas dali. Logo tinham o endereço do dormitório em que ela vivia. Quando a porta do quarto se abriu e elas se viram, todas as emoções explodiram, boas ou ruins. Elas se abraçaram tanto que quase puderam se fundir em um único corpo. Dimitris também as envolveu com seus braços e uniu os três em calor e em choro.

Sabe, poucos imaginam que Eu também estou lá em todos os tipos de amores. Costumam sempre assumir que trabalho apenas com meu querido filho Éros, sexual e fogoso, porém também me encontro em ágape — universalizado e grandioso —, estou na philía — nos risos explosivos de amigos —, na lealdade de phílos, no amor próprio de philautía e no reconfortante storge, receptivo, fraternal, que une as famílias como Dimitris se uniu amou sua pequena Pauline e a Aphrodite, que tanto tirava suspiros da irmã.

Eu chorei, sorri e os envolvi com Meus próprios braços. Estava lá naquele momento e nos outros.

Lá Me encontrei quando vi a doce e intelectual Aphrodite defender sua tese com notas máximas, pouco antes de os outros alunos do dormitório perceberem que Pauline não era só sua amiga e tentarem apagar seu nome dos cadernos de honrarias. Agora não importava, pois conseguiram juntar seus trocados com os novos empregos para alugar um pequeno apartamento no Brooklyn.

Também as acompanhei nos primeiros movimentos a favor de um amor livre, da aceitação e receptividade. Estive lá quando elas apanharam novamente e foram encarceradas como desordeiras, e também quando comemoram a liberdade. Por mais que todas as circunstâncias tentassem separá-las, por horas, dias ou meses, Eu sabia que assim que seus sorrisos se cruzassem de novo, o mesmo esplendor das duas meninas caçando sereias no píer do lago no Michigan.

Gostava de quando os três colocavam músicas e dançavam a noite inteira, passando por todos os gêneros possíveis com uma garrafa de cerveja nas mãos. Apreciava os momentos em que as duas faziam amor sob a luz da lua prateada atravessando a janela, e quando se encontravam com novos amigos que as aceitavam por quem eram. E claro, do sempre quente abraço do irmão devoto quando sua irmãzinha chorava.

Infelizmente, senti suas dores quando seus amigos partiram, quando o telefone tocou informando que o pai e então a mãe dos irmãos faleceram, da partida dos pais de Aphrodite e, por fim, quando a bela artista curiosa se foi.

Foi por muito pouco que a querida mulher com quem compartilho um nome não desistiu da vida por completo sem sua alegre Pauline. Ela definhou, parando de sair, pulando essa depois aquela refeição, tornando-se mais e mais reclusa, diminuindo seu mundo até apenas caber em seu quarto. Em parte, ela se sentia ridícula. Uma mulher de quase sessenta anos agindo como uma moça. Sua outra parte não sentia absolutamente nada, apenas o vazio.

Foi difícil relembrar-lhe de forma positiva do sorriso da artista, dos seus desenhos talentosos, dos cachos balançando ao vento da janela aberta do carro, do novo irmão que ganhou com ela. Mais uma vez, precisei sussurrar as palavras de Sapphó para retirar-lhe um sorriso esmaecido dos lábios.

No trono Afrodite imortal

Filha de Zeus, que tece ardis,

Não me dê tristes desejos, senhora

do coração.

Mas, antes, vem para perto agora

S’alguma vez ouviste minha voz de longe,

Me atendeste e deixaste o teu pai

no lar dourado.

[…]

Eles chegam e tu, ó abençoada,

Me sorris com teu rosto imortal,

Me perguntas por que de novo sofro

E por que a chamo.

Uma lágrima solitária escorreu por sua bochecha quando abriu o livro envelhecido e reencontrou os versos. Os finais ela se lembrava de cor e, num alento dos cantos mais profundos de sua alma, entoou:

— Vem me libertar da dificuldade / E aquilo que o meu coração anseia / Realizar, deusa, realiza. / Sê minh’aliada.

E Eu sorri. Mal sabia ela que sempre fui sua aliada mais íntima e que senti todas suas alegrias, dores, prazeres e desgostos. Ali ela renasceu e passou a conhecer o mundo que tanto encantou sua querida, em especial a bela terra de mares azuis de onde os ancestrais de Pauline, Dimitris e Eu, que lhe dei o Meu nome, viemos.

Lembro-Me delas com um sorriso e lágrimas quentes. Poucos imaginam que presto sim atenção a vós, mortais. Como não poderia? Eu, que lhes dou Meus amores e sinto todos os seus, cada suspiro, cada sorriso, cada bater de coração.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

O hino de Safo à Afrodite foi retirado do site https://www.helenos.com.br/a e traduzido pela administradora Alexandra.

O título do conto é um epíteto da deusa Afrodite, que significa "aquela que se torna ao/que traz o Amor". As pesquisas foram retiradas dos sites:

http://templodeafrodite.weebly.com/uploads/2/5/1/3/2513060/ep%C3%ADtetos_de_aphroditeevenus.pdf

https://dallanchantal8.wixsite.com/cortejopagao/single-post/2016/12/04/afrodite-ap%C3%AAndice-ep%C3%ADtetos

https://www.theoi.com/Cult/AphroditeTitles.html



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Epistrophia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.