Dear Mr. Nemesis escrita por Nekoclair


Capítulo 9
Capítulo 9 - parte 1




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Exhausted Neverending Delusion

 

 

Terça-feira. Uma noite insone na Torre de São Petersburgo.

Sua mente se encontrava cansada e seus lábios franzidos, as expressões em seu rosto aquelas de completo descontentamento. Junto aos seus pés jaziam suas esperanças e sonhos, os quais haviam sido cruelmente dilacerados, feitos em pedaços, estando agora emaranhados nas coberturas que ele havia chutado para longe. Dentro de sua boca, um sabor azedo e desagradável agredia suas papilas gustativas — o gosto da contínua decepção a qual foi submetido por tanto tempo, tempo demais.

Estava farto de se ver decepcionado de novo, e de novo e de novo... Nada jamais o encontrava, exceto o desprazer de de se ver lembrado repetidamente de que a realidade das coisas podia ser cruel e destruir até mesmo os mais preciosos sonhos de infância de uma pessoa.

O adolescente piscou para o teto, o qual ele podia enxergar perfeitamente bem mesmo seu quarto estando completamente imerso em trevas; um sinal de quanto tempo ele já se encontrava alí, deitado de costas e olhando para tudo e para o nada, às vezes prestando atenção nos pensamentos que corriam soltos, outras mirando casualmente o ambiente ao redor, sua mente tão vazia que era capaz de perceber pequenos detalhes em seu quarto que não tinha notado até então — como uma trinca na moldura da cama, ou uma mancha no canto da parede.

Um suspiro escapou de seus lábios, mais um dentre outros tantos que já haviam escapado antes.

Não aguentava mais.

Era hora de resolver os problemas com as próprias mãos.

 

—--

 

Victor se virou para o espelho e sorriu após estudar seu reflexo, quase se cegando no processo. Ele estava radiante, tanto quanto a luz do sol refletida na superfície de um lago cercado por um deserto ardente, e em seus profundos olhos azuis residia uma felicidade suprema. Nem mesmo a chegada de uma dívida beirando os cinco dígitos poderia acabar com seu bom humor.

Victor nunca antes se sentiu tão realizado quanto naquele momento. Finalmente tinha encontrado as peças que faltavam e podia enfim preencher a lacuna em seu coração, duas palavras cuja ausência foram responsáveis pelo buraco escuro que foi forçado a carregar em seu peito por tanto tempo — Vida e Amor. A satisfação que estava sentindo era indescritível, não se tendo ainda criado palavras que fossem capazes de expressar adequadamente o peso do que estava sentindo.

Depois de sair do quarto, dirigiu-se em direção à porta de entrada, fazendo uma breve parada no meio do caminho para encher a tigela de Makka com água fresca. Quando acariciou sua leal companheira, a cadela prontamente pressionou de volta, lambendo seus dedos de maneira afetuosa. Um sorriso surgiu nos lábios de Victor e ele se endireitou, pondo-se devidamente de pé. Retomando o que estava fazendo antes, Victor se dirigiu ao átrio, extinguindo a distância restante em pouco tempo. Ele tinha acabado de pousar a mão na maçaneta quando virou o corpo a fim de olhar a porta postada no outro lado da sala, a qual o estava encarando de volta de forma imponente.

Desde o início da semana, a porta do quarto do Yurio permanecera fechada, impedindo qualquer um, quem quer que fosse, de espiar o interior do cômodo, mesmo que apenas para ver se a pessoa trancada lá dentro continuava viva. Victor só esperava que Yurio estivesse abrindo a janela pelo menos uma vez ao dia, ou então o quarto começaria a lembrar em muito um sótão estufado bem em breve.

Há alguns dias, havia conseguido convencer seu discípulo cabeça dura a deixar sua toca e ajudá-lo na arrumação do laboratório; apesar de alguns estímulos — ameaças — terem sido necessários. Victor esperava que o fazer auxiliar com as máquinas melhoraria seu humor, o que pareceu funcionar por um tempo, a sombra de um sorriso brotando nos lábios do adolescente sempre que Victor fazia uma pausa para explicar como esta ou aquela invenção funcionava, no entanto, assim que eles terminaram o que tinham para fazer e retornaram para casa, Yurio voltou para seu quarto e para sua reclusão, sem nem antes lhe direcionar uma palavra ou mesmo um simples olhar. Victor então percebeu que tinha sido por demais otimista.

Para começar, Victor nem mesmo sabia o que havia levado Yurio a agir daquela forma. Victor tentou lhe dizer que não era culpa dele o plano ter fracassado, mas, em resposta, Yurio apenas soltou os cachorros em cima dele, fazendo com que Victor riscasse esse motivo de sua lista de razões do porquê o garoto estava agindo como se tivesse o diabo no corpo.

Tinha sido assim tão frustrante para ele o plano ter fracassado? Era isso? Ele estava decepcionado?

O sabor da derrota o desagradou tanto assim?

Victor tentou perguntar ao Chris e ao Katsudon, mas infelizmente nenhum dos dois tinha qualquer boa sugestão a oferecer, por consequência, Victor seguia sem saber como lidar com o problema incômodo que tinha em mãos.

Com um suspiro profundo, Victor olhou novamente para frente e, por fim, girou a maçaneta, deixando sua casa para trás e caminhando rumo ao elevador com passos pesados.

— Talvez Yuuri tenha alguma ideia — Victor sussurrou para si mesmo, seus pensamentos voltados ao homem com o qual ele estava indo se encontrar.

O elevador apitou e a porta se fechou em suas costas.

 

—--

 

Yurio olhava para o teto, pés balançando conforme a batida da música que tocava próxima aos seus ouvidos. À sua frente estava outro dos livros do Victor, desta vez sobre Termodinâmica, o qual estava lhe dando uma baita dor de cabeça. Suspirou profundamente e se deitou sobre os braços, descansando o corpo na mesa. Ele tinha acabado de começar a relaxar quando a batida de uma porta o fez abrir os olhos novamente, seus ouvidos de repente mais atentos aos sons vindos de fora da reclusão de seu quarto do que à música que saía de seu fone de ouvido.

Yurio tirou o fone da cabeça e pousou-o na mesa. Aguardou, mantendo-se tão quieto e imóvel quanto possível. Trinta segundos se passaram, depois um minuto e finalmente dois minutos e meio. Ainda assim, não importava quanto tempo esperasse, seguia sem conseguir ouvir nada além dos ocasionais passos desajeitados da cadela vagando pela casa, ou o sussurro suave do vento entrando pela janela de seu quarto.

Com um sorriso nos lábios, Yurio empurrou a cadeira para trás e se levantou. Esteve ansioso por este momento desde o dia de ontem, para que Victor finalmente saísse de casa para ir no encontro ridículo dele com o suposto namorado, fosse ele quem fosse. Agora, enfim poderia colocar seu plano em prática.

Saindo do quarto, Yurio não perdeu tempo, parando apenas para dar uma coçada rápida atrás da orelha de Makkachin — como poderia dizer não à cadela, que veio até ele com o rabo abanando alegremente atrás de si, sempre tão feliz em ver sua cara rabugenta? Ignorar Makkachin era o mesmo que cometer um crime grave, ou talvez ainda pior.

— Desculpa, Makka, tenho coisas importantes para fazer agora — Yurio disse à cadela quando enfim recuou suas mãos.

Nos últimos dias, Yurio tem tido os pensamentos bastante agitados, o que manteve sua cabeça ocupada o tempo todo, tentando descobrir uma forma de alcançar sua vingança. Acima de tudo, queria dar ao seu estúpido mentor uma amostra do que ele era capaz, e do que o próprio Victor deveria estar fazendo em vez das coisas inúteis que ele chamava de planos, dos quais ele tinha tanto orgulho por alguma razão. Yurio queria que Victor visse o quão idiota ele tem sido, e que percebesse como um vilão de verdade agia. Talvez isso o fizesse voltar a ser o que já foi um dia, ou assim Yurio esperava.

Descendo as escadas, Yurio caminhou rumo ao laboratório, seus passos largos e apressados, atravessando a totalidade do corredor pouco iluminado em questão de segundos. Quando finalmente alcançou seu destino, cruzou o amplo salão sem lhe dar muita atenção, caminhando, ao invés disso, diretamente ao canto onde ficavam estocados os planos; a despensa do laboratório, basicamente, que era também onde todas as antigas máquinas do Victor se encontravam amontoadas.

No canto mais afastado da despensa, havia um amplo armário de madeira, o qual acomodava pastas e mais pastas, que haviam sido colocadas lado a lado e comprimidas tanto quanto necessário para que o armário pudesse acomodar todas as coisas que era suposto de reter. As pastas, de tonalidades coloridas e abrangendo todas as cores do arco-íris, estavam repletas de relatórios, documentando todas as invenções que já haviam passado pelas mãos do Victor, além de plantas e anotações que o vilão havia feito ao longo das respectivas etapas de desenvolvimento, suas anotações preenchendo as páginas de cima a baixo, não deixando nenhum espaço em branco nem mesmo nas margens.

Estudando as etiquetas coladas na lateral das pastas, Yurio puxou das prateleiras as que lhe chamaram a atenção, ou seja, aquelas que pareciam minimamente promissoras. Para sua grande decepção — mas não surpresa — a maioria não passava de lixo, e ele não planejava perder tempo com elas.

— Como ele pode achar que as coisas estão boas como estão se só perde tempo com planos idiotas? — Yurio questionou enquanto empurrava uma pasta para o lado; no rótulo se lia: "Operação: SOFTNER"

Depois de vasculhar as pastas por mais algum tempo, Yurio olhou desapontado para as duas — apenas duas — que ele havia conseguido salvar do amontoado de fracassos que Victor guardava dentro do armário. A situação não parecia muito promissora. No entanto, bem quando sua esperança começava a empacotar as malas para deixá-lo de vez, uma pasta de um vibrante e sujo amarelo chamou sua atenção. Estava guardada bem no canto do armário, apertada contra uma pasta vermelho-sangue, e a etiqueta que era suposta de estar colada na lombada havia caído em algum momento no passado, deixando Yurio sem ideia do que ela poderia carregar em seu interior.

Não sabia porque de repente estava se sentindo otimista, porque aquela pasta suja e amarrotada estava lhe passando tanta esperança, mas se viu buscando por ela antes que pudesse encontrar as respostas para qualquer uma dessas dúvidas. Quando seus dedos se fecharam ao redor do plástico imundo, seu coração começou a palpitar tão forte que o sentiu bater contra a garganta.

A pasta era pesada, o elástico estava em péssimas condições e vários papéis escorregaram para fora assim que a puxou para fora da prateleira. Xingando baixinho, Yurio apanhou as pequenas notas que haviam se espalhado pelo chão e, após recuperar todas elas, enfim abriu propriamente a pasta para investigar seu conteúdo. Dentro estava uma bagunça, e a falta de organização com a qual se deparou não tinha a cara do Victor. Alguns dos papéis estavam mais limpos, menos amassados, e aparentemente haviam sido colocados ali apenas recentemente; outros, por outro lado, estavam amarelados devido à passagem do tempo, as rugas que corriam pelas páginas tão grossas quanto as veias presentes nas pernas de uma senhora idosa.

Yurio remexeu dentro da pasta por algum tempo, puxando os papéis para fora e os empilhando, separando-os por idade e conteúdo. Ele, porém, só foi capaz de discernir o tema do projeto quando encontrou o relatório principal no fundo da pasta. Seus olhos se arregalaram ao ler o título.   

— Será? — sussurrou, puxando rapidamente o relatório para fora da pasta.

Era.

Yurio sorriu.

Esta pasta continha informações a respeito da invenção que Victor mencionara no outro dia, quando limpavam o laboratório e checavam as máquinas, a que possuía alto poder de destruição. A invenção mais promissora do Victor, na opinião de Yurio.

— Isso talvez funcione — Yurio disse a si mesmo, entusiasmado, já espalhando os papéis pelo chão e abrindo o relatório.

Em seus lábios, o sorriso era sinistro e um tanto malicioso.

 

—--

 

Ultimamente, Victor e Yuuri encontravam-se na fase "lua de mel" do relacionamento, o que significava que cada pequena tarefa era uma oportunidade — uma desculpa — para eles se encontrarem e saírem em um encontro. Hoje, Victor estava acompanhando Yuuri na busca por um novo casaco, já que o que ele tinha em casa havia começado a mostrar traços de seu uso constante, uma atividade rápida e simples que acabaria se prolongando até o fim do dia, até que eles não tivessem mais escolha a não ser se separar ao que o Sol iniciava sua despedida, o céu dando boas-vindas a uma noite mais fria e escura; o oposto de um problema, na opinião de Victor.

Victor estava mais do que contente por poder passar um tempo na companhia do namorado — Yuuri, o homem por quem ele esteve apaixonado por tanto tempo, e cuja mão ele finalmente era capaz de segurar sem ter de pensar duas vezes antes de agir. Seus dedos se entrelaçavam com naturalidade quando caminhavam lado a lado, um sorriso doce sendo lançado em sua direção toda vez que isso acontecia.

Amar alguém e ser amado de volta se mostrou uma experiência ainda mais mágica do que ele jamais imaginou possível, e ele não tinha ideia de como havia conseguido viver todos esses anos sem ter sua outra metade ao seu lado. Agora que estavam finalmente juntos, Victor estava decidido a aproveitar ao máximo as chances que tinha, estar na companhia de Yuuri sendo tudo exceto uma perda de tempo.

— Está tudo bem? — Yuuri perguntou e Victor olhou para ele com um sorriso nos lábios, uma expressão que dificilmente deixava seu rosto quando estavam juntos.

— Sim, por quê?

— Você parece pensativo.

Victor murmurou um "hum" sem sentido e puxou Yuuri para mais perto, soltando sua mão para, ao invés disso, agarrar-se ao seu braço. Ele olhou para cima e suspirou.

— Só pensando que o dia está muito bonito hoje, — Victor disse, seus olhos ainda voltados ao céu, nuvens brancas e macias passeando sem destino pela imensidão azul sobre suas cabeças. Seu sorriso curvou-se um pouco mais e seus olhos estreitaram conforme ele retornava sua atenção ao Yuuri — mas ainda assim não tão bonito quanto a pessoa ao meu lado.

Yuuri corou e o tom rosado que tomou conta de seu rosto alcançou inclusive suas orelhas. O sorriso de Victor se alargou ainda mais, a visão diante de si uma que ele duvidava algum dia se cansar de ver.

— Geez, Victor... — Yuuri virou o rosto, tentando esconder o calor visível em seu rosto. Suas palavras morreram ali mesmo, qualquer coisa mais que ele tivesse a adicionar se perdendo perante o constrangimento que ele estava sentido.

Embora a ideia de desfrutar daquela vista por um pouco mais de tempo fosse muito tentadora, Victor decidiu que voltar ao tema, ao motivo deles estarem ali nas ruas do centro da cidade, era o melhor a se fazer. Isso também daria ao Yuuri uma desculpa para deixar sua concha novamente.

— Então, onde quer ir ver o casaco? Alguma loja específica em mente?

Yuuri virou-se em sua direção, seus olhares se encontrando no pequeno espaço entre eles, e então seu braço se fechou ao redor do de Victor — se ele fez isso conscientemente ou não, Victor não sabia dizer. Inclinando a cabeça e analisando os arredores brevemente, o homem parecia pensativo.

— Não sou muito do tipo que se importa com marcas, então não sendo muito caro, está bom pra mim — Yuuri respondeu, por fim. Victor havia antecipado algo do tipo, razão pela qual fez algumas pesquisas por conta antecipadamente.

Dar uma olhada nos sites de algumas lojas e ligar para Chris para pedir algumas recomendações não era nada de extraordinário, entretanto, ele ainda assim não planejava anunciar nada disso em voz alta. A essa altura, tinha pleno conhecimento do tipo de pessoa que seu namorado era e, por essa razão, era de certa forma capaz de dizer o tipo de coisa que o deixaria estressado ou o faria se sentir desconfortável. A última coisa que Victor desejava era que Yuuri pensasse que ele havia lhe causado algum problema, especialmente quando Victor fez tudo que fez por vontade própria.

— Conheço algumas lojas legais — foi tudo que Victor se limitou a dizer.

Yuuri lhe instruiu a mostrar o caminho e, presos naquele abraço lateral do qual ainda não haviam se desvencilhado, mantiveram os pés em movimento, percorrendo as ruas do centro em um ritmo lento, que não transparecia qualquer pressa.

O destino deles era uma grande loja de roupas localizada em uma rua paralela àquela que cortava o centro ao meio. Ao contrário da rua principal, que sempre se encontrava cheia e bastante movimentada, aquela por onde eles transitavam estava majoritariamente vazia, quase não havendo pessoas por perto, o que lhes permitiu diminuir um pouco mais o passo e grudar um pouco mais um no outro numa busca interminável por proximidade; algo bem-vindo por ambos, já que nenhum deles via motivos para se apressar. Infelizmente, a fachada da loja logo apareceu no horizonte, deixando-os sem opção além de se separarem.

Uma campainha tocou assim que eles pisaram no estabelecimento e um vendedor veio recebê-los nem um segundo depois. O homem — vinte e poucos anos, provavelmente um estudante terminando a faculdade — sorriu e olhou de Yuuri para Victor, onde permitiu que seu olhar se demorasse um minuto a mais quando se deu conta da identidade do homem parado à sua frente.

— Boa tarde. Me chamo Jihad, sejam bem-vindos. Estão procurando algo específico? Ou gostariam de dar uma olhada na coleção nova? — o vendedor perguntou, seu tom educado mas mecânico.

Yuuri estava prestes a dispensá-lo quando Victor interveio.

— Estamos procurando um casaco — Victor disse, acenando para o homem ao seu lado a fim de indicar para quem seria o casaco, e segurou a mão de Yuuri sem pensar muito no que estava fazendo.

Perante o contato repentino, Yuuri sobressaltou, sua reação imediatamente acendendo uma lâmpada na cabeça de Victor, um alerta. Perguntando-se se aquele teria sido um movimento errado, Victor considerou soltar de sua mão, entretanto, antes que pudesse fazê-lo, os dedos de Yuuri se fecharam em torno dos dele. Olhando discretamente em direção ao Yuuri, Victor percebeu que um pequeno sorriso havia encontrado residência nos lábios do homem, e isso bastou para livrá-lo de suas preocupações.

Com as mãos acomodadas confortavelmente uma na outra, o casal seguiu atrás do vendedor, rumo à seção onde os casacos estavam em exposição.

— A gente se vira a partir daqui. Obrigado — disse Victor.

O vendedor prontamente deu meia-volta e voltou para seu lugar ao lado do caixa, com quem trocou algumas palavras enquanto olhava na direção deles.

Victor sorriu para os dois funcionários da loja antes de voltar sua atenção para os casacos alinhados diante dele, cujas cores variavam do cinza mais suave ao tom de roxo mais vibrante que ele já teve o prazer de ver na vida. Victor conseguiu entender porque Chris gostava tanto desta loja só de olhar para o grande leque de cores disponíveis.

Ao seu lado, Yuuri estava calmamente olhando para os casacos pendurados à sua frente. Depois de examinar algumas peças, puxou um cabide e mostrou a peça ao Victor.

— O que acha?

Instigado pela pergunta, Victor se virou, sendo recebido por um rosto repleto de incerteza e por um casaco cinza escuro, o qual Yuuri estava segurando diante do nariz. O casaco em si não era feio, mas era simples demais para o seu gosto. Além disso, ver tantos bolsos apenas serviu para que Victor se perguntasse o que uma pessoa era suposta de fazer com tantos deles.

— Hmm, não sei. Que tal algo um pouco mais animado, com um pouco mais de cor?

Yuuri franziu os lábios e colorou o casaco de volta onde pegou, escolhendo outro.

— Que tal esse, então?

Desta vez, era uma jaqueta marrom escura. Era tão longa que facilmente alcançaria os joelhos do Yuuri. As costas tinham um corte largo, e Victor não precisou olhar muito para perceber que não ficaria legal no corpo esguio do Yuuri.

O silêncio que reinou nos segundos seguintes foi uma resposta em si só, ou talvez seus pensamentos simplesmente tivessem transparecido por demais em suas expressões, pois Yuuri logo devolveu o casaco ao cabideiro. Victor se sentiu culpado mas, visto que Yuuri não demorou em dar continuidade à busca, vasculhando novamente por entre as peças disponíveis atrás de uma que lhe agradasse, ele não se sentiu no direito de ficar se remoendo pelo que disse ou, no caso, deixou de dizer. Seguindo seu exemplo, Victor se voltou para os casacos pendurados à sua frente e começou a estudá-los um a um, sua busca não se prolongando muito, pois um casaco roxo basicamente suplicava por receber sua atenção.

Atentando-se à extremidade do cabideiro, Victor apanhou o casaco e o olhou de cima a baixo antes de assentir em aprovação. Certamente uma boa escolha.

— Yuuri — ele chamou e, assim que o namorado se virou para ele, Victor lhe mostrou o casaco. — O que acha?

Yuuri franziu a testa, o que estava longe de ser a reação que Victor havia antecipado. Ele olhou para o casaco, depois para o chão, depois para o cabideiro atrás dele; para qualquer lugar exceto Victor, como se estivesse com vergonha de encará-lo naquele momento.

— É... bem colorido — foi tudo que Yuuri foi capaz de dizer.

Victor não tinha ideia do que responder, porque... bem, sim, o casaco era colorido, não havia como negar esse fato. Ele olhou para o casaco uma vez mais e então o colocou de volta junto às outras peças, sem dizer outra palavra. Talvez algo menos vibrante então.

— E este? — perguntou, desta vez segurando um casaco tingido de amarelo mostarda, mas em um tom tão sóbrio que beirava o ocre.

— É um pouco curto…

— Bem, sim, é uma jaqueta cropped — explicou Victor, um tanto apático, e a seguir acrescentou: — Ficaria bem em você.

Sua afirmação não pareceu livrar Yuuri de suas inseguranças, nem um pouquinho. Ocupando-se com as mãos, incapaz de impedir que seus dedos se esfregassem uns contra os outros no que Victor só poderia supor ser um reflexo do nervosismo que ele estava sentindo, Yuuri inclinou a cabeça levemente para a frente. Ele parecia estar pensando, organizando os pensamentos, preparando-se para falar algo. Victor aguardou.

— Não tenho tanta certeza de que ficaria bem — admitiu, por fim. — Sou... meio básico. Ordinário.

Os olhos de Victor se arregalaram, mas apenas por um breve segundo. Ele balançou a cabeça e deu um passo adiante, pousando as mãos nos ombros do Yuuri e basicamente forçando-o a olhar para ele. Yuuri resistiu inicialmente, mas sua resistência não durou muito. Depois de um tempo, ele se rendeu e permitiu que seus olhos se encontrassem no pequeno espaço entre eles.

— Isso não é verdade — Victor disse quando seus olhos se encontraram, e sua voz não vacilou nem por um instante. Esperava que sua convicção fosse capaz de alcançá-lo.

Seu namorado, seu querido e precioso Yuuri, não tinha razão alguma para estar pensando coisas do tipo, para se menosprezar ou se sentir inseguro por conta de sua aparência, não quando ele era dono de tantas qualidades incríveis. Seus olhos castanhos eram bonitos, profundos e um tanto misteriosos. Seu corpo era esguio, mas os músculos se encontravam todos nos lugares certos; mais de uma vez, Victor se viu pensando em como eles seriam sem as roupas os cobrindo, embora soubesse que ainda era cedo para pensar nessas coisas. E seu sorriso... Oh, seu sorriso sozinho conseguiria iluminar toda a Torre de São Petersburgo de tão deslumbrante que era.

Victor não tinha ideia da origem da insegurança que Yuuri sentia, mas estava pronto para lutar contra fosse o que fosse. Queria que Yuuri se sentisse bem sob a própria pele. Não pediria que ele amasse tudo em si mesmo, pois isso provavelmente seria pedir demais por hora, mas queria que Yuuri ao menos pudesse apreciar as partes que ele já era capaz de pensar de forma minimamente positiva.

— Yuuri — Victor chamou, permitindo que suas mãos deixassem os ombros do homem e se reencontrassem com as mãos dele. Sorrindo, Victor desejou que todos os seus sentimentos e pensamentos o alcançassem desta forma.

Yuuri piscou e olhou em direção aos pés. Quando levantou a cabeça novamente, seu olhar foi diretamente ao encontro dos gentis olhos azuis do Victor.

— Sim?

— Confia em mim?

Yuuri piscou mais algumas vezes. Em seu rosto, Victor podia ver claramente sua pergunta sendo lançada de um lado ao outro, sendo mastigada e remoída até que todas as palavras fossem transformadas em entidades separadas, excluídas do contexto de uma frase completa. Talvez Yuuri tivesse pensado que isso de alguma forma o ajudaria a compreender o que seu namorado quisera dizer com a pergunta.

Vendo a confusão em seu rosto, Victor se sentiu na obrigação de complementar sua fala anterior.

— Deixa eu escolher algumas roupas pra você?

Yuuri sobressaltou, sua boca permanecendo aberta por breves segundos. Ele parecia estar considerando a ideia, o que Victor já via como uma pequena vitória, uma digna de comemoração. Tudo que Yuuri precisava era de outro pequeno empurrão.

Voltando-se para as roupas alinhadas ao lado deles, Victor vasculhou as peças, seus dedos deslizando pelo tecido multicolorido em alta velocidade e seus olhos os acompanhando. Então, eles pararam.

— Por exemplo — Victor puxou um cabide não tão aleatoriamente — esta jaqueta azul bem aqui. Ela tem dois bolsos grandes de cada lado, algo que sei que você gosta em uma peça de roupa, e também um capuz removível. O corte do casaco é estreito e vai cair bem em alguém esguio como você. Por último, mas não menos importante, a cor complementa seus olhos. Acho que você fica muito bem em azul, especialmente tons mais fortes.

Yuuri não disse nada, limitando-se apenas a encarar o casaco que Victor ainda não havia largado. Ele não parecia completamente insatisfeito com a escolha, então Victor decidiu continuar, arriscando uma segunda tentativa. Passando o cabide para o outro braço, ele estendeu a mão ao cabideiro, onde um segundo casaco já estava à sua espera.

— Agora, este… Amarelo, dois tons mais escuros que mostarda. É uma jaqueta cropped, eu sei, mas escuta. Não é estreita e apertada; pelo contrário, é larga e parece bastante confortável. Possui bolsos menores que o outro casaco, mas você pode abotoá-los, mantendo suas coisas seguras. Não tem capuz, mas a frente é bonita e tem uma gola larga que você pode levantar para proteger o pescoço do vento.

Yuuri juntos os lábios, mas suas expressões não se mostravam insatisfeitas. Na verdade, ele parecia estar contemplando o que Victor lhe havia dito, tentando dar uma chance às roupas que haviam escolhido para ele. Seu nervosismo, porém, seguia bem evidente. Victor estava se perguntando o que poderia fazer ou dizer para ajudar Yuuri a relaxar quando teve uma ideia.

Ele juntou as mãos e sorriu.

— Por que você também não escolhe umas roupas para mim?

Yuuri pareceu surpreso, aparentemente não tendo jamais cogitado escutar uma sugestão daquelas.

Eh?! Por quê?

— Por quê? Bem, isso tornaria as coisas justas — Victor explicou, pousando um dedo nos lábios que, agora, sorriam ainda mais largamente do que antes. — Além disso, não acha que seria divertido?

Yuuri o encarou em silêncio pelo que pareceu uma eternidade. Em sua cabeça, uma discussão acalorada parecia estar acontecendo. Victor assistiu a cena sem dar voz sequer a um suspiro, temendo que o menor dos sussurros fizesse o frágil equilíbrio existente dentro do plano mental de Yuuri tender para o lado ao qual Victor era menos favorável.

Yuuri franziu os lábios e balançou levemente o corpo, seus calcanhares o empurrando para cima e para baixo em um movimento suave. Ele estava inquieto, como qualquer um podia ver. Yuuri olhou para o chão, estudando seus próprios pés, e Victor estava começando a achar que havia perdido esta luta quando Yuuri de repente ergueu os olhos novamente, expressões engraçadas residindo em seu rosto.

— Posso escolher o que quiser? — Yuuri perguntou, timidamente.

De repente, ele parecia bem animado com a oportunidade que estavam lhe dando, a ideia de vestir Victor da forma que bem entendesse tentadora, uma experiência da qual seria um tolo se abrisse mão.

Victor não pôde fazer nada além de sorrir. Ele anuiu a cabeça veementemente e logo os dois se viram com os braços enterrados até os cotovelos naquele mar de tecido macio e colorido. Nenhum dos dois foi capaz de manter um sorriso longe dos lábios; mas também não tentaram verdadeiramente.

Quando caminharam rumo ao provador, seus braços se encontravam cheios e pesados, o peito quente e transbordando da sensação reconfortante e familiar proporcionada por um sentimento em especial: amor.

 

—--

 

— Yuuri, terminou de se vestir? — Yuuri ouviu Victor perguntar do outro lado da cortina, não vendo nada além de seus pés por trás do pano

— Hm, ainda não. Mais um minuto — Yuuri mentiu por entre os dentes, de repente se sentindo um tanto constrangido.

Olhando seu reflexo no espelho, Yuuri se perguntou o que ele pensava que estava fazendo.

Como a busca por um casaco havia virado algum tipo bizarro de jogo? Por causa disso, ele agora se via dentro de um provador, vestido de cima a baixo em roupas que Victor tinha escolhido a dedo para ele, quando tudo que ele queria era um simples casaco. Seu rosto estava ardendo e seu coração batia acelerado. Estava se sentindo bastante envergonhado e nem sabia porque, afinal, Victor também estava vestido com roupas escolhidas por Yuuri.

— Yuuri? — Victor perguntou uma vez mais, e Yuuri percebeu que não tinha outra escolha a não ser seguir em frente e por a cara a bater.

Ao abrir a cortina, ele logo se deparou com Victor, que estava olhando diretamente para ele, vestido em calças largas e uma blusa gola alta que Yuuri havia selecionado dentre as dezenas presentes no mar extenso de roupas disponível na loja. As cores não combinavam, nem um pouco, mas ele ainda assim estava bonito, e Yuuri não esperava por menos.

— Você está… — Victor começou e Yuuri imediatamente levantou o rosto, buscando os olhos do namorado, de seu nêmesis.

Victor engoliu o restante das palavras que tinha a dizer e caminhou um passo adiante, em direção ao Yuuri que, por sua vez, deu um passo para trás, parando apenas quando suas costas colidiram com a parede do provador.

Victor pairou sobre ele e lentamente se aproximou. Logo, seus lábios foram tomados. Yuuri levou as mãos ao peito do Victor, mas, ao invés de empurrá-lo como pretendia, seus dedos agarraram com força o tecido grosso da blusa de gola alta e o puxaram para mais perto.

A boca do Victor estava quente, e Yuuri se viu derretendo em meio a todas as emoções que estava sentindo.

 

—--

 

No laboratório, Yurio tinha papéis espalhados ao seu redor, tão longe quanto os seus braços curtos conseguiam alcançar. Sentado de pernas cruzadas em meio a um mar de informações e terminologia complicada, ele se viu com dificuldades.

Ele franziu a testa e jogou de lado o relatório que havia passado a última meia hora examinando, a décima segunda leitura não tendo feito mais sentido que a primeira. Depois de tantas releituras, ele esperava ser capaz de compreender ao menos metade do conteúdo, entretanto, a realidade acabou por se mostrar bastante cruel. Após ser forçado a encarar o gigante abismo que ainda o separava do Victor em termos de inteligência, o jovem aprendiz se via sem escolhas a não ser aceitar a verdade diante de si.

Merda.

De que adiantava ele ter separado todos aqueles documentos por conteúdo, agrupando-os e os empilhando em ordem cronológica, se não conseguia entender metade do que estava escrito neles?

Yurio esfregou os olhos e se espreguiçou, levantando os braços tanto quanto possível. Um osso estalou em suas costas, ruidosamente, e o arrepio que percorreu sua espinha foi inesperadamente agradável.

— Talvez seja melhor eu ir procurar alguns livros pra usar de referência — Yurio murmurou para si mesmo, vasculhando a memória e tentando se lembrar em qual das estantes Victor guardava os livros de Engenharia Mecânica e de Termodinâmica.

Levantando-se, ele saltou sobre os papéis e foi em direção à escada, subindo-a dois degraus por vez. Quando retornou novamente ao laboratório, seus braços estavam tão lotados quanto os de uma bibliotecária muito ocupada. Uma cadela o seguia, solitária e curiosa.

Yurio voltou ao trabalho, ao relatório e aos vários amontoados de papel que estavam se empilhando perigosamente à sua volta, ameaçando tombar a qualquer momento. Embora seus olhos estivessem cansados ​​e uma dor de cabeça houvesse começado a batucar em sua cabeça, ele era teimoso demais para desistir.

 

—--

 

Victor e Yuuri se demoraram na loja de roupas mais do que haviam imaginado que iriam, nenhum dos dois tendo previsto a pequena aventura que os estaria esperando dentro do provador, o qual transbordou de alegria, risos e muito flerte conforme o casal se perdia em seu próprio mundinho particular. Felizmente, os dois jovens que estavam cuidando da loja não pareceram se incomodar com a total falta de noção que eles demonstraram em relação aos arredores, apenas lhes lançando um sorriso provocativo e brincalhão quando Yuuri estava pagando pelo casaco — azul e estreito, e uma das sugestões do Victor.

Dizer que precisava comprar um casaco havia sido, a princípio, apenas uma desculpa que inventou para poder se encontrar com Victor; agora, também era a razão por trás do constrangimento que estava sentindo.

Depois de pagar pela mercadoria, Yuuri agarrou a sacola que estava pousada no balcão e, segurando a mão do Victor, saiu da loja com passos apressados, sem olhar para trás nem uma vez sequer durante o breve trajeto até a saída. A vergonha era tanta que se viu sem palavras, incapaz de dizer algo fora um baixo e corrido adeus, o qual escapou de seus lábios na forma de um murmuro quando já estavam a meio caminho de pisar fora da loja. Suas orelhas ardiam como se estivessem em chamas, suas mãos estavam inquietas e Yuuri tinha plena certeza de uma coisa: não voltaria para aquela loja, não nesta vida. Jamais.

Descendo a rua e virando a esquina, Yuuri e Victor mergulharam de volta na multidão que enchia a via principal. Nesta tarde, o centro da cidade estava tão movimentado quanto de costume, o fato de ser um dia de semana não tendo tido muito sucesso em minimizar a densidade da massa de corpos que andava despreocupadamente pelas ruas.

O céu estava limpo e sua mão encontrava-se devidamente aconchegada num calor viciante e agradável. O dia estava perfeito, e sua companhia só tornava tudo um milhão de vezes melhor. Caminhando lado a lado, ombros colidindo vez ou outra por conta da pouca distância que insistiam em deixar entre eles, o casal se juntou à multidão, sem nem cogitar dividir sua atenção com aqueles que caminhavam ao redor. O mundo deles era somente deles.

— O que quer fazer agora? — Victor perguntou, deixando transparecer seu desejo de estender o encontro um pouco mais; ele não era o único. Yuuri estava feliz, e grato, por ter se livrado de ter que expressar seus desejos em voz alta.

— Quer comer alguma coisa? — Yuuri perguntou, dando um passo à frente e entrelaçando seu braço ao de Victor.

— Algum lugar em mente? — Victor se inclinou em sua direção, a distância entre seus corpos encurtando ainda mais.

— Nope.

— Está mais inclinado a chá ou café?

Victor olhou para baixo, permitindo que seus olhos se encontrassem com os de Yuuri. Ambos sorriram, satisfeitos com seu lugar no mundo — no mundo deles.

— Pessoalmente, acho que uma xícara de café quente seria soberba agora. E eu conheço um lugar bacana, apenas duas quadras a frente — falou uma terceira pessoa, sua voz tão doce quanto melaço, e tão melodiosa quanto um canto harmônico.

O casal parou de imediato e rodou nos calcanhares. Diferente de Yuuri, que simplesmente encarou confuso os dois homens que se encontravam logo atrás deles, Victor sabia muito bem o que esperar antes mesmo de se virar, conhecendo perfeitamente bem o dono daquela voz.

— Chris! Masumi! 

O sorriso que se acomodou nos lábios do Victor era enorme. Ele estava prazerosamente surpreso pelo súbito encontro com seus conhecidos, e qualquer um podia ver isso em seu rosto, não precisando nem procurar muito, suas emoções estando a plena vista.

— O que estão fazendo aqui?

— O mesmo que você. Estamos em um encontro. Certo, querido? 

O loiro — "Chris", Yuuri deduziu — levantou uma das mãos, erguendo também por tabela a de Masumi, que foi carregada junto por ter seus dedos entrelaçados aos do outro homem, mãos unidas bem como as de Yuuri e Victor estiveram há pouco. O sorriso presente nos seus lábios era tão largo quanto o de Victor, só que com uma pitada de divertimento para complementar.

— Desculpe a intromissão — Masumi falou em nome de ambos, seus olhos viajando de Victor para Yuuri, onde permaneceram por alguns segundos antes de retornarem ao seu chamativo acompanhante. — Na verdade, estamos a caminho da Torre. Estávamos em um almoço com alguns fabricantes de tecido — explicou.

— Parece que o negócio tem mantido vocês bem ocupados — disse Victor.

Chris assentiu com a cabeça em um movimento sutil, e em seus lábios o sorriso se tornou, de alguma forma, ainda maior. Yuuri não tinha ideia de como isso era possível. Então, de repente, ele se viu alvo da atenção exclusiva do Chris.

— Sim, e parece que seu namorado tem mantido você bem ocupado.

Yuuri corou, subitamente se sentindo por demais consciente da maneira como estava agarrado ao braço de Victor; a ideia de largá-lo não tendo sequer passado por sua cabeça até aquele momento. No entanto, por espaço entre eles, agora, seria nada além de um gesto estranho e que atrairia atenção desnecessária, por isso, Yuuri se forçou a engolir a timidez e manteve a posição. De qualquer forma, não era como se ele quisesse que a distância entre eles aumentasse.

— Então você que é o Yuuri? O famoso Yuuri.

Victor abriu a boca para responder, mas Yuuri foi mais rápido.

— Sim, é um prazer finalmente te conhecer, Chris. Victor fala muito de você.

— Certeza que ele não fala mais de mim do que fala sobre você. Você não tem ideia de quantas horas eu tive que ouvir ele resmungar sobre o crush dele em você. 

Infelizmente, Yuuri tinha, na verdade, uma boa ideia do tipo de experiência pela qual Chris havia passado, pois ele também — por uma ironia da vida — foi forçado a lidar com todos os dramas, anseios e sonhos que o Victor tinha a respeito do relacionamento dele com o Yuuri.

Foi submetido a longos e embaraçosos discursos mais vezes do que poderia contar, nunca conseguindo escapar, qualquer possível rota de fuga estando sempre completamente interditada ou fora de alcance. Várias e várias vezes, Victor abriu seu coração, compartilhando seus desejos mais ínfimos em relação a um futuro não tão distante, os quais sempre eram marcados pela presença de Yuuri ao seu lado. Ele desejava que ele e Yuuri estivessem ligados mais forte e profundamente a cada dia, até que suas vidas estivessem completamente conectadas pelo fio vermelho e indestrutível do destino. Victor nunca teve problemas para expressar seus sentimentos, nunca vendo razão para escondê-los, e Yuuri teria amado ouvir cada uma das palavras doces que Victor proclamava dia sim, dia não, não fosse o fato dele estar sempre vestido com a máscara de Katsudon nesses momentos.

Como Victor podia ainda não ter percebido a verdade sobre a conexão entre os dois -— entre Yuuri e Katsudon, no caso — era um mistério por hora sem solução. Yuuri começava a suspeitar que Victor talvez tivesse realmente algum tipo de problema para se lembrar dos rostos das pessoas; prosopagnosia era como chamavam, se não estava enganado.

— Então, vão se juntar a nós para uma xícara de café? — Victor perguntou, parecendo bastante animado. — Colocamos o papo em dia e aproveito para apresentá-los!

— Você só quer uma desculpa para cantar louvores ao seu doce e amável Yuuri. Você não me engana — o loiro respondeu, prontamente, uma sobrancelha erguida e um olhar astuto e brincalhão desenhado no rosto. 

Yuuri se virou em direção aos pés, de repente os achando bem interessantes. Masumi, assim como Yuuri, nada disse, limitando-se a observar a cena em silenciosa contemplação; apesar do sorriso tímido pousado em seus lábios, as expressões que tinha no rosto eram completamente indecifráveis. E Victor, por sua vez, apenas deu de ombros.

— Você não pode me culpar! — Victor sacudiu uma de suas mãos no ar, a que se encontrava livre, tentando expressar algo com todos aqueles gestos sem sentidos, mas falhando em transmitir ao menos uma ideia geral do que queria dizer.

Sentindo-se ainda mais envergonhado do que antes, Yuuri não sabia onde esconder a cara, que agora ardia tanto quanto uma bandeja de biscoitos recém-saída do forno. Victor verdadeiramente não sabia quando era hora de se conter.

Victor era o tipo de pessoa que agia primeiro e pensava depois, e Yuuri se deu conta desse fato no próprio dia que se conheceram, dois anos e meio atrás, e a única razão pela qual ele nunca quebrou a cara até agora era por ser inteligente o bastante para conseguir pensar rapidamente em soluções todas as vezes que se viu perante complicações provenientes de seus impulsos mal pensados. Seu cérebro compensava sua impulsividade descuidada, basicamente.

— Uma xícara de café cairia muito bem agora, mas desta vez vamos ter que passar. Chris e eu temos trabalho para terminar no escritório — Masumi respondeu, informando-os a respeito da agenda lotada antes que Chris decidisse colocar o trabalho em segundo lugar, o que ele tendia a fazer quando Victor estava por perto.

— Infelizmente, é como ele disse. Mas vamos jantar fora algum dia.

Chris fez bico, claramente descontente com o fato de que não poderia desfrutar de algum tempo na companhia do melhor amigo, mas seu olhar permaneceu vibrante e hipnotizante. Seus olhos, Yuuri percebeu, eram como duas pedras preciosas, seu verde tão profundo quanto o de um cristal que se encontraria em uma joalheria de alta classe, ornamentando o anel mais caro em exibição.

— Não tem jeito. Trabalho é trabalho.

— Espero que possamos nos encontrar novamente em breve, Yuuri — falou Chris, virando-se repentinamente em sua direção e lhe dando toda a sua exclusiva atenção.

— Também espero — foi a resposta de Yuuri.

Os dois casais se separaram logo depois, cada um seguindo seu próprio caminho. Agora, uma promessa os unia, assegurando que um dia, mais cedo ou mais tarde, seus caminhos se cruzariam novamente — em um café no centro da cidade.

 

—--

 

Após uma hora e meia de intensa leitura, Yurio decidiu que estava tão pronto quanto jamais estaria. Tendo atingido o limite de suas habilidades, ele se viu com duas opções: simplesmente desistir e aceitar que não tinha conhecimento o bastante para fazer esse plano acontecer, ou colocar todas as células do seu cérebro para trabalhar uma última vez e rezar para que tudo, de alguma forma, desse certo.

Yurio decidiu que esperar por um milagre era melhor do que jogar todo o seu trabalho duro da última hora no lixo. Não foi uma decisão difícil de tomar.

E daí se ele não foi capaz de entender um décimo do que estava escrito naqueles papéis idiotas? E daí se toda vez que virava uma página, ele se sentia tão frustrado que começava a ranger os dentes? Ele não precisava compreender cem por cento do que estava anotado no relatório. Não lhe serviria de nada entender como a máquina foi construída, assim como pouco importava se ele conhecia ou não cada mínimo detalhe do projeto. Ele só tinha que fazê-la funcionar, e tinha a sensação de que ao menos isso conseguiria fazer.

Saltando para dentro da empilhadeira que o próprio Victor havia construído com o propósito de mover suas invenções pelo laboratório — empilhadeira esta que, em grande parte, em muito se assemelhava às encontradas em indústrias e grandes lojas de departamentos, porém mais potente e compacta —, Yurio a ligou com um aperto de um botão e puxou a alavanca até que estivesse voltada para o alto. Com sorte, viu Victor mexer na máquina há alguns poucos dias e, graças a isso, a memória ainda se encontrava fresca em sua mente, não restando espaço para a menor das dúvidas.

Após se certificar de que a empilhadeira estava segurando devidamente a máquina que havia atraído a atenção do jovem aspirante a vilão, a qual tinha quase três metros de altura e pesava provavelmente mais de uma tonelada, Yurio a conduziu até a extremidade oposta do laboratório, colocando-a no centro da ampla área aberta. Yurio a olhou de cima a baixo, estudando-a uma vez mais, e então foi atrás do relatório, que continha um passo a passo simplificado de como ativar a máquina. Bastante conveniente.

Consultando o grosso documento que tinha em mãos, Yurio moveu os pequenos interruptores conforme diziam as instruções. Fazendo uma última checagem, verificou se tudo estava em ordem; estava. Ao apertar um enorme botão na lateral da máquina, ela começou a zumbir, as engrenagens girando e o óleo fluindo no seu interior como sangue — quente e essencial.

Olhando para cima, Yurio percebeu que o sino posicionado ao topo havia começado a se mover, balançando e girando de leve, silenciosamente.

Um sorriso surgiu nos lábios do garoto. Em seu peito, transbordava excitação.

Yurio não se sentia tão vivo há bastante tempo.

— É o fim.

 

—--

 

Quarta-feira. Tempo é um conceito sem valor quando se está em um encontro no centro da cidade.

O céu sobre suas cabeças era de um lindo tom de azul, as nuvens tão fofas e brancas que não poderiam ser mais perfeitas. Porém, no chão, o casal que caminhava de mãos dadas não tinha atenção para dar àquela bela imensidão; nenhuma visão era capaz de competir com a que caminhava ao seu lado.

Dois homens estavam em um encontro, um dentre tantos, mas tão especial quanto o primeiro. O ar ao redor deles estava repleto de felicidade, e nada seria capaz de estragar aquele momento.

Ou ao menos era o que parecia.

Ao que um arrepio percorreu sua espinha dorsal, um destes dois homens imediatamente fincou os pés no chão, deixando seu companheiro sem escolha a não ser frear também. Seu nome foi chamado, mas este entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Ele permaneceu imóvel, tenso, uma pergunta martelando a parte dianteira de sua cabeça.

— Sentiu isso? — perguntou, enfim, virando-se para o homem ao seu lado.

Antes que uma resposta pudesse ser-lhe oferecida, um tremor percorreu a sola de seus pés, fraco mas inegável, e agora ele tinha certeza de que não havia sido sua imaginação.

Os olhos de seu parceiro se encontravam arregalados, um sinal de que desta vez ele também havia sentido o chão tremer sob eles. Mas eles não foram os únicos a perceber que algo estava errado; ao redor deles, as pessoas trocavam olhares preocupados, a palavra !terremoto" circulando pelo ambiente e enchendo o local de inquietação.

Outro tremor, mais forte desta vez.

O casal trocou olhares, suas expressões transparecendo uma mesma pergunta:

— O que está acontecendo?

 

—--

 

Nem mesmo dez minutos haviam se passado desde a primeira vez que Yuuri sentiu o chão tremer levemente sob seus pés, e ainda assim o caos já havia tomado conta do lugar e feito dele seu reinado.

À medida que os terremotos ficavam mais fortes, aumentava também o desespero das pessoas.

O centro da cidade estava, como de costume, barulhento, mas desta vez era por causa dos gritos e lamentos da população, que corria sem destino em mente. Eles só queriam sair dali, rapidamente e para o mais longe que suas pernas podiam levá-los. Como se o dia do juízo final pairasse sobre suas cabeças, eles fugiam em busca de salvação.

O chão tremeu novamente, a vibração um pouco mais forte do que antes.

Yuuri estudou seus arredores, observando a forma como as pessoas corriam e derrubavam quem se colocasse no caminho, e não conseguiu se livrar da familiaridade desconfortável que a situação lhe passava. Ele olhou para Victor, que estava parado calmamente ao seu lado, ou assim se imaginaria ser o caso, não fosse a palidez de sua pele.

Buscando por sua mão, Yuuri estava prestes a perguntar se estava tudo bem com ele quando seu celular começou a vibrar no bolso de sua calça jeans. Na tela, o nome de Phichit piscou para ele.

— Alô — cumprimentou assim que aceitou a chamada. Ele se perguntava do motivo da ligação, especialmente em um momento como aquele.

— Yuuri! Que bom que consegui falar com você! — Havia urgência na voz de seu amigo, o que bastou para Yuuri endireitar as costas enquanto esperava que Phichit desse continuidade às suas palavras. — Precisamos que vá para a Torre de São Petersburgo, e o mais rápido possível!

— Pera, essa é uma ligação do trabalho? — Yuuri não conseguiu conter sua indagação.

Quando se lembrou que não estava sozinho, seu coração acelerou e deu uma cambalhota. Ele olhou de relance na direção de Victor, mas felizmente ele não parecia estar prestando atenção nele naquele momento, estando bastante ocupado observando o caos que corria livre e solto ao redor deles.

— E o Celestino? — ele falou ao telefone, agora em uma voz mais baixa.

— As coisas estão bem agitadas aqui na SOAP por causa dos terremotos. Emitiram um alerta de evacuação para o prédio e o Celestino está na liderança da operação — explicou Phichit. — Precisamos que você se troque e vá atrás do Treinador, pra ontem.

— Espera, está tentando me dizer que ele é o responsável? — Yuuri ergueu uma sobrancelha, sua voz mais alta, mas ainda assim abafada pelos seus arredores barulhentos.

Phichit pediu para ele esperar um minutinho e Yuuri, ligeiramente confuso, mas se vendo sem opções, acatou ao pedido e aguardou. Ele estava começando a se perguntar, e se preocupar, com a situação do outro lado da linha quando respirações curtas e o som de passos alcançaram seus ouvidos. Aparentemente, o próprio Phichit ainda estava no meio da evacuação.

— Sim! É exatamente o que estou dizendo — Phichit respondeu, por fim, um tanto sem fôlego.

— Não é ele —Yuuri disse, rápida e firmemente.

— Yuuri... Sei que você ama ele e tals, mas Victor ainda é um vilão. Ele simplesmente se superou desta vez.

— Não, você não entendeu — Yuuri olhou na direção de Victor, que ainda se encontrava imóvel ao seu lado, em silenciosa contemplação. Ele parecia pensativo, Yuuri notou. Confuso. — Ele está bem ao meu lado. Estamos juntos faz horas.

Phichit não disse nada, mas Yuuri pôde ouvir a confusão em seu silêncio.

— Tem certeza de que o epicentro é a Torre de São Petersburgo? — Yuuri perguntou, tentando colocar a conversa em movimento novamente.

— Cem por cento de certeza.

— Então deixa comigo.

Antes que Yuuri pudesse dizer mais alguma coisa, a ligação foi interrompida. Ele ansiava por saber como as coisas estavam do outro lado, e se seu melhor amigo estava bem. Entretanto, ele não dispunha de tempo agora para ligar de volta, e nem para desperdiçar em conversa fiada. Ele tinha que agir, e sem delongas.

Ele se virou para Victor e agarrou um punhado de sua blusa, levando o homem a direcionar sua atenção de volta para ele.

— Victor.

Assim que ele chamou pelo nome do namorado, o chão foi atingido por outro tremor. Ambos se seguraram um no outro, com medo de que o outro tombasse e se machucasse no processo.

Mais do que nunca, Yuuri se viu certo de que a situação atual não era apenas semelhante, mas idêntica à de três anos atrás. Os tremores, os gritos, o desespero... Se fechasse os olhos, talvez até conseguisse ver Celestino correndo por aí, ajudando os necessitados.

Da última vez, os tremores cessaram depois de um tempo, aparentemente por conta própria. Podia contar com isso novamente? Não... Não podia correr esse risco. Não quando as pessoas podiam se machucar. Não quando crianças pequenas podiam se separar de seus pais. Não quando as pessoas dependiam dele.

— Victor, tenho que te dizer uma coisa. — Havia convicção em sua voz.

Yuuri agarrou o tecido da roupa de Victor, com força e se utilizando de ambas as mãos desta vez. Victor imediatamente pousou as suas mãos sobre as de Yuuri; elas eram quentes e gentis. Yuuri sentiu a tensão presente em seus músculos diminuir um bocado, mas não muito, nem perto do suficiente.

— Me disseram que o epicentro dos tremores é a Torre de São Petersburgo — falou, compartilhando com Victor a informação que Phichit havia acabado de lhe entregar.

Victor franziu o rosto, as rugas profundas em sua testa.

— Como sabe? — perguntou, logo a seguir.

Yuuri congelou. Então, ele considerou suas opções: dar voz àquela verdade que ele vinha guardando para si há tanto tempo, nunca se atrevendo a verbalizá-la, ou permanecer quieto.

— Meu amigo me disse. Ele trabalha na SOAP. 

Ele não estava fugindo, nem se escondendo, disse a si mesmo.

Yuuri estava ciente de que não tinha como ele manter sua identidade em segredo eternamente, e sequer ele tinha a intenção de se esconder atrás de uma máscara pelo resto da vida, mas agora não era o momento ideal para trazer tais questões à luz. Já havia drama suficiente graças aos terremotos, e não havia necessidade de complicar ainda mais a situação.

— Tem alguma ideia do que está acontecendo? — perguntou ao Victor.

"Três anos atrás, foi você o responsável pela devastação que atingiu a cidade?", Yuuri não perguntou, contendo sua segunda pergunta e a mantendo em isolamento em um canto de sua mente.

Victor franziu o rosto mais um pouco e olhou em volta novamente, examinando os arredores, seus olhos tão atentos quanto os de um cientista a observar seu experimento queimar e borbulhar dentro de um béquer pousado em cima de uma chama morna. Suas expressões eram pensativas e ficaram ainda mais quando ele ergueu uma mão e pousou um dedo nos lábios.

— Não tenho certeza, mas estou começando a achar que pode ser minha culpa — Victor admitiu, sua voz transmitindo um quê de culpa.

— Como assim? — Yuuri inclinou a cabeça, confuso.

Victor esteve ao seu lado o dia todo, como ele poderia ser responsável pelo que estava acontecendo? Pior ainda, porém, era a incerteza presente na voz de Victor. Como ele podia não ter certeza se o caos que afligia a cidade era ou não culpa dele?

— Tem uma máquina que construí há alguns anos atrás que causa terremotos. O objetivo era causar uns poucos tremores leves, mas a potência da máquina ultrapassou em muito o que eu tinha em mente.

"Então os tremores daquela vez foram, de fato, culpa do Victor", Yuuri se viu pensando. Em outras palavras, foi culpa do seu próprio nêmesis Yuuri ter virado um agente.

Três anos atrás, conforme os terremotos ficavam cada vez mais fortes e os danos e consequências causados ​​por eles aumentavam exponencialmente, os tremores cessaram repentinamente de um segundo para o outro. Agora que sabia que o Treinador fora o culpado, tudo fazia sentido.

Na época, percebendo o quão grande era a destruição e o perigo em que estava colocando as pessoas, o Treinador desativou a máquina e interrompeu seus planos malignos, uma ação muito característica dele. Embora Victor fosse um vilão, suas intenções nunca eram fazer mal a pobres e inocentes espectadores; e, caso isso acontecesse, era sempre por acidente, e Victor não se veria capaz de tirar o acontecimento da cabeça com tanta facilidade.

— Se for mesmo aquela máquina que está causando tudo isso, então tenho que chegar nela o mais rápido possível. A cidade está em grande perigo — Victor disse após se virar totalmente na direção de Yuuri, seus olhos grandes e ansiosos.

— Mas como poderia ter se ativado? — Yuuri perguntou. Ele viu de perto as invenções do Treinador mais vezes do que era capaz de contar, e duvidava que um curto-circuito pudesse ser a causa do acidente. Suas máquinas sempre foram de primeira linha, à prova de falhas.

Victor balançou a cabeça e olhou para baixo, parecendo um pouco angustiado. Assim como Yuuri, ele não tinha ideia de como isso havia acontecido, e não conseguia nem mesmo imaginar o que poderia ter sido a causa.

Eles ficaram em silêncio por alguns instantes, considerando as possibilidades. Quando voltaram a buscar o olhar um do outro, foi ao mesmo tempo, e azul encontrou marrom no tempo de um batimento cardíaco.

— Yurio! — falaram, simultaneamente.

— Mas por que ele faria isso? — Yuuri perguntou, nem um segundo depois.

Mesmo que o adolescente pudesse ser estressado de vez em quando, seu pavio curto demais para ser saudável, Yuuri nunca o viu como alguém que machucaria os demais propositalmente.

— Eu… não sei. Eu disse pra ele não faz muito tempo que essa máquina era perigosa — Victor respondeu, gesticulando enquanto falava.

A angústia que Victor estava sentindo era claramente maior que a de Yuuri, algo esperado visto a posição que ocupava. Ele provavelmente — certamente — estava se sentindo responsável pela destruição que afligia a cidade, cuja culpa apontava para Yurio e ninguém mais.

— Ele tem agido meio estranho ultimamente, não sei porque — acrescentou Victor.

— Está falando da forma que ele tem te evitado? — Yuuri perguntou, recordando-se da mensagem que Victor enviou há poucos dias para Katsudon, na qual expôs em detalhes a situação complicada que estava vivendo em sua casa. Apesar de Victor ter lhe pedido sugestões de como lidar com a rebeldia de seu aprendiz, Yuuri não soube como ajudar e por isso acabou não oferecendo nenhuma ideia, porém, nunca imaginou que as coisas chegariam a tais proporções. Talvez devesse ter tentado um pouco mais seriamente...

— Talvez ele esteja tentando provar alguma coisa?

— Provar o quê? — Victor perguntou, sua pergunta soando um tanto ríspida por causa de sua agitação.

Victor não estava lidando muito bem com a situação, e não era como se Yuuri não entendesse as razões disso. Impossível manter a cabeça leve e calma quando, ao redor, havia provas, concretas e em quantidade alarmante, das consequências de um problema pelo qual você se sentia parcialmente responsável.

— Talvez mostrar independência? Superioridade? Valor?

— Se tratando do Yurio, pode ser literalmente qualquer coisa — Victor respondeu, prontamente, sua voz um tanto apática.

Yuuri não pôde fazer nada além de anuir e concordar. Entender o que se passava dentro da cabeça do Yurio não era tarefa fácil.

— De qualquer forma, temos que ir e impedi-lo — Yuuri falou. 

Algo do qual ele tinha certeza era que colocá-los em movimento ajudaria muito mais do que ficar parado e não fazer nada; seria especialmente terapêutico para a ansiedade de Victor.

Segurando o braço do Victor, Yuuri o conduziu na direção que sabia que os levaria à Torre de São Petersburgo, assumindo a função de guiá-los através do caótico centro. Tendo andado por aquelas ruas vezes demais para contar, não havia como ele ainda ter dúvidas sobre que caminho tomar, e era disso que eles mais precisavam naquele momento: alguém que fosse capaz de pensar com clareza e que não se deixasse distrair pelos gritos e pelo terror que se alastravam pelo ambiente como um vírus altamente contagioso.

Estando de acordo com a sugestão de Yuuri para que deixassem de lado por hora as perguntas infrutíferas a fim de começarem realmente a fazer algo de útil, Victor seguiu atrás de Yuuri, mantendo-se alguns poucos passos atrás. Eles cortaram pela multidão, que já havia começado a se tornar esparsa, consequência do fato de que quase quinze minutos já haviam se passado desde que o primeiro tremor assombrou a cidade.

Eles viraram na rua junto ao Starbucks, onde algumas pessoas ainda se mantinham em fila para comprar uma bebida, agindo como se não houvesse nada fora do comum acontecendo ao redor. Eles viviam suas vidas como se aquele fosse um outro dia qualquer, ignorando os gritos desesperados da multidão e não lhes dando um pingo de atenção. Yuuri bem que queria saber como eles conseguiam fazer isso, como conseguiam estar tão calmos — embora talvez um termo mais apropriado fosse distraídos, ou descuidados.

Atravessando a rua bem quando o semáforo se tornava vermelho, apenas mais dois quarteirões restavam agora entre eles e a Torre. O casal seguiu correndo, sem parar, a respiração de ambos estável e as mãos entrelaçadas em um aperto inseparável.

Yuuri se manteve alerta, observando os arredores com olhos rápidos que sabiam exatamente para onde olhar. Foi então que notou o grande espelho correndo ao lado deles, o qual cobria toda a frente de uma loja de roupas; ou melhor, ele viu seus reflexos correndo, um atrás do outro. Um corpo menor seguia na frente, com pernas fortes e ágeis, e um homem mais alto logo atrás dele, seus passos largos e experientes.

Yuuri percebeu imediatamente que tinha fodido tudo.

Yuuri era, supostamente, apenas um civil, tão normal quanto se poderia ser, que trabalhava junto de sua família em um restaurante a uma pouca distância do centro da cidade. Ele não era suposto de estar acostumado com a sensação de adrenalina correndo em suas veias, nem com a experiência de sentir o perigo pressionando suas costas, incitando-o a correr cada vez mais rápido. No entanto, lá estava ele, movendo-se em meio ao caos como se fizesse aquilo todos os dias, mostrando-se nem um pouco abalado e transparecendo sequer uma pitada de medo; apenas olhando para frente, com a cabeça erguida, como lhe ensinaram a fazer na SOAP.

No espelho, aquele que o encarava de volta com olhos bem abertos e expressões chocadas era claramente Katsudon, não Yuuri, e nada mudaria esse fato; nem os óculos grossos pousados em cima do seu nariz, nem a franja caindo suavemente sobre sua testa, nem as roupas casuais que eram um pouco largas demais em seu corpo esguio. Nada disso importava quando seus olhos ardiam como uma chama ardente, fortes e repletos de determinação.

Ao ser lembrado de quem era suposto de ser naquele momento, Yuuri diminuiu o ritmo e permitiu que Victor assumisse a liderança, posicionando-se na retaguarda. Ele respirou fundo e se posicionou tão atrás quanto lhe era possível, abrindo o máximo de distância entre eles. Ele torcia para que Victor interpretasse erroneamente a tensão presente no aperto que Yuuri mantinha na mão de Victor, e que ele assumisse que Yuuri estava simplesmente com medo dos terremotos que ainda não tinham dado a eles qualquer descanso.

Não podia abrir brechas para que Victor questionasse sua identidade, não agora quando o caos ao redor deles era tão grande e imprevisível. Victor já tinha coisas demais para se preocupar, e a última coisa que ele precisava era de uma terceira fonte para dores de cabeça. Mas isso também era um sinal claro de que as coisas não podiam continuar como estavam, e Yuuri se via agora mais certo disso do que nunca. Ele falaria com Victor sobre o rolo do Yuuri-Katsudon assim que essa bagunça toda estivesse resolvida, assim que a poeira baixasse e eles conseguissem respirar novamente em um momento de paz. Yuuri se sentaria ao lado do Victor e o ajudaria a terminar esse quebra-cabeça, o qual havia sido deixado inacabado por dois longos anos, e lhe entregaria enfim as peças que havia guardado consigo esse tempo todo. Tinha que fazer isso antes que outra pessoa o fizesse em seu lugar.

No entanto, a determinação de Yuuri desmoronou como um castelo de cartas que acabara de ser atingido por uma brisa suave.

Ele parou, seus pés basicamente cravando no chão ao que seus olhos pousaram em um prédio do outro lado da rua. Victor também parou, mas não era como se ele o tivesse feito por escolha, visto que Yuuri o havia ancorado.

Confuso sobre a razão deles terem parado de correr tão de repente, Victor olhou para Yuuri em busca de respostas. Percebendo que ele estava olhando para o lado, rapidamente seguiu seu olhar, e foi então que Victor compreendeu a aflição que havia preenchido os olhos castanhos de seu namorado. Em um prédio de três andares, uma mulher de 50 e poucos anos se encontrava agarrada à grade de uma varanda, a qual pendia para a frente, certamente tendo sido danificada por algum tremor. O prédio parecia velho e a mulher estava claramente assustada. Pessoas passavam por baixo, algumas correndo, outras caminhando, mas nenhuma estava prestando atenção aos seus pedidos de socorro — apenas Yuuri.

Já prevendo o que estava por vir, Victor estava prestes a sugerir que eles ajudassem a senhora quando o aperto em sua mão desapareceu. Yuuri correu em direção à rua, onde carros ainda circulavam; alguns mais vagarosamente, outros tão rápidos quanto os veículos permitiam. Yuuri não olhou para trás, e Victor se viu apenas com a visão de suas costas, que ficavam cada vez mais distantes a cada segundo que passava.

Yuuri correu e correu, mergulhando no tráfego sem pensar duas vezes, pulando e saltando sobre os carros que vinham em sua direção como se fizesse isso todos os dias. Ouviu alguém gritar em suas costas, a voz familiar mesmo estando abafada pelos ruídos que tomavam conta do ambiente. Houve, então, o som de uma pisada forte, passos rápidos e desesperados seguindo atrás dele. Mas Yuuri não parou e nem olhou para trás. Ele só tinha olhos para a pobre senhora que precisava urgentemente de ajuda.

Depois de atravessar a rua, são e salvo, empurrou as pessoas para fora do caminho e disparou em direção ao velho prédio de três andares. A mulher, que no meio tempo o vira vindo a seu socorro, tinha lágrimas escorrendo pelo rosto. Havia agora também um garoto sob a janela, jovem e com cabelos negros penteados para trás. Ele não parecia ter ideia de como poderia ser útil, como ajudar de alguma forma, mas tinha todas as melhores intenções, como qualquer um podia ver por sua postura. Posicionado logo abaixo da senhora, sua intenção era clara: na pior das hipóteses, pelo menos suavizaria sua queda.

Yuuri observou-o e, sendo agraciado com uma súbita boa ideia, gritou a plenos pulmões a fim de chamar a atenção dele. O jovem imediatamente se virou para ele e, após uma breve troca de olhares, a mensagem foi transmitida de alguma forma.

Correndo na direção dele e usando as costas do garoto como apoio, Yuuri se atirou ao alto e se agarrou ao corrimão. Infelizmente, ele não foi capaz de suportar o peso extra no estado deplorável em que estava e se soltou da varanda, para o desespero da mulher. Yuuri, porém, já tinha a altura e o suporte que precisava, então não se abalou com a situação, balançando-se facilmente para frente e segurando a mulher antes que atingissem o solo.

Graças a um pensamento rápido, o jovem apanhou a grade antes que ela pudesse ferir alguém. Felizmente, não era muito pesada.

Desabando no chão e sentindo-se tão seguro quanto a situação permitia, Yuuri suspirou aliviado. O jovem prontamente se agachou ao seu lado, talvez a fim de ver se estava tudo bem com ele, embora não tenha expressado suas intenções em voz alta. Yuuri, que também não era alguém de muitas palavras, sorriu, acenou com a cabeça e torceu para que sua gratidão tivesse conseguido alcançá-lo. Entretanto, logo ambos perceberam que havia alguém precisando muito mais da atenção deles.

— Tudo bem? — Yuuri perguntou à mulher em seus braços, que estava tremendo e não era pouco.

Ao invés de lhe dar uma resposta, a mulher simplesmente se jogou contra seu peito, encharcando suas roupas com lágrimas. Yuuri supôs que uma reação daquelas era de se esperar, considerando a experiência aterrorizante pela qual ela havia acabado de passar, entretanto, não tinha ideia de como lidar com a situação, não conseguindo pensar numa solução melhor do que a deixar chorar tanto quanto quisesse. O jovem ao seu lado, que parecia estar tão perdido quanto ele, desenhava grandes círculos nas costas da senhora, também se mantendo em silêncio.

Victor, que atravessou a rua logo atrás de Yuuri, seguia parado bem na borda da larga calçada, tendo se descoberto incapaz de dar sequer mais um passo assim que pisou no piso de concreto. Todos os seus sentidos se viram por demais entretidos com as acrobacias impressionantemente ágeis de Yuuri, não sobrando abertura para ajudá-lo a transpor a pequena distância remanecescente entre eles. Seu queixo caiu e permaneceu de tal forma até a pouco, quando enfim percebeu as expressões bobas que tinha no rosto. A maneira como Yuuri havia se movido fora impressionante, e um tanto quanto familiar; entretanto, o encanto que sentiu após presenciar tal incrível exibição o levou a esquecer de todo resto e, por consequência, ele nem mesmo chegou a considerar rastrear os motivos por trás do sentimento de familiaridade que a experiência o trouxera.

Voltando a si, Victor caminhou em direção ao grupo de curiosos que se havia se reunido em torno de Yuuri, do misterioso jovem e da pobre senhora apavorada.

— Yuuri! — Não demorou até que ele estivesse ao lado de Yuuri, as pessoas abrindo caminho assim que o viram vir na direção delas. — Você está bem? Como fez aquilo? Foi incrível!

Yuuri de repente sentiu como se alguém tivesse largado um pesado saco de batatas em seus ombros. Ele se levantou, desvencilhando-se da mulher e deixando que o jovem assumisse a tarefa de acalmá-la. Enquanto o suor escorrendo por suas costas era quente, em seu rosto era tão frio quanto gelo. Mais uma vez ele tinha fodido tudo, e desta vez grandiosamente.

"Bom trabalho em não chamar atenção. Simplesmente excelente", pensou consigo mesmo, sarcasticamente.

Enquanto tentava se decidir entre as possíveis respostas — desculpas — que podia dar por hora, outro tremor sacudiu o chão, um particularmente forte. Ao som de pessoas gritando a plenos pulmões, a senhora se atirou sobre o pobre rapaz, que parecia estar um pouco desconfortável de ter seu espaço pessoal invadido daquele jeito. Victor cambaleou, quase perdendo o equilíbrio, mas Yuuri estendeu as mãos e juntou as suas com as dele, firmando ambos.

— Podemos falar disso mais tarde? — Yuuri perguntou, sua voz soando levemente desesperada, mas não tanto quanto ele havia antecipado.

Victor anuiu em concordância, a urgência da situação tão clara para ele quanto para Yuuri. Precisavam chegar à Torre de São Petersburgo o mais rápido possível.

Eles estavam basicamente de saída quando Yuuri se lembrou da pobre senhora, que ainda tremia por inteiro, apavorada demais para se mover. Yuuri se perguntava o que podia fazer — talvez ligar para a SOAP e ver se eles podiam enviar alguém até ele — quando se deparou com o olhar do jovem; forte e repleto de uma determinação ardente.

— Posso cuidar dela — falou o garoto ao se levantar, ajudando a mulher a se pôr também de pé logo em seguida. — Vocês claramente têm coisas importantes para fazer. Não precisam se preocupar com ela.

Victor não parecia tão certo de que deixar a mulher aos cuidados do rapaz era a coisa correta a se fazer naquela situação, mas Yuuri respondeu antes que ele pudesse intervir.

— Okay.

Segurando-o pelo braço, Yuuri fez Victor segui-lo. Enquanto era puxado para longe, Victor se viu olhando por cima do ombro a fim de espiar a situação uma última vez antes de finalmente seguir em frente; Yuuri, por outro lado, nem mesmo considerou fazer tal coisa, não vendo necessidade.

— Tem certeza? — Victor questionou, suas poucas palavras mais do que suficientes para transmitir o que ele queria dizer. Seu tom de voz não deixou dúvidas.

— Sim — Yuuri respondeu, prontamente, e se sentiu aliviado por Victor não lhe ter pedido para elaborar as razões disso. 

Contá-lo os motivos por trás de sua confiança cega no jovem seria um pouco difícil — impossível — naquele momento, visto que ele ainda estava escondendo — omitindo — sua identidade como Katsudon.

A razão pela qual ele conseguia confiar no jovem era bastante clara e simples: havia um sentimento nas profundezas das suas entranhas lhe garantindo que tudo daria certo. Sempre que olhava para o garoto, Yuuri se pegava pensando nos acontecimentos de três anos atrás, lembrando-se de estar ele próprio em meio a uma situação bastante semelhante à que eles estavam passando agora.

Finalmente era capaz de entender o que Celestino viu nele naquele dia.

 

—--

 

Yurio se via agora parado diante da enorme máquina, um largo sorriso dividindo seu rosto ao meio. Do lado de fora da Torre, o caos havia se instalado com sucesso, e não mostrava sinais de que deixaria os pobres cidadãos em paz tão cedo. Assistindo a tudo através das câmeras de vigilância, Yurio quase se viu rendendo à vontade de descer, mas resistiu à tentação de ouvir os gritos pessoalmente. Embora tivesse certeza de que eram como música, sonoros e fortes o bastante para alcançar até mesmo os ossos dentro de sua carne, sabia que tinha um lugar para estar agora, e esse lugar era no laboratório.

Ele se sentia incrível. Poderoso.

Mais do que nunca, perguntava-se como Victor podia ficar satisfeito com simples migalhas, quando podia ter tudo isso.

 

—--

 

Quando chegaram à Torre de São Petersburgo, dois agentes da SOAP os aguardavam em frente ao prédio — um rosto era familiar, o outro não. O primeiro era o jovem super-confiante do outro dia, que tentou, futilmente, colocar-se no caminho do Victor. O último, por sua vez, era alto, tinha cabelos loiro-claros e uma barba que fez Victor pensar naquele youtuber famoso com o bordão chiclete.

Eles caminharam na direção deles, parando apenas quando só mais alguns poucos passos separavam os dois grupos.

— O que estão fazendo aqui? — Victor perguntou, confuso sobre que tipo de ajuda eles esperavam dar enquanto se mantinham parados ali.

— Nos disseram para manter o perímetro ao redor da Torre livre até vocês chegarem — explicou o loiro. Sua gravata era verde e comprida, uma colmeia desenhada no tecido em linhas azul-escuras. Seu terno era preto, como de praxe.

— Entendo — Yuuri disse, dando um passo adiante e pousando uma mão no ombro de cada. — Obrigado. Podem ir ajudar as pessoas na cidade, agora? — perguntou, um sorriso nos lábios.

— Sim, levem as pessoas a algum lugar seguro — acrescentou Victor, incapaz de se livrar do gosto amargo que aborrecia sua boca.

Yurio realmente causou tudo isso?

Teria ele sido por demais descuidado com a educação de seu aprendiz?

Ele era assim tão distraído quanto ao que acontecia ao seu redor?... Assim que esse pensamento adentrou sua mente, ele se virou na direção de Yuuri. Ele franziu as sobrancelhas, o mundo de repente começando a se tornar mais claro aos seus olhos.

O que ele estava fazendo aqui?

Ao que seus pensamentos se viram livres da densa névoa que recaiu sobre sua cabeça durante a corrida, Victor piscou vagarosamente, enfim percebendo o que tinha feito. Os cabelos de sua nuca se arrepiaram, um desconforto atormentador firmando-se às suas entranhas.

Como ele pôde trazer Yuuri para um lugar tão perigoso?! O que ele tinha na cabeça?

Com os olhos fixos nas costas dos dois agentes que se preparavam para partir, não faltando coisas para mantê-los devidamente ocupados em meio ao caos que ainda reinava firme e forte na cidade, Victor pediu que esperassem. Quando eles se viraram novamente, ambos pareciam confusos pela interrupção, além de bastante curiosos por saber o que o vilão poderia ter a dizer a eles. Mas eles não foram os únicos que foram pegos de surpresa. Yuuri também compartilhava dos mesmos sentimentos, não conseguindo sequer imaginar o que mais o Victor poderia ter a tratar com eles.

— Por favor, levem o Yuuri com vocês, para algum lugar seguro.

O ar ao redor deles ficou desagradável. Os dois jovens agentes trocaram olhares e não disseram nada, tendo optado pelo silêncio. Então, eles se viraram na direção de Yuuri que, por sua vez, estava encarando Victor, sua boca entreaberta e expressões descrentes presentes no rosto.

— Eu não vou embora! — Yuuri retrucou, batendo o pé no chão. Todos se sobressaltaram, alguns menos outros mais, ninguém tendo antecipado uma reação daquelas. Yuuri encarou os dois agentes e ordenou: — Vão. Agora.

Os agentes não esperaram nem mais um segundo, dando no pé antes que Victor pudesse rebater a recusa de Yuuri com qualquer argumento que fosse. Estavam mais do que cientes de que a discussão que estava prestes a se iniciar não era algo que eles eram supostos de ouvir, nem algo que eles pudessem impedir.

Assim que se viram sozinhos, Victor se virou na direção de Yuuri.

— É muito perigoso!

— Sim! Exatamente por isso que não vou embora! — Yuuri falou, impaciente. Pelo seu tom de voz, ele supunha que o que ele dizia era mais do que óbvio.

Victor se viu mordendo o lábio inferior. Havia uma dor chata em seu peito, um aperto constante e incômodo. Não conseguia acreditar que estavam tendo a primeira briga da relação em um momento como esse.

— Não posso garantir que vou conseguir te proteger. Por favor, Yuuri, não posso arriscar que algo te aconteça — Victor suplicou, sua voz carregada de mágoa e tristeza. Se Yuuri se ferisse de alguma forma, não saberia o que fazer. E não podia garantir sua segurança quando não sabia o que os esperava.

Yuuri deu um passo à frente, reduzindo um pouco mais a distância entre eles. Em seguida, pousou uma mão no peito de Victor, logo acima de seu coração, e no decorrer de um minuto assim permaneceu, limitando-se a saborear a sensação deleitosa do órgão pulsando contra a palma de sua mão. Seus olhares se encontravam fixos um ao outro, em transe, e Victor tinha a sensação de que se perderia naqueles profundos olhos castanhos se não tomasse cuidado.

— Por favor, não me deixe pra trás — Yuuri disse, descansando a cabeça no ombro de Victor. — O que quer que esteja acontecendo, vamos enfrentar isso juntos.

O coração de Victor pulsava tão rápido que o sentiu falhar uma batida, e tinha certeza de que Yuuri sentiu também, visto que sua mão continuava pousada sobre seu peito.

— Por favor, Victor. Confie em mim.

Em um piscar de olhos, Victor engoliu todas palavras que havia preparado para dizer, os argumentos que havia reunido para tentar convencer Yuuri a se abrigar em algum lugar seguro desaparecendo como uma névoa sendo varrida por rajadas mornas de vento. Por fim, não vendo muito mais opção, cedeu e anuiu a cabeça, silenciosamente e ainda segurando a respiração.

Embora não tivesse certeza de que era a decisão certa, era a que ele queria tomar.

— Okay… Mas deve ficar perto de mim o tempo todo! — Victor disse e Yuuri anuiu com veemência.

Após atravessarem as amplas portas de vidro da Torre, Victor os guiou aos elevadores instalados ao fundo da recepção, sempre caminhando alguns passos adiante caso algo viesse a acontecer. Não cruzaram com nenhuma alma dentro da Torre de São Petersburgo, e Victor esperava que isso fosse um sinal de que todos haviam conseguido evacuar em segurança.

Quando alcançou o hall dos elevadores, Victor rapidamente apertou o botão no painel. Um segundo se passou, depois dois, três... Ele cruzou os braços e bateu o pé no chão, sentindo-se impaciente, olhos atentos aos números que decresciam de forma lenta demais para seu gosto. Suspirou, percebendo que ainda demoraria um bocado para o elevador chegar ao térreo.

Quando Yuuri finalmente o alcançou, ele franziu o rosto enquanto passava reto por Victor, ignorando os elevadores e seguindo em direção às escadas, que se encontravam isoladas atrás de portas grossas e pesadas.

Os olhos de Victor se arregalaram e seu queixo caiu.

Ah, é — Victor percebeu tardiamente, só então se lembrando da existência de protocolos de segurança. Em silêncio, ele seguiu atrás de Yuuri, sentindo-se um pouquinho envergonhado.

A subida foi longa, cansativa e num ritmo tão acelerado quanto suas pernas e pulmões permitiam. Eles escalaram tantos degraus que, em certo momento, Victor se viu pensando que, do jeito que as coisas iam, logo chegariam aos portões do Paraíso. Infelizmente, nenhuma trombeta saudou sua chegada; apenas uma ansiedade latejante os acompanhava quando pisavam fora da escada de incêndio.

Chegar ao laboratório acabou consumindo mais tempo do que Victor havia antecipado, além de ter exigido mais esforço do que ele jamais imaginou ser possível. Honestamente, o exercício o deixou um tanto sem fôlego. Mas não era só isso. Havia também suor acumulado em sua testa, o qual agora escorria por seu rosto em linhas finas e úmidas, fazendo seu rosto brilhar. Sua respiração vinha como socos nas entranhas, rouca e breve. Estava cansado; no entanto, este não era o melhor momento para se deixar lembrar de sua idade.

Victor respirou fundo, recompondo-se, e procurou por Yuuri. Embora tivesse esperado encontrá-lo em uma situação semelhante à sua, não foi o que aconteceu. Victor se sentiu um tanto quanto frustrado, e com inveja, ao vê-lo tão bem e inabalado, suas costas eretas e sua postura relaxada, sem demonstrar qualquer pingo de cansaço. Victor nunca se sentiu tão velho.

Apesar de nem um minuto por completo ter se passado desde a chegada deles ao destino desejado, o casal não se permitiu parar por um segundo sequer. Sem perder tempo, eles adentraram o laboratório com passos silenciosos e sutis. Victor seguia na dianteira, estudando cuidadosamente os arredores toda vez que dava um passo à frente, Yuuri caminhando logo atrás dele.

Encontrar Yurio não foi uma tarefa difícil, ainda mais quando ele se encontrava ao lado de uma máquina enorme de três metros de altura no meio de uma ampla área aberta do laboratório. E quando o fizeram, Yuuri deixou uma exclamação surpresa escapar, e Victor não teve dificuldades em ver as razões por trás de sua reação espontânea.

Yurio se encontrava anormalmente ereto, um monte de papéis em suas mãos e olhos que pareciam não enxergar nada além do monitor à sua direita. De onde estavam, Yuuri e Victor tinham uma visão clara do garoto, que por sua vez ainda não tinha notado os recém-chegados. A postura de seu corpo e as expressões que reinavam em seu rosto causaram em Victor uma dor, bem no fundo de seu peito.

Victor se sentia culpado, além de bastante responsável pela cena com a qual se deparou. Além disso, ele se viu incapaz de afastar uma dúvida de sua mente: depois de mais ou menos um ano sob sua tutela, esse era o produto final?

O resultado de todos os seus ensinamentos e lições se encontravam agora claramente dispostos nas expressões de Yurio na forma de um sorriso largo e malicioso. O rosto não de um vilão, mas de algo vil e destrutivo.

Quase não conseguia reconhecer o garoto.

 

—--

 

Yurio estava mexendo na máquina, empurrando alguns interruptores para cima e para baixo e se certificando de que tudo estava em ordem, a todo momento atento aos ruídos resultantes do giro das engrenagens presentes dentro da carcaça mecânica, quando sentiu que algo se aproximava. A sensação veio na forma de um calafrio, o qual percorreu sua espinha lentamente, fazendo com que os pelos de sua nuca se arrepiassem. Porém, quando decidiu se virar e enfrentar o que quer que fosse que estava vindo até ele, já era tarde demais.

Um braço envolveu seu peito, o outro segurando com firmeza seu pescoço. No segundo seguinte, seus pés perderam o contato com o solo e ele gritou enquanto esperneava, chutando o ar mesmo ciente de que isso não levaria a nada. Yurio resistiu e se debateu, mas havia muito pouco que ele pudesse fazer quando não tinha apoio para os pés. Além disso, quem quer que o estivesse segurando era forte; os braços não eram muito grossos, mas tinham músculos definidos e rígidos nos lugares certos.

Arriscou olhar por cima do ombro, tentando espiar a cara do homem que o imobilizou com tanta facilidade. Entretanto, não conseguiu ver nada além de um punhado de fios de cabelos negros.

— Victor! — O homem exclamou e os olhos de Yurio se arregalaram ao que se viu reconhecendo aquela voz. Palavras morreram dentro de sua garganta com a força do golpe, a revelação tendo sido basicamente um soco na boca do estômago.

Mas então Victor passou diante dele, indo em direção à máquina, e Yurio foi novamente capaz de encontrar suas palavras.

— Espera!

Yurio não pôde fazer nada além de assistir enquanto seu mentor empurrava e puxava os interruptores da máquina, destruindo todo o seu trabalho duro em questão de segundos. Yurio gritou para que ele parasse, chutando com mais força do que antes, debatendo-se com todas as forças. Sua única esperança era que o homem atrás dele — que agora ele sabia ser aquele maldito Katsudon — deixasse o corpo pequeno e magrela do Yurio escapar. Infelizmente, até então sem sorte. O braço em volta de seu torso era firme, e Yurio sequer conseguia mordê-lo por causa do outro, que se encontrava ao redor de seu pescoço.

— Para! PARA! Me solta, seu porco estúpido! Victor, NÃO! Me solta! SOLTA! — Suas palavras arranhavam ao passarem por sua garganta. Imperativas. Desesperadas. As súplicas de uma alma sem esperanças, de um coração partido. Os ecos de um sonho despedaçado.

Tentou se soltar do braço de Katsudon, livrar-se de seu aperto, mas não era forte o suficiente. Era muito pequeno, muito jovem. Yurio mordeu os lábios, tão forte que quase arrancou sangue, sentindo-se tão frustrado quanto estava irritado.

E então a máquina finalmente morreu, cessando completamente seu funcionamento nos segundos seguintes e tornando-se ensurdecedoramente silenciosa não muito depois. O corpo de Yurio amoleceu, perdendo toda a força. Seus olhos se encontravam arregalados e seus lábios franzidos. Ele olhava para o chão e para os pés, que ainda estavam suspensos no ar, sua mente completamente em branco. Algo latejava dentro de seu peito, uma dor como nenhuma que experimentou até então.

Ele fechou os olhos com força e cerrou os punhos.

— Porco estúpido de merda! Te odeio! ODEIO! — disse, esgotando o restante de suas forças.

O som de passos foi o que levou Yurio a erguer a cabeça e abrir os olhos uma vez mais. Victor se posicionou diante dele. Ele estava franzindo profundamente, rugas circundando seus olhos; olhos azuis tão frios quanto o mar Ártico.

Por que ele estava olhando para Yurio daquele jeito? Por que seus lábios tremiam? Por que Victor parecia tão desapontado?

Yurio abriu a boca para falar, para questionar, mas caiu em silêncio assim que uma mão se aproximou, colidindo sem dó com sua bochecha. Yurio se viu sem palavras. Katsudon soltou uma exclamação surpresa, aparentemente também não tendo esperado algo do tipo. A lateral de seu rosto latejava, ardia e queimava, tudo ao mesmo tempo, entretanto, ainda assim, a dor em sua bochecha não era nada comparada à que ele estava sentindo em seu peito. Havia um aperto em seu coração, doloroso como se a carne tivesse se desfeito e deixado para trás um buraco vazio.

Embora a força ao redor de seu corpo tivesse decrescido, uma consequência direta da surpresa que o homem estava sentindo quanto à situação, Yurio não sentia mais vontade de resistir. Não tinha sentido fazer isso.

— O que diabos você estava pensando?! — Victor perguntou, sua voz alta e irritada.

Yurio baixou a cabeça e fechou os olhos. O aperto em seu peito era demais, insuportável, e odiava se sentir assim.

— Tem alguma ideia do que fez? — A pergunta do Victor foi como uma agulha atravessando diretamente seu coração.

Yurio cerrou as mãos mais fortemente, seus braços ainda caídos ao lado do corpo.

— Por que fez tudo isso? — Victor perguntou, e Yurio não aguentou mais.

— Fiz por você, droga! — Yurio ergueu a cabeça, olhando diretamente nos olhos gélidos de Victor e fingindo que eles não o incomodavam.

Aquelas expressões não combinavam com seu rosto. Victor normalmente mostrava-se calmo, exibindo um sorriso despreocupado onde quer que fosse. Ele era um tolo que parecia nunca ter nada de importante em mente, sempre se deixando levar e vivendo a vida conforme lhe apetecia. Agora, entretanto, era como se uma sombra pairasse sobre suas costas, densa e severa, a qual estava impedindo Yurio de se acalmar.

— Quando que eu te pedi para fazer uma coisa idiota dessas? — Victor parecia perplexo, incrédulo que seu aprendiz pudesse sequer sugerir que tudo foi feito pensando nele. — O que te fez pensar que eu apreciaria algo assim?

— Se você não fosse uma decepção tão grande de vilão, talvez entendesse.

Yurio virou a cara. Sem palavras, Victor não conseguia acreditar nas palavras que acabara de ouvir. Enquanto isso, Katsudon, que ainda se encontrava tão imóvel quanto uma estátua, segurando o corpo flácido de Yurio embora não houvesse mais muita razão por trás do gesto, sabiamente se manteve fora da conversa.

Victor precisou de um tempo para encontrar suas palavras novamente. Afinal, não foi fácil digerir o que Yurio, seu próprio aprendiz, havia cuspido nele.

— Quem você pensa que é pra me dizer isso?

Victor agarrou a gola da camisa do garoto e a puxou com força em sua direção. Katsudon falou algo, mas seu nêmesis não se encontrava em condições de ouvir qualquer coisa naquele momento, sobretudo os murmúrios baixos e ansiosos do agente.

— Victor, por favor — Yurio ouviu Katsudon dizer, sua voz gentil e preocupada, o volume mais alto do que das vezes anteriores. Victor, no entanto, seguia cego em meio à raiva que estava sentindo, sem condições de ouvir o que seu nêmesis tinha a dizer. Aos seus olhos, apenas Yurio existia; apenas Yurio e todas as terríveis consequências de suas ações.

— Você não sabe de nada. Você é uma criança. Você nem mesmo sabe o que significa ser um vilão.

Como se dez mil espadas houvessem lhe atravessado o peito, Yurio se sentiu um tanto morto. E como se isso já não bastasse, o olhar gélido que Victor lhe estava dirigindo já há algum tempo enfim sucedeu em atravessar suas barreiras, roubando de uma só vez todo o calor do seu corpo.

Yurio não possuía feridas aparentes, mas sua dor era tamanha que lágrimas tímidas haviam se acumulado nos cantos de seus olhos. Ele se perguntava se seu coração estava morrendo; tinha que estar depois de tudo pelo que passou, de ter sido completamente feito em pedaços.

Baixando a cabeça uma vez mais, Yurio olhou para o chão. Seu peito se elevou e um suspiro profundo escapou por seus lábios logo a seguir, deixando para trás uma sensação incômoda e levando consigo toda a energia que restava em seu corpo. Seus olhos ardiam como não o faziam há muito tempo. Seus lábios tremiam. Raiva? Tristeza? Frustração? Não sabia nem mais dizer o que exatamente estava sentindo. Tudo o que sabia era que tudo nele doía e que estava se sentindo uma merda. Sentindo-se um fraco.

Tudo o que ele fez… Tudo que desejava… Tudo foi para que Victor pudesse voltar a ser o que era antes, para que ele voltasse a ser o vilão que Yurio um dia tanto admirou, sua maior fonte de inspiração desde a infância.

Isso não era o que ele queria. Não esta dor. Não esta frustração.

Não conseguia parar de se perguntar…

Onde tinha errado?

 

 


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Notas finais do capítulo

Gente, acabei de descobrir que tem limite de palavras por capítulo kkk Ai Jesusss



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