Academia de Poderes Inúteis escrita por Creeper


Capítulo 7
Só é crime se alguém ver


Notas iniciais do capítulo

Opa, mais um sábado, mais um capítulo! Como vocês estão? Espero que tenham uma boa leitura.

Esse capítulo, diferente dos outros, precisa de um alerta sobre o que acontece no início.
Aviso/gatilho: crise de ansiedade.



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Kaíque já não tomava banho frequentemente, então depois que ele teve o mínimo contato com Yara, não duvidaria que ele passasse a próxima semana sem encostar em um chuveiro.

Por causa disso decidi deixar meu quarto e passar um tempo nas cadeiras estofadas da biblioteca após o jantar. Apoiei o caderno de desenho nas coxas e rabisquei o prédio da academia, ora ou outra parando para responder as mensagens de Stefanie e mamãe.

Mandei uma foto do que estava desenhando em nosso grupo do Whatsapp, recebendo as respostas quase que instantaneamente:

Mãe: Ownt, que lindo, meu filho! Um verdadeiro artista! [20:49]

Stef: Tá tudo torto, sabe usar a régua não? [20:50]

Minha irmã era adorável. Bom, considerando que Stefanie estava estudando para entrar na faculdade de arquitetura, meus rabiscos irregulares deviam ser uma ofensa para ela.

Em poucos segundos, mamãe encheu o grupo com fotos de meus animaizinhos, coisa que ela fazia todos os dias para que eu “acompanhasse o crescimento deles”. Sorri ao passar as imagens, vendo meus bebês lindos e saudáveis, todavia, reparei que faltava a foto de um.

Eu: Cadê a Siri? [20:53]

Mãe: Ela não amanheceu muito bem e vomitou um pouco de tarde. Agora está deitada na casinha dela. [20:53]

Meu coração falhou uma batida e um zumbido martelou minha cabeça diante da informação. Os dedos trêmulos digitarem com certa dificuldade:

Eu: Já chamou a Sabrina? [20:54]

Sabrina morava na esquina da nossa rua e já havia trabalhado como veterinária, então geralmente ela nos ajudava quanto aos problemas relacionados aos nossos animais.

Mãe: A Stef foi lá chamá-la, mas parece que ela viajou e só volta no fim de semana. [20:55]

Mãe: Nós com certeza daremos um jeito, não se preocupe, filho. [20:55]

Tarde demais, eu já estava preocupado. Engoli em seco e impulsivamente enviei a próxima mensagem.

Eu: Mãe, vem me buscar, pelo amor de Deus. Eu preciso ficar com a Siri! [20:56]

Stef: Mané, já está tarde para a mãe ficar dirigindo. A Siri vai ficar bem, eu juro que a levo em outro veterinário amanhã. [20:56]

Sem que eu me desse conta, meu caderno escorregou e caiu no chão em um baque seco. Eu não conseguia pegá-lo de volta, estava paralisado demais para aquilo. Uma vontade súbita de chorar me consumiu, por mais que eu respirasse fundo e tremesse os lábios, nada parecia certo dentro de mim. Tudo havia parado de funcionar de repente.  

Eu sabia que Siri era idosa, mas imaginar a possibilidade de perdê-la era a pior coisa do mundo. Ela estava conosco desde que eu era criança, quando uma amiga de minha mãe precisou se mudar para um apartamento que não aceitava animais e perguntou se gostaríamos de adotá-la, ainda filhotinha.

Prestes a perder o fôlego, um peso real fez-se presente em meu ombro. Assustado e perdido em meio ao turbilhão de pensamentos, olhei para cima subitamente, deparando-me com Yara de pé ao meu lado.

— O que aconteceu? – ela ergueu as sobrancelhas e afastou-se lentamente, surpresa.

— N-Nada. –  minha voz saiu falha. Passei as costas das mãos pelos olhos úmidos e funguei.

— Você queria chorar. –  a garota sentou-se na cadeira à minha esquerda. 

— Não queria. –  falei de modo embargado.

— Não está se sentindo bem para a missão? – Yara curvou-se e pegou meu caderno de desenho no chão.

Continuei a esfregar os olhos a ponto de deixá-los sensíveis e provavelmente vermelhos, sem coragem para encarar a garota. De todas as pessoas dali, ela era a única que eu não queria que me visse chorar. Por outro lado, de todos na API, eu confiava apenas nela.

— Já teve medo de perder alguém que ama muito? –  balbuciei sentindo um aperto no peito.

Ela demorou longos e tortuosos segundos para me responder. 

— É isso que está te deixando mal? –  senti sua mão em minhas costas.

— A minha cachorrinha. –  sussurrei, um nó entalado na garganta. – Ela é idosa. E não está muito bem. 

— Não tem nenhum veterinário perto da sua casa? – o tom de Yara era leve e calmo.

— Minha irmã disse que vai levá-la amanhã. –  minhas mãos subiram para a cabeça e inconscientemente puxei meus cabelos. –  E se algo ruim acontecer até lá?! – elevei o tom de voz, aflito.

— Sua irmã é mais velha? –  Yara tocou delicadamente minhas mãos. Assenti brevemente. –  Confie nela, ela sabe o que está fazendo.

Virei a cabeça para a garota que concentrava-se em retirar os cabelos enroscados de meus dedos. Nossas mãos desceram para o braço de minha cadeira, tendo as suas sobre as minhas, emanando calor.

— Sua cachorrinha vai ficar bem. –  ela murmurou determinada.

Minha respiração entrecortada ecoava em meus ouvidos, junto às batidas aceleradas em meu peito. Por algum motivo, eu quis acreditar na Yara. Eu precisava acreditar nela. 

Mordi fortemente o lábio inferior e balancei a cabeça para cima e para baixo, concordando. Algumas pessoas que passavam na biblioteca nos lançavam olhares de indagação, mas logo fingiam não ver nada. 

— Você quer ir beber água? –  Yara perguntou prestativa.

Fomos interrompidos pelo toque estridente do meu celular. Observei a tela brilhando com um ícone vermelho e outro verde abaixo do nome “Mãe”. Respirei fundo e deslizei o dedo pela tela, atendendo a ligação.

— Alô? –  falei roucamente.

Filho, graças a Deus! Você parou de responder às mensagens, aconteceu alguma coisa?—  mamãe soou preocupada.

Olhei para Yara, sabendo que ela havia escutado e tentava distrair-se com os cadarços de seus tênis. Engoli em seco e não hesitei ao encostar o aparelho na orelha da garota. Ela arregalou os olhos e os lábios transformaram-se em uma linha.

— A-Alô? –  ela murmurou após um tempo. –  Boa noite… Senhora. –  segurou o celular por conta própria. –  Eu estou do lado do Norte. Ele… –  me fitou como se perguntasse o quanto podia contar.

Afirmei receoso, então, a garota relatou cautelosamente o que aconteceu. Uma de suas mãos se mantinha sobre a minha, aquecendo-a e não a soltando por nada. Eu me senti estranhamente seguro.

Ao final, Yara me devolveu o celular. Esteve falando baixinho o tempo inteiro e suportando as repreensões visuais da bibliotecária.

— Querido, tem certeza de que está tudo bem? Eu queria poder fazer mais por você e... —  mamãe estava aflita.

— Vai melhorar. –  meu peito parava de doer aos poucos. 

— Stefanie disse que gravará um vídeo assim que a Siri melhorar. —  fez uma pequena pausa. —  Nos mande mensagem para o que precisar. Eu te amo demais.

— Também te amo. –  balbuciei.

— Ah, e agradeça a Yara. Ela é um amor de pessoa. Tem que convidá-la para vir aqui em casa quando saírem da escola.  

— Mãe… –  resmunguei, a cabeça latejando. 

Nos despedimos e encerramos a ligação. Soprei pelos lábios entreabertos e batuquei os dedos livres no outro braço da cadeira. Tinha a sensação de estar exausto e meu estômago embrulhado não colaborava.

— Muito bem. Vamos para a missão. –  levantei-me, contudo, as pernas bambas me fizeram voltar para o assento rapidamente. 

— Norte. –  Yara chamou. –  É melhor deixarmos para amanhã. Você precisa estar bem.

— Eu estou bem. – rebati. Era mentira.

— Diga isso para o seu corpo. –  ela apontou com o queixo. Meus membros tremiam de maneira alarmante. – Vem. Vamos beber água e pegar ar puro. –  ergueu-se e me estendeu a mão. 

Respirei fundo e foquei seus dedos delicados, esperando por mim. Todas aquelas estantes abarrotadas de livros estavam começando a me deixar sufocado, o que me instigou a conseguir ficar de pé e segurar firmemente a mão de Yara.

Mais tarde, ao me deitar para dormir, notei que a camiseta anteriormente azul que eu usava tinha se tornado verde. 

>>>

A quinta-feira correu bem na medida do possível, entre uma aula e outra, eu pegava meu celular e mandava pelo menos cinco mensagens para Stefanie. Na trigésima quinta mensagem enviada, ela jurou que iria até a API apenas para me fazer engolir o celular.

Stef: Já levei a Siri no veterinário. Vai ficar um tempinho lá, mas logo sairá. [11:50]

Stef: Você está bem? [11:51]

Duas coisas que nunca aconteciam: eu ter sossego e a Stefanie perguntar se eu estava bem. De qualquer forma, respondi que sim.  

Almocei na companhia de Yara, apesar de que nenhum de nós falamos muita coisa. Prestes a terminarmos de comer, tomei coragem e comentei sem jeito:

— Ontem… Você percebeu que havia algo de errado.

Aquilo realmente me tocou. Passei as aulas da manhã pensando na noite anterior e como a situação se desenrolou.

Ela usou o canudo para sugar as últimas gotas de suco no fundo da garrafa, produzindo um barulho incômodo.

— Você estava pálido e suando. –  mordeu a ponta do canudo.

— Mas… –  prendi o garfo entre os dentes. –  Esquece. –  suspirei envergonhado.

Yara amassou a garrafa e gastou tempo demais para fechar a tampa do gargalo, dando a impressão de estar se distraindo para não pensar no assunto. Soltei meu garfo e esperei para ver se ela diria alguma coisa.

— Há um ano e meio, na minha antiga escola… –  ela respirou fundo. –  Eu ajudava uma amiga com isso. 

Seu tom de voz sério deu a entender que a conversa não se estenderia mais do que aquilo. Levantei-me em silêncio e empurrei minha garrafinha de suco ainda lacrada para a garota.

— Obrigado. –  sussurrei da forma mais sincera possível. –  Nos vemos de noite.

Eu podia dizer que estava conseguindo pegar o ritmo das aulas, exceto quando eu ficava recebendo bilhetinhos da União Rebelde me lembrando da nossa missão. Claro, os bilhetes não eram tudo que me atrapalhavam, tinha de confessar que a API era um tanto puxada em comparação com a minha antiga escola onde às vezes não tínhamos nem professores, quem diria aulas. 

>>>

Saí do meu dormitório às 21:50, Kaíque estava jogando em seu celular e sequer percebeu que eu deixei o lugar. Ele não perceberia nem se eu morresse, até porque o cheiro do quarto não seria muito diferente do comum.

Passei as mãos pela camiseta escura, livrando-a dos amassados e poeira. Após o jantar, Yara me enviou uma mensagem ordenando que eu vestisse algo totalmente preto (havíamos trocado nossos números de celular na outra noite,  depois que saímos da biblioteca, para caso eu precisasse de alguma coisa).

Decidimos nos encontrar no final da escadaria de nosso andar para não sermos vistos juntos no corredor do dormitório. Os alunos não deveriam ultrapassar o toque de recolher de 22:15, quando os inspetores acampavam nos andares para terem a certeza de que não haveria visitinhas noturnas. Resumindo, tínhamos 25 minutos para concluir tudo.

Coloquei a mão no bolso da calça e puxei o desenho do prédio, amassado e cheio de marcas de borracha. Dois andares de salas e quatro de dormitórios. A janela do Felipe ficava a pelo menos 12 metros do chão. E nem ferrando que escalaríamos aquela altura pelo lado de fora. Eduardo além de não saber história, também não era bom em matemática pelo visto, já que a escada que ele sugeriu estava totalmente fora de questão.

Escutei passos descendo de modo apressado e instintivamente me encostei na parede, escondendo-me nas sombras. Suspirei aliviado ao constatar que era Yara, olhando de um lado para o outro à minha procura. Além da roupa preta, também usava luvas. 

— Já mudei a cor da porta do meu quarto várias vezes. Se a porta do Felipe amanhecer de outra cor, vão saber que fui eu. – me mostrou as mãos enluvadas. –  Que foi?

Devo ter feito cara de bobo. Eu apenas estava impressionado ao vê-la usar um rabo-de-cavalo alto e não seus dois costumeiros coques laterais. Seu cabelo longo e liso era mais bonito do que imaginava.

— Nada. – cobri a boca e desviei o olhar. – Aprendeu a destrancar fechaduras com um grampo?

— Aprender é uma palavra muito forte. –  Yara expirou. – Vamos colocar a prova.

Demos uma última conferida ao redor para termos certeza de que não fomos seguidos ou de que ninguém nos viu. Geralmente, naquela hora, todos já estavam em seus quartos, dormindo ou não. Nenhuma das outras salas ficava aberta e a única coisa funcionando era a máquina de doces e refrigerantes. Torcemos para que ninguém quisesse fazer um lanchinho antes de dormir.

Descemos no mais pleno e puro silêncio, evitando respirar alto ou pisar com força nos degraus para garantir que nenhum ruído nos denunciasse. Ao longe, conseguíamos ouvir o refrigerador do bebedouro que produzia um longo ronco e depois dava uma pausa repentina.

A luz azulada que atravessava os vidros das janelas era bonita, apesar de termos de andar nas sombras. Assim que chegamos no andar de Felipe, decidimos deixar nossos sapatos escondidos em um canto escuro, a fim de amenizar o barulho de nossos passos.

Quis usar a lanterna do celular para procurar o número do quarto, mas Yara quase quebrou meu pulso por isso. 

— Desculpe se eu não tenho visão noturna. –  resmunguei.

Mesmo na penumbra, percebi que ela revirou os olhos. A garota tateou os bolsos e sacou uma daquelas lanterninhas em formato de chaveiro que eram mais fracas que café aguado. Apontou-a na altura dos números das portas, murmurando enquanto contava cada um.

— Vinte e dois. –  respirou fundo e retirou algo do cabelo, o que julguei ser o tal grampo. – Segure isso e aponte para a fechadura. – me entregou a lanterninha.

Aproximei-me e fiz o que ela mandou. Vendo-a ali a abrir e entortar o grampo, pensei em algo.

— Isso é crime, não? –  comentei.

— Só se nos verem. –  Yara semicerrou os olhos e abaixou-se na altura da fechadura.

Busquei em minhas memórias se eu havia visto câmeras por ali durante o dia. Na verdade, o R.C.E. também tinha a má fama de falta de segurança, então eles nunca investiam em câmeras.

— Espera, está sentindo esse cheiro? –  funguei.

— Mas que droga, Norte! – ela praguejou baixinho. – Como vamos invadir um quarto se você não para de falar? –  rangeu os dentes.

— É sério. Estou sentindo um cheiro doce. – esfreguei meu nariz.

— Não espirre. – ela me olhou assustada.

— Fácil assim, né. –  resmunguei.

Tive um estalo na cabeça.

— É você. – concluí.

Yara arregalou os olhos, puxou uma mecha de seu rabo-de-cavalo e cheirou, franzindo as sobrancelhas em seguida.

— É, eu lavei o cabelo um pouco tarde hoje. Deve ter ficado com condicionador. – balbuciou. 

Funguei outra vez e pressionei meu nariz que começava a escorrer. Jurei para mim mesmo que não estragaria tudo, então comecei a me concentrar em não espirrar.

A garota fez algumas caretas entre um ruído e outro na fechadura. Ela limpou o suor da testa e ajeitou sua postura, dando um intervalo. Os números vermelhos de seu relógio digital brilhavam, exibindo 22:06 no visor. 

— É mais difícil do que eu pensei. –  Yara confessou de mau humor. Cansada, apoiou a mão na maçaneta, pressionando-a para baixo.

Em um simples “click”, a porta foi para dentro, levando a garota consigo mais rápido do que pude assimilar. Imediatamente tampei a boca para evitar um grito de surpresa e inclinei a cabeça para o interior do quarto, conferindo a garota estática e grudada ao chão. Ela sequer respirava de tanta incredulidade.

— Estava aberta? –  balbuciei adentrando o local lentamente.

Dirigimos nosso olhar para uma das camas, percebendo que estava vazia. Tive certeza de que perdi toda a cor do rosto e a capacidade de bombear sangue. Foi a vez de conferir a outra cama, onde alguém de fato a usava. E resmungava.

Yara ergueu-se discretamente, fingindo que não havia caído e fez um sinal para que eu abaixasse a lanterna e deixasse a porta aberta. 

Ela caminhou nas pontas dos pés, parando em frente a grande janela de cortinas afastadas. No parapeito, os pombos dormiam uns encostados aos outros sob a luz da lua.

Tratei de vigiar a porta, mordendo o lábio inferior a ponto de senti-lo sangrar de tanta apreensão. Um barulho esganiçado espalhou-se pelo quarto e o resmungar de Felipe cessou-se.

Apavorado, conferi o garoto. Ele usava uma máscara de dormir com desenhos de olhos de coruja. Ou de pombo, tanto faz. Sua boca entreaberta fechou-se e remexeu-se sem soltar nenhum som.

— Acho que ele está acordando. – sibilei para Yara, aproximando-me dela.

— E eu acho que essa janela está emperrada. – ela inflou as bochechas enquanto travava os pés no chão e usava toda sua força para empurrar o vidro. Os pombos acordaram e ruíram alegres.

— Shhh, pombos, shhh. –  coloquei as mãos no vidro e ao contrário da garota, puxei-o.

Deixei escapar um grunhido de esforço, aquilo realmente estava emperrado. Yara arfou, os pés indo para trás no tapete felpudo conforme pressionava a janela. A voz de Felipe voltou a ser ouvida, murmurando coisas desconexas.

Franzi o cenho e acumulei o ar nas bochechas, colocando toda a minha força naquilo. Subitamente, o vidro moveu-se e eu também. Para o meu azar, caí diante da cama de Felipe, faltando centímetros para desabar em seu corpo. 

Antes que eu pudesse escrever meu testamento mentalmente, o tecido de minha camiseta colou-se ao meu corpo ao ser puxado pela barra e tirando o sufocamento, eu fui salvo.

Yara rangia os dentes, demonstrando a dificuldade de me segurar pela roupa e consequentemente evitando minha queda. Espalmei a parede para recuperar o equilíbrio e pude suspirar aliviado. Voltei a atenção para nosso trabalho, notando que havia um lado bom e um ruim.

O lado bom: conseguimos abrir uma fresta. O lado ruim: havia uma pomba gorda presa nela.

— Sua desgraçada apressada! –  xinguei.

A pomba fez um “pru” extremamente triste. 

— Custava esperar a gente abrir essa droga inteira? –  coloquei uma mão em cada lado da janela e os impulsionei.

O vidro rangeu, abrindo-se gradativamente e permitindo a entrada de uma dúzia de pombas que agruparam-se em cima da barriga de Felipe, ruindo de felicidade.

— Vamos sair antes que… – Yara tocou meus ombros, incentivando-me a dar o fora.

Passos no corredor nos fizeram congelar no lugar e perder o fôlego. Seria um inspetor ou o dono da cama vazia? Qualquer uma das opções era tremendamente péssima. Os passos aumentaram, aumentaram e aumentaram até que uma sombra surgiu no corredor.

— E agora? – nos perguntamos simultaneamente.

Passeei os olhos pelo lugar, procurando qualquer resposta. Não havíamos nadado tanto para morrermos na praia. Fixei-me em um lugar específico que transformaria aquele trabalho em uma missão suicida.

— Se esconde debaixo daquela cama. –  sussurrei e deitei no chão, rolando para debaixo do estrado de Felipe.

Yara não teve tempo para processar a informação ou me xingar, apenas correu para o outro lado do quarto e foi para debaixo da cama do colega de Felipe. Cravei as unhas no chão, rezando pelo menos 20 “Pai Nosso”. O suor frio pingou de meu queixo, todavia, eu não tinha forças para mover o braço e enxugar o rosto.

A porta fechou-se, extinguindo parte de nossa fonte de luz. O som de chinelos arrastando-se pelo chão embrulhou meu estômago e me fez fechar os olhos fortemente. A cama do outro lado rangeu um pouco e logo parou. 

Apertei a lanterninha em meu bolso, aflito e enjoado de pavor. Tínhamos duas opções: esperar o garoto pegar no sono e fugirmos ou dormimos no chão até o amanhecer. 

Tentei enxergar Yara, parte de seu rosto sendo iluminado pela luz que vinha da janela. Ela tinha uma expressão dura de perplexidade, encarando-me apreensiva.

Movi os lábios em silêncio, citando as duas opções que formulei. A garota deu um soco seco no chão, cerrou os dentes, ponderou um tempo e ergueu o indicador. Opção um.

— Hã… –  escutamos um murmúrio. – Que ventinho… – aparentemente era a voz do colega de quarto. 

Ele entrou no quarto e não reparou nos pombos e nem na janela aberta. De duas a uma: ou era distraído ou sonâmbulo. A vida prega muitas peças às vezes, mas colocar alguém que fala dormindo e alguém com sonambulismo no mesmo quarto é uma piada.

Em qualquer uma das alternativas, a porta provavelmente havia sido deixada destrancada. Nossa fuga podia ser um sucesso.

Felipe murmurou alguma coisa, a qual o garoto respondeu. E assim continuaram como se estivessem dialogando, mesmo que fossem palavras inentendíveis. 

Fitei Yara, minha expressão incrédula refletida na sua. Os dois estavam dormindo, acordados ou um acordado e o outro dormindo?

Eu não conseguiria sobreviver àquela conversa sem sentido até o amanhecer. Cada louco com a sua loucura, só não me meta no meio. A conversa se estendeu por pelo menos mais cinco minutos. Uma certeza eu tinha: Felipe continuava a dormir, já que não tinha reclamado das pombas. O problema era saber o estado de seu colega.

— Eu vou. – o garoto grunhiu e colocou seus pés no chão.

— Vai o quê? –  a voz de Felipe saiu arrastada.

O observei colocar-se diante da janela, parando por um segundo. Seu pé direito foi erguido, sumindo do meu campo de visão. O esquerdo fez menção de se erguer também, contudo, sua perna tremeu e ele teve de voltar ao lugar.

Ele não ia fazer o que eu achava que ia, né? Ah, ia. E como ia.

O estalo em minha cabeça me obrigou a deslocar meu corpo de debaixo da cama e ficar de pé em um pulo, deparando-me com um dos joelhos do garoto no parapeito da janela. Os olhos fechados e as mãos tateando a parede confirmaram minha hipótese.

Estiquei os braços para tocá-lo, entretanto, Yara saiu de seu esconderijo feito um raio e me parou.

— Não pode acordar um sonâmbulo!  – sussurrou entredentes.

— E o que a gente faz?  – oscilava entre olhar para o garoto prestes a se jogar e a garota que mantinha os braços afastados do corpo.

— Precisamos colocá-lo de volta na cama.  – Yara aconselhou. 

Usando toda a cautela do mundo, puxei o garoto pela cintura, fazendo-o descer o joelho do parapeito. Cuidadosamente, o virei para sua cama, incentivando-o a andar na direção que propus. A essa altura, eu prendia totalmente a respiração, temendo que um único suspiro o acordasse.

Yara se empenhou em trancar a janela para evitar acidentes e eu coloquei o garoto no colchão, cobrindo-o com um lençol.

— É nossa chance.  – ela correu para a porta e eu a segui. 

Nossos passos levantaram as penas caídas no chão e uma prendeu-se em minha roupa. Não que eu quisesse, porém, meu corpo decidiu que ficaria imobilizado. Yara empalideceu e a primeira ação que teve foi meter a mão em meu nariz e me arrastar pela gola da camiseta. Pela força aplicada, fui de encontro ao chão do corredor, entretanto, a garota preocupou-se mais em fechar a porta que havia aberto às pressas.

— Missão cumprid…  – ela olhou para os lados, ofegante.

— Atchim!


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Notas finais do capítulo

Eu confesso que simplesmente amo esse capítulo, então espero que me contem o que acharam nos comentários ^^
Até semana que vem, no próximo capítulo (12/06): Oficialmente rebeldes

Beijos.
—Creeper



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