Academia de Poderes Inúteis escrita por Creeper


Capítulo 3
Meditação e fogo não combinam


Notas iniciais do capítulo

Oie! Terceiro capítulo, espero que gostem!



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Ienaga arregaçou as mangas da sua blusa vermelha amarrotada e estampada de xadrez preto e jogou sua franja para o lado.

— Eduardo! – ela gritou colocando as mãos na cintura.

A porta azul no fundo da sala abriu-se e de lá saiu um garoto alto de cabelos cacheados e undercut. Ele inclinou a cabeça para cima e puxou a pele abaixo de um dos olhos usando o indicador direito para colocar algo na íris com o indicador esquerdo. Senti um leve desconforto ao ver e tentei não encarar a cena diretamente.

— Bastava bater na porta. –  o garoto piscou os olhos rapidamente.

— Se eu fizesse isso, eles teriam tempo de fugir. – Ienaga semicerrou os olhos escuros, desconfiada.

Eu e Yara trocamos olhares questionadores como se nos perguntássemos: teríamos?

— Não é como se eu não tivesse ajudado a trazê-los para cá. – ele nos fitou, demonstrando suas íris amarelas – Apenas fui colocar as lentes.

— Bom. – a líder pigarreou. – Conheçam o Eduardo, vice-líder da União Rebelde. – apresentou.

Eduardo esboçou um sorrisinho e pendeu um pouco a cabeça de maneira galanteadora. Meu coração disparou por um instante e eu tive de baixar um pouco a cabeça para esconder as bochechas rosadas. 

— E espera que ele nos faça mudar de ideia? – Yara desdenhou.

— Claro. – Ienaga puxou uma das diversas cadeiras espalhadas pela sala, virou-a e sentou-se de modo que a frente de seu corpo tocasse o encosto.

Antes que qualquer um de nós pudesse protestar, o garoto aproximou-se de mim rapidamente, encurtando a distância permitida entre dois estranhos. Instintivamente, tentei me afastar, contudo, Eduardo agarrou a gola de minha camiseta, deixando-me estático.

Não conseguia olhar para outra coisa senão suas lentes coloridas, totalmente perplexo com o quão próximo ele estava. Prendi a respiração, concentrando-me no único pensamento que realmente importava em minha mente: “ele vai me bater ou me beijar?”.

— Pode me largar? – pedi constrangido e engoli em seco.

— Te incomoda? – ele sorriu de canto.

— Não tanto, mas acho que a elas sim. – olhei de soslaio para Yara e Ienaga que expressavam desgosto. 

Eduardo deu uma risada abafada e soltou-me lentamente, lançando-me uma piscadela discreta. Ele caminhou até a líder e ficou de costas para mim e Yara durante algum tempo.

— Conseguiu? – Ienaga bocejou.

— Óbvio. – ele deu de ombros.

— Ei, garoto, que horas são? – a líder assumiu um sorriso travesso.

Estranhei o pedido, todavia, também queria saber, então tateei os bolsos de minha calça a procura de meu celular. Meu coração falhou uma batida e meu corpo congelou.

— Meu celular, eu perdi meu... – balbuciei aflito e arregalei os olhos. Um estalo ecoou em minha cabeça, fazendo-me fuzilar Eduardo com o olhar. – Você roubou meu celular?!

— Meu poder faz pequenas coisas desaparecerem. – o garoto explicou, enfim virando-se para nós.

— O que é praticamente roubar. – cochichei para Yara.

— O problema é que as coisas nunca voltam. – Ienaga apoiou os braços cruzados no encosto da cadeira.

— Espera, quer dizer que você desapareceu com meu celular?! – gritei incrédulo.

— Não, eu realmente o roubei. – Eduardo jogou o aparelho para mim.

O peguei no ar de maneira desajeitada e estabanada. Apertando-o fortemente na palma de minha mão, notei que a foto do bloqueio foi trocada por uma selfie do Eduardo. Fiz uma careta, mas antes que pudesse apagar aquilo, Ienaga continuou:

— E então?

— Senha de padrão totalmente previsível, um clássico “L” invertido. A galeria dele é cheia de fotos dos seus animais de estimação, ele praticamente tem um zoológico em casa. Tem conta na maioria das redes sociais onde expõe toda sua vida, mesmo que ninguém ligue. – Eduardo relatou. 

O sangue acumulou-se e ferveu em minhas bochechas e eu tive de me controlar para não esmagar meu celular de tanta vergonha.

— O quê?! Como você fez isso?! – minha voz saiu baixa e cortada.

— Agora falta saber sobre a garota. – Eduardo direcionou-se a Yara, me ignorando por completo.

— Tente. – a garota adquiriu uma pose de ataque.

— Tudo bem, conseguimos o mais influenciável. – Ienaga agitou uma das mãos.

— Ei, quem você chamou de influenciável? – cerrei os dentes.

— Obviamente, você. – Yara rolou os olhos.

Engoli uma frase incompleta e inflei as bochechas, remoendo a situação. Não me importava com o que eles tinham descoberto, mas sim quem tinha descoberto, afinal, Ienaga era uma pirada.

— Quais os seus poderes? – Eduardo sentou-se em uma das cadeiras, cruzou as pernas e apoiou um dos cotovelos no encosto. – Ou habilidades, como queiram chamar. – revirou os olhos.

Eu realmente não havia ouvido ninguém chamar aquilo de poderes, o que me surpreendeu bastante. Não deixava de ser um termo usável para descrever seja lá o que fossem aquelas manifestações.

Esperei que Yara contasse o dela primeiro, como esse não foi o caso, respirei fundo e respondi sem graça:

— Cuspir fogo pela boca.

— Isso não é inútil. – a líder arqueou uma sobrancelha.

— Apenas quando espirro. – acrescentei.

— Retiro o que disse, é inútil sim. – ela assentiu.

— E você? – Eduardo usou o queixo para apontar Yara.

— Posso mudar a cor das coisas. – a garota ao meu lado respondeu.

— Não é tão ruim. Tem algum “porém”? – Ienaga mastigou alguma coisa.

Percebi que Yara fechou levemente os punhos rentes ao corpo e desviou o olhar, balbuciando:

— Não posso reverter.

Algo dentro de mim me fez pensar que não era somente aquilo que a incomodava.

— Como foram legais e nos contaram seus poderes, eu contarei o meu. – a líder respirou fundo. – Eu chamo de “desvantagem vampírica”. Tenho todas as desvantagens de um vampiro, mas nenhuma das vantagens. 

Pisquei os olhos várias vezes, realmente intrigado.

— Nada de alho. Nada de sol. Nada de água benta ou estaca no peito. – Ienaga ergueu um dedo para cada coisa. – Não que tenhamos testado o último. – pigarreou.

Eduardo assentiu lentamente como se estivesse lembrando de algo.

— Resumindo, meu poder é inútil. – Ienaga bufou. – E...

— Foi ótimo, mas preciso ir. – eu e Yara a interrompemos simultaneamente, desesperados para sair dali. Lancei um olhar indignado para a garota de coques, aquilo de falar ao mesmo tempo precisava parar.

— Vocês têm todo o tempo que quiserem para pensar. – a líder levantou-se da cadeira. – Nunca será tarde para se juntarem à rebelião.

O clima ficava mais estranho a cada minuto que passávamos dentro de seja lá em que sala estivéssemos. Minha única pretensão era passar pelos meses de experimentação, não desafiar o R.C.E. e talvez o governo.

Eduardo atravessou a sala e abriu a porta em um ato de cavalheirismo, entretanto, fechou-a abruptamente assim que passamos, fazendo toda a boa educação desaparecer. Tamanha foi a força que fez nossos cabelos esvoaçarem e os ouvidos doerem pelo baque estrondoso.

Do lado de fora, um corredor cheio de caixas de papelão e cadeiras ainda plastificadas se estendia em nossa frente em uma espécie de almoxarifado. Na porta pela qual saímos, uma folha de caderno colada por fita adesiva dizia:

“Esconderijo da União Rebelde.

Não entre, a menos que seja um rebelde”.

— Quanta discrição. – murmurei e caminhei atrás da garota de coques.

— Por quanto tempo pretende ficar me seguindo, cabelo de ferrugem? – Yara voltou-se para mim, irritada.

— Te seguindo? Não sei se percebeu, mas nós dois estamos indo para os dormitórios. – retruquei ranzinza. 

Um segundo se passou até eu ter um estalo na cabeça.

— Espera, cabelo de ferrugem? – perguntei confuso.

— Oh, me desculpe se eu não sei xingamentos para pessoas ruivas. – ela revirou os olhos.

— Eu não sou ruivo. – puxei uma de minhas mechas loiras, avaliando-a.

Havia descolorido o cabelo depois de perder uma aposta para Stefanie em uma tarde tediosa (duvidei que ela conseguisse comer 12 ovos crus. Ela comeu 13.), por sorte, minha raiz castanha já voltava a aparecer. Foi uma surpresa nada agradável quando mamãe chegou em casa e viu Stefanie envolvendo minha cabeça com uma mistura pastosa de cor azul e papel alumínio.

— Não? – Yara piscou brevemente, atônita. Pensei ver sua pele vermelha ganhar uma camada de rubor.

— Não! Como você pode confundir as cores assim? – coloquei a outra mão na cintura.

A garota engoliu em seco, abaixou a cabeça e seguiu seu caminho sem me dizer uma única palavra.

— Ei, espera! – corri atrás dela.

— Agora você está me seguindo. – Yara andava a passos rápidos e pesados.

— Sim, eu estou. – procurei manter um ritmo igual ao da garota.

— O que foi, vai me zoar? – ela bufou.

— Por que zoaria? – balancei a cabeça, perdido. Eu realmente não a entendia.

— Porque eu sou daltônica. – Yara parou repentinamente, a voz presa em sua garganta. 

Interrompi meus passos faltando poucos centímetros para colidir com a garota. Ela virou-se subitamente para mim, assustando-me.

— Espera, você... – comentei surpreso.

— Vamos. Pode começar. – ela cruzou os braços, impaciente.

— Começar o quê? – recuei um passo para recuperar o equilíbrio.

— As perguntas idiotas. “Você enxerga em preto e branco?” ou “que cor é essa?”. – Yara balançou a mão em um sinal para que eu prosseguisse.

A encarei por um breve segundo até perceber que ela falava sério.

— E por que eu ia querer saber disso? – juntei as sobrancelhas e voltei ao percurso pelo corredor.

— Hã? Não quer? – a garota me acompanhou, completamente pasma.

— Eu não tenho isopor no lugar do cérebro. – ajeitei meus cabelos. – Aliás, você está me seguindo.

A feição impressionada de Yara foi repentinamente substituída pela sua face de “não se aproxime ou eu te mato”, seguida por uma tentativa de me ultrapassar. Como se eu fosse deixar.

Em certo ponto, estávamos praticamente correndo e lutando pela liderança dos corredores e escadarias, pouco nos importando com os alunos em quem trombávamos ou se passávamos uma má impressão.

Chegamos ao quinto andar do prédio ofegantes e suados após termos subido inúmeros lances de escada pulando dois degraus por vez. Apoiando as mãos nos joelhos e arfando, li a placa que indicava a direção do dormitório masculino, oposta à do feminino.

— Para qual aula vai se inscrever na segunda? – passei o antebraço pela testa úmida.

— Para qualquer uma que você não esteja. – a respiração de Yara ficou pesada. Apesar de sua fala, pude perceber o vestígio de um sorriso em seus lábios.

— Se você não o fizesse, eu o faria. – alfinetei.

— Vá limpar seus mangás. – Yara endireitou sua coluna.

— E você vá cuidar das cinzas da sua avó. – repeti seu movimento.

— Bobão. – a garota mostrou a língua.

— Bobona. – puxei a pele abaixo de meu olho, provocando-a.

Demos as costas um ao outro e prosseguimos nos percursos para nossos quartos. Conferi a etiqueta presa a chave que Miguel me entregou, a qual indicava o número do meu quarto.

Destranquei a porta pintada de tinta prateada, sendo recebido por uma bagunça surreal do lado direito do cômodo. Os lençóis e cobertores embolados pendiam para fora da cama, farelos de biscoitos sujavam todo o tapete de cor escura e roupas viam-se em lugares que me faziam pensar se aquilo era realmente possível.

Fechei a porta atrás de mim, apoiando-me nela para colocar as informações no lugar. Eu vivi com Stefanie durante 15 anos, sendo minha irmã a rainha da bagunça, deveria estar no mínimo acostumado. Pelo visto, existia um rei também.

Do lado esquerdo, minhas coisas estavam devidamente encostadas à parede, esperando para serem desembaladas e guardadas. Ignorando o caos feito pelo meu colega de quarto, comecei a desfazer minhas malas.

Tive de encontrar o banheiro (aparentemente, existia um coletivo por andar para cada sexo) e umidecer um lenço na pia para limpar as capas de meus mangás. Fechei os olhos por um segundo e respirei fundo, preparando-me mentalmente para abrir as páginas. Por sorte, poucas haviam sido realmente danificadas, então as deixei abertas em um canto no chão para secarem.

Por fim, joguei-me em meu colchão depois de forrá-la com um cobertor, aspirando o cheiro do sabão em pó favorito de mamãe. Eu já sentia falta de casa. Ainda não havia caído totalmente a ficha.

Até ali, as coisas não haviam sido necessariamente ruins. Aquelas pessoas eram loucas, sim, mas não chegavam a ser péssimas como eu secretamente cogitei. Talvez houvesse uma pequena chance de eu me adaptar. Talvez o mínimo calor em meu peito significasse esperança ou na pior das hipóteses, uma falsa expectativa.

Expulsando toda melancolia em um suspiro profundo, agarrei uma lapiseira e me concentrei em preencher minha grade de estudos de segunda-feira. A ficha marcava um período letivo que ia das 08:00 às 16:00, dentro desse tempo deveríamos efetuar 5 horas de aulas curriculares e 2 de complementares, tendo uma hora de intervalo, dividida em 40 minutos para o almoço e 20 para o lanche da tarde.

Franzi o cenho e bati a ponta inferior da lapiseira em minha testa, extremamente pensativo. Depois de diversas caretas, nenhuma das palavras ou retângulos pareciam estar no lugar. Afundei o rosto no papel, gemendo de frustração por não saber o que marcar.

Sem perceber, eu adormeci com a pasta sobre meus olhos.

>>> 

Abri os olhos com dificuldade, percebendo a mudança drástica na iluminação do lugar. Me lembro bem do sol laranja da tarde invadindo o quarto pela janela, mas fui surpreendido por uma luz dolorosamente clara. Encarei o relógio digital na cabeceira. Eram sete da manhã.

Levantei meu torso subitamente, incrédulo e assustado por ter dormido tanto. Limpei o fio de saliva que escorria pelo queixo e esfreguei meu rosto inchado. Em meio a um transe pertencente aqueles que não sabem se estão acordados ou ainda dormindo, abafei um pequeno grito ao ver algo mover-se do outro lado do quarto.

— Uau, você acordou. Pensei que estivesse morto. – Kaíque retirava sua camiseta e a jogava em um canto aleatório.

— Você é meu colega de quarto? – perguntei grogue de exaustão e cocei os olhos.

— Não, eu gosto de invadir quartos alheios. – ele arqueou uma sobrancelha e sorriu enquanto desabotoava sua calça jeans.

Meu estado semelhante ao de um pós-atropelamento barrou minha filtragem de ironia e eu realmente fiquei tentado a acreditar naquilo.

— Por que acordou tão cedo? – bocejei.

— Na verdade, eu estou indo dormir. – Kaíque aterrissou em sua cama. – Nos vemos em dez horas. – puxou o cobertor até sua cabeça.

Uma infinidade de alunos matriculados na API e o meu colega de quarto era justamente o ser mais preguiçoso e bagunceiro do estado de São Paulo. Impressionante.

Ignorando a dor por todo o meu corpo, coloquei os pés no chão, tocando uma textura áspera. Resolvi checar e concluí que não apenas pisava em minha ficha, como também a amassei durante meu sono. Não sabia o que estava pior: eu ou o papel que um dia foi uma grade de horários.

Tive a brilhante ideia de deixá-la sob o peso de alguns cadernos para alisá-la enquanto realizava outras tarefas. Passei o dia inteiro dentro do quarto trocando mensagens com mamãe e Stef, não tendo coragem de me aventurar pela academia. As poucas vezes em que saí para ir ao banheiro ou beber água, não captei nenhum sinal de Yara.

Kaíque havia acordado pouco antes do entardecer e a noite chegou sem que ele saísse da cama, ocupado em ler uma pilha de mangás e HQs enquanto ouvia música em seus headphones amarelos. Até a hora em que fui dormir, não o vi levantar uma vez sequer, nem para tomar banho. Aquele lugar começava a cheirar mal.

A segunda-feira chegou junto ao barulho irritante do despertador, obrigando-me a praticamente esmagar o aparelho para desligá-lo. Kaíque resmungou alguma coisa e rolou na cama, indo parar direto no chão.

Ignorei o ocorrido, pois nem aquilo foi capaz de acordá-lo. Vesti a camiseta branca com detalhes pretos nas mangas e gola e bati nas iniciais da academia no lado esquerdo do peito. Terminei de subir a calça preta, reparando nas suas listras laterais brancas e empurrei alguns livros para dentro de minha mochila. Foi quando percebi um pedaço de papel pardo sobressaindo-se entre as capas duras.

Arregalei os olhos e contive um palavrão. Eu havia me esquecido de preencher a grade de aulas, além de que tinha de tê-la entregue ao Miguel no dia anterior.

— Ei, Kaíque. – gritei e procurei por uma caneta. O garoto somente murmurou um “que é?” arrastado. – O que acontece se eu não tiver entregado minha grade de aulas?

— Seu nome não estará na chamada. Provavelmente fará aulas extras para compensar suas faltas... – Kaique balbuciou rouco.

— Droga, era só o que me faltava! – cerrei os dentes e pintei retângulos aleatórios, sem ao menos ler do que se tratava.

Terminando de preencher a ficha, calcei meus tênis pretos e corri para fora do quarto, esbarrando em alguns alunos e resmungando pedidos de desculpas. Tinha a total noção de estar atrasado para o horário do café da manhã impresso na grade.

Suspirei cansado ao pousar minha bandeja que sustentava um sanduíche e uma garrafinha de suco em uma mesa vazia. O restante dos alunos terminava suas refeições e deixava o refeitório, a animação e afobação do primeiro dia de aula espalharam-se pelo ar, mas não foram capazes de me afetar. Eu estava mais concentrado em conferir as aulas que assinalei.

Quase me engasguei com o pedaço de sanduíche que mastigava ao ver minha grade para antes do intervalo do almoço.

08:00-08:30 [Meditação]

08:30-09:15 [Culinária]

09:15-10:05 [Matemática]

10:05-11:55 [Artes]

11:55-12:20 [Química]

O meu poder inútil deveria ser realizar a proeza de marcar todas as coisas que eu mais odiava no mundo inteiro. Durante minhas lamentações, uma pessoa juntou-se a mim na mesa.

Reconheci os longos cabelos alaranjados de sábado no hall de entrada, aquela era Ana Carolina do Nova Era.

— Bom dia, Norte! – ela sorriu radiante.

— Bom dia... – resmunguei afundando o rosto nas mãos.

— Algum problema com suas aulas? – Ana perguntou educadamente.

— Não, nenhum. – voltei a segurar meu sanduíche.

Inclinando um pouco a cabeça, a ruiva espiou minha ficha e comentou:

— Meditação! Também farei essa nesse horário. Que tal irmos juntos?

Não era uma má ideia ir acompanhado, então concordei. Estávamos quase terminando nosso café da manhã, a não ser pela maçã intacta na bandeja de Ana Carolina. A garota encarava a fruta, apreensiva.

— Tudo bem, dá tempo de comê-la se você for rápida. – visualizei a hora em meu celular.

— Não posso comer isso. Ela fala. – Ana torceu a boca.

— Quê? – arqueei uma sobrancelha, perplexo.

— A-Ah... – ela encolheu os ombros e ruborizou.

— O poder dela é se comunicar com frutas. – uma terceira voz adentrou nossa conversa. De pé, atrás da garota, Kaíque agitava seus cabelos despenteados e bocejava.

— Isso é vergonhoso. – Ana bateu em suas próprias bochechas. – É por isso que não posso comê-la!

— Mas eu posso. – Kaíque furtou a lustrosa maçã e deu-lhe uma merecida mordida.

A ruiva engoliu o ar e espalmou a mesa, incrédula.

— Não acredito que fez isso! Ela tinha família, seu monstro! – berrou.

— Disse bem. Tinha. – o garoto prendeu a maçã entre os dentes e usou as mãos para fazer um rabo-de-cavalo em seu cabelo.

— Kaíque, eu te odeio! – Ana ergueu-se nervosa e vermelha feito um pimentão.

— Pega uma senha e entra na fila, fofa. – Kaíque revirou os olhos e deu outra mordida na fruta.

— Norte, vamos! – a garota puxou a alça rosa-bebê de sua mochila.

Atordoado, agarrei minha mochila e segui Ana que bufava e resmungava sobre o quanto Kaíque era um garoto odiável desde que eles eram crianças. Reprimi o sentimento de que eu mesmo teria comido aquela maçã caso meu colega de quarto não tivesse aparecido.

Adentramos a sala de meditação a tempo de ver os outros alunos acomodarem-se sobre as dezenas de almofadas coloridas que cobriam o chão. O cheiro de incenso invadiu minhas narinas imediatamente, incomodando-me e obrigando-me a cobrí-las discretamente.

Eu e Ana nos sentamos nas almofadas do meio da sala e aguardamos pela chegada da professora. Dei uma olhada ao redor na esperança de enxergar a garota de coques, vulgo Yara, mas nada dela.

Os murmurinhos dos alunos se cessaram diante da entrada de uma mulher esguia. Seu cabelo escuro e trançado chegava à cintura, os tecidos de sua roupa balançavam suavemente e suas joias tilintavam ao caminhar. Reparei nos óculos escuros apoiados em seu nariz longo e pontiagudo, imaginando a necessidade daquilo em um ambiente fechado.

— Bom dia, meus queridos alunos. – sua voz era calma e limpa, apesar de delatar que já passara da casa dos 50 anos. – Eu sou a professora Vera. – uniu as mãos e fez uma breve reverência.

Houve os típicos dez minutos de apresentação e chamada (meu nome não estava presente, nada inesperado) para que enfim a aula se iniciasse. Ela fechou a porta lentamente, alegando que ficaríamos mais concentrados se não tivéssemos interrupções vindas do corredor.

Primeiramente, retiramos os sapatos para ficarmos mais à vontade, depois cruzamos as pernas em posição borboleta, mantendo os punhos sobre os joelhos.

— Isso, sinto que estão indo bem. – Vera assentiu devagar. – Lembrem-se de ajeitar suas posturas e inspirarem e expirarem lentamente.

Senti uma pontada na espinha ao ter de ficar ereto. Eu tinha 15 anos e a coluna de um idoso de 80. Inspirei e expirei calmamente, procurando esvaziar minha mente.

— Fechem os olhos e mantenham o foco. – a professora instruiu, paciente.

Era impossível para eu permanecer de olhos fechados com aquela mulher caminhando pela sala e produzindo um tilintar irritante com seus inúmeros acessórios dourados e de pedrarias. Não fui o único a ficar incomodado, tendo em vista que a maioria dos alunos encontrava-se inquieta e assumia expressões irritadas.

Vera passou ao meu lado, exalando um perfume doce e enjoativo, do tipo que gruda na sua roupa ao receber um abraço. Minhas narinas arderam e meus olhos se semicerraram, avisando-me do que estava por vir. Tentei a todo custo evitar, contudo, o cheiro já havia se instalado em meu nariz.

Meu corpo curvou-se na direção do tecido arroxeado que arrastava-se pelo chão, chamuscando-o. Não tive tempo para raciocinar muito bem, apenas entrei em pânico ao ver que uma chama começava a consumir parte da roupa de Vera.

 


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Norte parece ser um imã de coisa ruim, impressionante.
Nos vemos na semana que vem para descobrir o que vai acontecer nessa aula de meditação, até mais!
Beijos.
—Creeper.